Turismo, política e lagostas: como é o território que EUA e Canadá disputam

Os EUA e o Canadá atualmente estão em uma guerra comercial que corre o risco de escalar, já que o presidente americano Donald Trump repete abertamente desde sua posse em janeiro que deseja transformar o país vizinho em seu 51º estado.

Até agora, no entanto, os dois países disputam cinco fronteiras: quatro delas são marinhas e apenas um território está em jogo. É a Machias Seal Island, uma pequena ilha entre os estados do Maine, nos EUA, e de New Brunswick, no Canadá.

Por que os dois países querem a ilhazinha?

A disputa deste pedaço de terra de cerca de 8 hectares começou há pouco mais de 200 anos. Durante a Guerra de 1812, a Grã-Bretanha — do qual o Canadá ainda fazia parte como colônia até então — e os EUA reivindicaram, ambos, a posse da Machias Seal Island.

O principal motivo, à época, era a localização: a ilha estava localizada em uma valiosa rota de navegação para o comércio, próxima à Grand Manan Island. Por isso, em 1832, os britânicos decidiram construir ali um farol que serviria como prova física de que a ilha lhes pertencia; a estrutura é uma das poucas sobreviventes na região justamente por causa da disputa territorial.

O histórico farol da Machias Seal Island
O histórico farol da Machias Seal Island Imagem: by Marc Guitard/Getty Images

Durante a Primeira Guerra, os fuzileiros navais dos EUA se instalaram na ilha, com o consentimento dos canadenses, para ajudar a proteger a Machias Seal de um ataque de barco alemão. Meses depois, os militares se retiraram e, desde então, os EUA jamais se reestabeleceu por meio de suas autoridades no local.

Até hoje, apenas dois canadenses vivem dentro do farol em rodízio, já que ninguém pode trabalhar mais do que um turno de três meses por ano, apontou uma reportagem da rede britânica BBC de fevereiro. Os irmãos Anthony e Russel Ross, os atuais faroleiros, não são apenas guardiões da Machias Seal, eles também servem como anfitriões aos barcos de turistas americanos e canadenses que chegam durante o verão.

Papagaios-do-mar monopolizam a ilha no verão, durante sua temporada de reprodução
Papagaios-do-mar monopolizam a ilha no verão, durante sua temporada de reprodução Imagem: KenCanning/Getty Images

Apesar dois barcos, um do Maine e outro de New Brunswick tem autorização para entrar nas docas da ilha por dia, cada um deles com até 15 passageiros, para evitar transtornos e caça às espécies. Boa parte destes visitantes chega para a temporada de observação de pássaros, de junho até a primeira semana de agosto, quando eles estabelecem seus ninhos por lá.

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Barcos partem da ilha de Grand Manan, em New Brunswick, e fazem um percurso de 1h30 até Machias ou de Cutler, no Maine, de onde a viagem dura duas horas. Quem navega por lá vê baleias, focas — outra espécie popular em Machias — e pássaros raros. Ao desembarcar, só é possível caminhar em calçadas e áreas demarcadas, para evitar pisar nas tocas e ninhos de pássaros.

Um papagaio-do-mar se alimentando de peixe na Machias Seal Island, área de prolífica pesca
Um papagaio-do-mar se alimentando de peixe na Machias Seal Island, área de prolífica pesca Imagem: Image by Michael Rickard/Getty Images

Por isso, os irmãos Ross também têm um papel extraoficial como protetores dos animais, especialmente do papagaio-do-mar (Fratercula arctica), espécie nativa do ártico e do Atlântico Norte que, apesar de muito presente na ilha no verão, está ameaçada. Cabe à dupla garantir que o número de turistas presentes na ilha esteja sempre dentro dos limites estabelecidos pelos Serviços de Vida Selvagem Canadenses.

A Universidade de New Brunswick também mantém o Laboratório de Pesquisa em Aves do Atlântico (ALAR), desde 1995, que despacha todo verão três pesquisadores que vivem na ilha em tempo integral durante a estação para monitorar a reprodução dos pássaros, especialmente a do papagaio-do-mar.

Focas também podem ser vistas pela Machias Seal Island
Focas também podem ser vistas pela Machias Seal Island Imagem: by Marc Guitard/Getty Images

De olho no lucro

Mas não é apenas o interesse turístico ou científico que mantém ainda o desejo das duas nações de possuir, definitivamente, a Machias Seal Island. Na última década, estima a BBC, o preço da lagosta triplicou no mercado internacional e os entornos da ilhazinha são cheios do crustáceo. Em um bom dia de pesca, um barco pode deixar a Machias com milhares de dólares em frutos do mar.

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Por isso, os pescadores do Canadá e dos EUA transformaram as águas disputadas ao redor de Machias uma "zona cinzenta", onde há uma espécie de trégua não oficial por 700 km². Ninguém abre mão, mas também ninguém tenta impedir que o vizinho faça sua pescaria. Os dois países disputam o controle da zona cinzenta desde 2002, mas a briga até hoje não avançou e ambos se beneficiam da abundância de peixes e frutos do mar ali de forma independente.

Faroleiros e pescadores são responsáveis pela paz entre os países que os governos nunca encontraram
Faroleiros e pescadores são responsáveis pela paz entre os países que os governos nunca encontraram Imagem: Warren Price/Getty Images/iStockphoto

O número de lagostas teria começado a crescer na região devido às mudanças climáticas e, naquele ano, o governo canadense liberou a pesca do animal não apenas durante a temporada oficial, mas no ano todo. Desde então, pescadores enriqueceram em relativa paz em Machias, mas há quem tema que a bonança possa acabar — e a disputa pelo controle da ilha se reacender.

"Quando você só tem a lagosta em que confiar, e todo mundo está batendo tanto na zona cinzenta... [a pesca] vai afetá-la mais cedo ou mais tarde", comentou à BBC o pescador Donald Harris.

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