Pad Thai é meio chinês e pimenta não define comida da 'bombada' Tailândia

Para você, comer "no tailandês" é sinônimo de picância nas alturas e o "típico" macarrão de arroz com broto de feijão, amendoim e ovo mexido? Tudo bem. Você não está só.

O mundo ainda não conhece a Tailândia como ela merece, nem ela tem se vendido muito além das praias paradisíacas (alô, The White Lotus) e da culinária "tipo exportação" das comidas de rua de Bangkok.

Para quem está ou passa por São Paulo, um primeiro passo para sair dessa bolha é conhecer o restaurante Ping Yang, de Maurício Santi (cuja história já foi contada aqui em 2024). Uma segunda recomendação é explorar obra e trajetória não de um tailandês, mas de um americano do Oregon.

Austin Bush e Maurício Santi, nos preparativos do jantar no Ping Yang
Austin Bush e Maurício Santi, nos preparativos do jantar no Ping Yang Imagem: Agada Han

Parece inusitado? Pois esse é o surpreendente Austin Bush. Aos 46 anos, o jornalista carrega na bagagem 23 anos na Tailândia e dois livros imprescindíveis para mergulhar na culinária local: um sobre o norte e outro sobre o sul do país (nenhum com tradução para português e ambos encontrados na Tolc, em Perdizes).

Foi baseado na segunda publicação que desembarcou no "Ping" para um jantar a muitas mãos - as dele, as de Santi e as da empolgada equipe do restaurante.

Equipe do Ping Yang
Equipe do Ping Yang Imagem: Marcelo Colmenero

Terra de chineses, sagu e sopa azeda

"Não posso com tanta pimenta", ouvia-se na mesa alguém dizer, se abanando. Puro condicionamento (ou preguiça): dos sete pratos, somente em dois ou três - para os mais intolerantes - a picância era protagonista.

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No sul, o calor é, sim, importante. A pimenta fresca, o gengibre e a cúrcuma estão lá, mas não se trata de uma cozinha de ingredientes, somente. Nem de um soco na cara e línguas dormentes.

Salada de noodles de arroz com tofu (yam mii hun)
Salada de noodles de arroz com tofu (yam mii hun) Imagem: Austin Bush

Imaginaria, por exemplo, que a cozinha tailandesa é berço de fusões? Uma das influências mais presentes é a de elementos "importados" dos chineses, não só pela proximidade do enorme país, como pelo comércio e imigração presentes desde o século 15.

Nirá salteado com tofu (phat kui chai)
Nirá salteado com tofu (phat kui chai) Imagem: Agada Han

Resultado disso, por exemplo, é a salada de noodles de arroz com tofu (yam mii hun) combinada às pastas, pimentas e ervas elementares de Tailândia, Malásia e Singapura. Nada agressivo, mas sim um balé de texturas e sabores (entre apimentado, doce e ácido).

Também por influência chinesa, um dos pratos mais deliciosos da noite: nirá salteado com tofu (phat kui chai).

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A população muçulmana, em um país majoritariamente budista, também tem seu papel na panela do sul. Esperaria uma rabada tailandesa? Pois ela surge em forma de uma tradicional sopa (sup haang wua), que na terra-natal é acompanhada por arroz e... omelete.

Sopa (sup haang wua)
Sopa (sup haang wua) Imagem: Austin Bush

A explicação, nem mesmo Austin sabe, mas desconfia que é uma daquelas harmonizações que por necessidade, ordem divina ou gosto, apenas "pegou".

O prato mais famoso da região, porém, é uma surpresa ao paladar brasileiro: sopa ácida com peixe e abacaxi (kaeng som). Aqui, sim, apimentado, mas nada de sofrimento.

Sopa ácida com peixe e abacaxi (kaeng som)
Sopa ácida com peixe e abacaxi (kaeng som) Imagem: Austin Bush

Há também combinações muito menos exóticas que a mente fértil sobre o país pode criar: porco salteado com curry seco (khua kling muu) e pancetta braseada em shoyu (muu waan), por exemplo.

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Para arrematar, porém, outro choque. Sua infância também foi regada a sagu? Pois ele não é exatamente... sagu! As pérolas gelatinosas, na verdade, são extraídas de uma árvore, um tipo de palma, tão comuns na Tailândia. Na noite do Ping, vieram acompanhadas por um cremoso leite de coco (saakhuu ton).

Sagu verdadeiro no leite de coco (saakhuu ton)
Sagu verdadeiro no leite de coco (saakhuu ton) Imagem: Austin Bush

O segredo está no "khaao"

Workshop de Austin Bush no Ping Yang
Workshop de Austin Bush no Ping Yang Imagem: Agada Han

No dia seguinte, com os dois livros embaixo do braço, Austin ofereceu um workshop acompanhado com exclusividade pela reportagem. Mas estaria esta jornalista em uma aula de tailandês?

Quer pedir arroz branco na Tailândia? Comentar as notícias? Falar que algo cheira mal? Ou falar de alguém? A diferença entre algumas dessas palavras é apenas a entonação - todas são variantes de "khaao".

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Agora o salão estava ocupado pela equipe do restaurante e um enorme mapa da Tailândia ocupava a frente da cozinha. Austin começava o workshop com noções do complicado idioma local - que ele jura ter aprendido com perfeição em dois anos.

Se no dia anterior, a viagem fora ao sul do país, agora era hora de ver uma Tailândia infinita.

Começando pelo norte, mais "original" e dominado pelo povo thai, as técnicas são mais simples. Grelhados, sopas, molhos e pastas e, mais uma vez, nada daquela pimenta toda que nós ocidentais adoramos definir como a principal característica da culinária local.

