Restrição de acesso à cidadania italiana gera revolta e pode ser contestada
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O decreto do governo italiano que limita o direito à cidadania por descendência somente a filhos e netos de nascidos na Itália pode ser contestado na Justiça por violar princípios constitucionais, tratados internacionais e direitos adquiridos, segundo especialistas em direito internacional.
O que aconteceu
No fim de março, o governo da Itália publicou um decreto-lei que muda drasticamente as regras para o reconhecimento da cidadania por sangue, conhecida como iure sanguinis (por sangue). A partir da nova norma, apenas filhos e netos de italianos nascidos no país poderão requerer a cidadania — o que exclui milhões de descendentes ao redor do mundo. Nas redes sociais, brasileiros manifestaram frustração. "Seremos resistência, nascemos italianos e seremos reconhecidos", disse uma internauta. Outra pessoa comentou: 'Me lasquei. Corri atrás de tudo e agora vem isso. Meu trisavô era italiano".
O Brasil, país com a maior comunidade ítalo-descendente fora da Europa, não foi poupado. O decreto foi apresentado como resposta a denúncias de fraudes e ao excesso de pedidos nos cartórios italianos, mas vem sendo duramente criticado por especialistas, que apontam ilegalidades e possível inconstitucionalidade na medida.
O decreto rompe com princípios legais consolidados e pode ser derrubado nos tribunais, explicam especialistas em direito internacional ouvidos por Nossa. A medida restringe o reconhecimento da cidadania por descendência, o que, segundo eles, afronta normas constitucionais e tratados internacionais.
Para o advogado internacionalista Marco Alonso David, o decreto restringe um direito que é de origem, e não uma concessão estatal. Ele explica que o sistema jurídico italiano exige respeito à Constituição, mesmo diante da soberania estatal. Para David, que compara o caso ao ordenamento brasileiro, "é como se um decreto tentasse mudar quem é considerado brasileiro nato. Isso não se sustenta juridicamente".
Especialistas alertam que o critério de "vínculo efetivo" pode abrir margem para exclusões subjetivas. A advogada Marcela Castro, especialista em direito migratório, afirma que "esse tipo de exigência já foi questionado pela própria Corte Europeia no caso Genovese vs. Itália, que tratou da exclusão de filhos ilegítimos do direito à cidadania". Ela lembra que o decreto deve ser confrontado com o Acordo Brasil-Itália de 1988 e com o artigo 20 do Pacto de San José da Costa Rica, que garante o direito à nacionalidade.
A cidadania italiana "por sangue" é considerada um direito originário e não pode ser revogada retroativamente. A advogada Talita Dal Lago Fermanian, doutora em Relações Internacionais, lembra que descendentes de italianos não estão pleiteando um benefício, mas sim o reconhecimento de uma nacionalidade de origem. "O que o decreto tenta fazer é apagar esse vínculo retroativamente — e isso é vedado pela Constituição Italiana".
Os especialistas criticam o uso de decreto-lei para promover uma mudança estrutural sem justificativa de urgência. Esse instrumento só deve ser usado em situações excepcionais, o que não se aplica ao caso da cidadania. "Não existe situação de calamidade ou emergência que justifique essa medida. O que há é uma tentativa de restringir o acesso à cidadania de forma acelerada, sem debate público e sem controle social", diz Fermanian.
A falta de discussão parlamentar fragiliza ainda mais a legalidade da medida. Segundo os especialistas, alterações dessa magnitude devem passar pelo rito legislativo ordinário, com debate democrático e participação de entidades da sociedade civil. A advogada reforça que "a ausência de deliberação no Parlamento torna o decreto vulnerável à contestação na Corte Constitucional Italiana".
A exigência de residência de dois anos na Itália para transmitir a cidadania é vista como discriminatória. O critério territorial introduz uma divisão inédita entre cidadãos de mesma origem, contrariando o princípio da isonomia. Para David, "a nova regra cria uma distinção arbitrária e discriminatória entre cidadãos de mesma origem, apenas com base no território".
A medida também pode violar tratados internacionais assinados pela Itália. O advogado cita a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que garante a todos o direito à nacionalidade e proíbe discriminações nesse campo. "Ninguém pode ser privado da sua nacionalidade de forma arbitrária", afirma ele.
Tribunais internacionais
Após esgotadas as vias internas, a medida pode ser levada a cortes internacionais. Especialistas afirmam que a norma pode ser contestada na Corte Europeia de Direitos Humanos e em órgãos da ONU. A Itália é signatária de acordos que garantem o respeito a direitos de nacionalidade e proíbem discriminação por origem ou território. "A Corte Europeia já condenou países por medidas semelhantes, que restringiam o acesso à nacionalidade sem base legal sólida", explica Fermanian.
A legislação italiana permite que entidades da sociedade civil questionem normas com impacto coletivo. "Existem mecanismos legítimos dentro do ordenamento italiano, como a azione popolare, que permitem que associações civis ou grupos representativos questionem judicialmente o decreto", explica Marcela Castro. "Esse é um caminho possível para a comunidade ítalo-descendente organizada, especialmente no Brasil."
Mesmo com condenações, a execução depende da vontade do Estado italiano. David destaca que tribunais internacionais não têm poder coercitivo automático. "Um país pode simplesmente optar por não cumprir, mas o desgaste político e jurídico é alto."
Quem deu entrada no processo antes da publicação do decreto deve ter o direito à cidadania preservado. O princípio da segurança jurídica e a expectativa legítima impedem a aplicação retroativa da nova regra. "A expectativa legítima do requerente deve ser respeitada. O Estado não pode mudar a regra no meio do jogo", afirma Fermanian.
Já quem ainda pretende solicitar a cidadania pode enfrentar obstáculos maiores. Se o decreto for convertido em lei pelo Parlamento, o caminho provável será a judicialização. "Se a norma se mantiver como está, só restará ao interessado judicializar o caso para ter seu direito reconhecido. Não há mais espaço para a via administrativa tradicional", diz David.
32 comentários
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Paulo Haroldo Ribeiro
Juridicamente pode ser que não se sustente, mas moralmente está correto. Conheço pessoas que adquiriram a cidadania italiana sem falar uma palavra de italiano e que nunca foram à Itália. Que tipo de italiano é esse?
Caio Cesar Jorge Medeiros
Tera um referendo para ver a opinião da população italiana , inclusive os que residem no exterior e os que já obtiveram a cidadania. Vamos ver o que o povo pensa. Eu acho que muita gente desconhece a Itália, não sabe nada da cultura e língua italiana e tem a cidadania por um tataravô e quer o passaporte italiano para facilitar sua entrada em outros países. Isso se chama banalização e comercialização de passaporte e por isso acho certo mudar a lei.
Marcos da Silva Neves
Correta a posição italiana. Essa ideia de obter cidadania por descendência distante tem como justificativa colocar sob o comando do Estado Mãe os seus súditos espalhados pelo mundo. É uma ideia imperialista. Surgiu na época de formação desses Estados. Hoje, oportunistas, vislumbram ter um passaporte estrangeiro para se beneficiar dos bônus, mas sem ônus. Coloca a obrigatoriedade do serviço militar na Itália que isso acaba. Ninguém vai querer.