A pimenta é ingrediente mais recente, dos últimos 500 anos. A cozinha thai mais tradicional não é tão apimentada, enfatiza Austin.

Preparo de comida no sul da Tailândia
Preparo de comida no sul da Tailândia Imagem: Austin Bush

Quer "matar" na hora a origem de seu prato tailandês? Preste atenção no arroz. O do norte é o glutinoso. Olho também na carne, majoritariamente de búfalo, mais defumada que propriamente grelhada. As especiarias secas, os sabores amargos (muitas vezes de folhas, legumes, mas também da bile de animais).

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Indo mais a leste, ainda no norte, surgem influências do Laos. Carnes selvagens (como rã e mesmo insetos), o imprescindível molho de peixe (resultado de uma fermentação peculiar) e a preferência por salgados e cítricos.

Cadê seu pad thai agora?

As várias regiões da Tailândia em arte do livro de Austin Bush
As várias regiões da Tailândia em arte do livro de Austin Bush Imagem: Divulgação

Viajando a territórios, em tese, mais conhecidos (como a capital Bangkok), o arroz agora é o branco ou jasmin, de grãos longos.

Por influência da família real - sendo a Tailândia uma monarquia parlamentarista —, a comida é mais sofisticada. Surge a preferência por pratos doces, de influência lusitana. Os portugueses foram os primeiros europeus a visitar a Tailândia, ainda no século 16.

É aqui que nasce, há cerca de 80 anos, o menos antigo e mais reverberado dos sucessos , o pad thai. A história do prato, porém, é muito mais chinesa: seja pelo macarrão, pela utilização da panela wok ou pelo tofu.

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Dizem as más-línguas, segundo Austin, que o prato nasceu a partir de um concurso criado pela família real que propôs acrescentar ingredientes tailandeses diante da "invasão chinesa".

Comida de rua em Bangkok é essencialmente chinesa, crava o jornalista.

E aí, leitor? Decepcionado com o thai originalíssimo da esquina da sua casa?

Entre neves e monções

Estávamos nos dias quentes e eternos de janeiro, mas não tão quentes quanto os da Tailândia, garante Austin.

Estudante de linguística na Universidade de Oregon, Austin passou um mês (de verão) entre Tailândia e Laos. Pouco depois, partiu para Chiang Mai, ao norte da Tailândia, e por lá ficou durante 23 anos.

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"Depois da faculdade, queria ficar lá. Então fui professor de inglês por 4 ou 5 anos, mas não queria fazer isso como carreira. Como sempre gostei de viajar e de tirar fotos, passei a escrever sobre viagem."

Austin Bush
Austin Bush Imagem: Divulgação

No currículo, matérias, guias e livros. No passaporte, passagens por Tailândia de cabo a rabo e também Camboja, Vietnã, Laos, Mianmar, Malásia e Indonésia.

Se o interesse começou pelo idioma, a comida ganhou protagonismo logo depois. "Aprendi que uma forma de se comunicar com as pessoas é com comida", lembra.
Ainda assim, não foi amor à primeira vista.

Diria quase o contrário. Quando eu cheguei à Tailândia, fiquei um pouco assustado com a comida. Eu cresci em uma cidade pequena na América e alguns restaurantes pareciam meio sujos. Então eu era muito conservador no começo. Mas depois eu aprendi mais e ficou interessante, lembra.

Ainda que conheça profundamente o país, domine o idioma e que a presença turística espalhe rostos nada asiáticos pela Tailândia, Austin conta que em mais de duas décadas sempre se sentiu fora do lugar, "sempre me senti um pouco como um estrangeiro".

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Com isso, veio o cansaço de não se misturar e também do clima, cujo inverno de temperaturas a 20 e poucos graus dura somente uma semana e a umidade é constante.

Após tanto tempo, eu queria viver em um lugar mais tranquilo, com clima mais ameno, onde se possa beber vinho e comer queijo, resume.

Após todo esse tempo, voltar para os Estados Unidos não era uma vontade, então hoje ele vive em Portugal - e fala português muito melhor do que pensa.

A missão de mostrar ao mundo as verdadeiras culinárias tailandesas (sim, no plural) seguiu e a conversa veio confirmar que Austin virou uma espécie de "caçador de mitos".

Há diversidade e regionalidade. Há muitas coisas que são picantes, mas nem tudo é picante e a busca primordial é pelo equilíbrio, crava.

Diante dos turistas e dos olhos do mundo voltados para o país, nem mesmo os tailandeses se apropriaram de sua própria cultura culinária.

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O livro de Austin Bush sobre a comida do sul da Tailândia
O livro de Austin Bush sobre a comida do sul da Tailândia Imagem: Marcelo Colmenero

Os tailandeses fazem comida que eles acham que você gostaria de comer, não a que eles gostariam de comer. Então para o resto do mundo, eles não querem desafiar e dão uma versão diferente de sua comida, conta.

A solução é viajar direto para a Tailândia? Diz Austin que não necessariamente. "Londres e Estocolmo tem comida tailandesa incrível". E o Brasil?

"Um dos ingredientes mais importantes na Tailândia, do norte para o sul, são ervas e pimentas frescas, leite... e elas não viajam muito bem. Então, esse é o maior obstáculo aqui", entrega a má notícia. E emenda com mais outra.

Estou um pouco preocupado com o futuro da comida tailandesa, pois nenhum jovem cozinha mais e essas receitas devem se perder. Por isso faço esses livros.

2 comentários

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Roberto Brandao Machado

Pelos preços é inviável.

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Raphael Guedes Sborja

Faltou explicar o khaao!

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