Sustentável e saboroso, cacau da Amazônia está se tornando "o ouro negro" da floresta
O cacau nativo da Amazônia, menos famoso que o cacau baiano, está cada vez mais se popularizando. Em 2020, o estado do Pará, agora o maior produtor do país, comercializou em torno de 140 mil toneladas do produto. Na floresta de várzea, os ribeirinhos aprendem a valorizar essa cultura para gerar renda e proteger a floresta ao mesmo tempo.
A uma hora de barco de Belém, Manoel do Carmo Monteiro da Silva observa a vegetação de Barcarena enquanto dirige a "rabeta" — pequena embarcação típica da região - até a sua comunidade, em Bom Jardim. "Aqui, temos uma concentração de cacau nativo. Mas por falta de conhecimento e pelo preço do transporte, a cultura do cacau está se perdendo para dar lugar ao açaí", lamenta o ribeirinho. "Mas eu vejo isso de outra forma!", comemora.
Manoel, mais conhecido como Xiba, tem até mesmo uma barra de chocolate com seu apelido: com 81% de concentração de cacau, a "Xiba" ganhou destaque no Salão do Chocolate, em Paris, a maior feira do setor na França. "Os críticos perceberam um sabor de rosa no meu cacau, de origem muito humilde, e aí eu soube que estava fazendo um produto de grande qualidade", diz, sem esconder seu orgulho.
Caminhar na floresta com Xiba é uma aula de botânica e ornitologia. Da andiroba até o canto do uirapuru, o local não apresenta quase nenhum segredo para ele.
Cacau fino
Xiba aprendeu a cultivar o cacau com o pai, mas não para produzir chocolate e sim para consumir a polpa da fruta ou vender sua semente. Foi com o chocolatier da Amazônia Cesar de Mendes que o ribeirinho começou a fazer cacau fino, com fermentação e secagem das sementes. Hoje, ele consegue obter 500 kg da fruta a cada safra - uma em janeiro e outra em junho.
No entanto, a cada ano, Xiba tem a impressão que a produção diminui.
Na época do meu pai, a terra dava muito cacau, era uma árvore em cima da outra. Esse ano já vou perder 30% em comparação com o ano passado."
Ele conta que recebeu muitas propostas para a venda da madeira da floresta onde mora, mas sempre se recusou a vendê-la. "É para o futuro. Os filhos dos meus filhos devem conhecer essas árvores, então tento preservar", argumenta.
Graças ao conhecimento sobre a fermentação e secagem do cacau, o produto ganhou um valor extra. "Barcarena é um lugar muito interessante", explica o chocolatier Cesar De Mendes, no seu sítio, em Santa Bárbara, onde cultiva vários tipos de frutas, da banana ao cacau. "É um solo argiloso e inundável, onde cresce o cacau nativo chamado 'Maranhão'. Nos anos 1640, foi o primeiro cacau a ser exportado para Europa", conta.
Chocolate que conta histórias
Segundo o ex-engenheiro químico, agora chocolatier reconhecido, as particularidades do território onde cresce o cacau se sentem no paladar de quem o experimenta. As notas cítricas, amadeiradas, doces, dependem de vários fatores: as características do solo, a variedade da fruta, a incidência da luz, a disponibilidade de água, mas também do "equilíbrio microbiano" que fermenta o cacau. "Fora do Brasil, no mundo, tem em média 78 micro-organismos que fermentam o cacau. Na Amazônia, são 150!", detalha.
De Mendes é um dos chocolatiers pioneiros na Amazônia, integrante do movimento "tree to bar", da árvore à barra. Os tabletes de chocolate que ele vende contém poucos ingredientes: o cacau das comunidades com quem trabalha, a manteiga da própria fruta e rapadura orgânica.
Na embalagem de cada barra estão as coordenadas geográficas do local de origem do cacau, além da história dos produtores. "Eles são os protagonistas, não a gente", salienta De Mendes.
Para mim, esse chocolate é uma ferramenta para mostrar que pode ser viável manter essa floresta em pé, que podemos fazer comércio sem desmatar, preservando a cultura dos povos tradicionais"
Através do seu chocolate, De Mendes também garante uma renda digna para as comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas com quem trabalha. Na cadeia do cacau, os produtores ganham geralmente 7% da renda do produto final, e o comércio fica com 43%. De Mendes tenta pagar aos produtores pelo menos o dobro do preço do mercado.
Em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) ele conta que produziu chocolate junto com a comunidade indígena Yanomami, que vende 50 gramas por R$ 50. A renda inteira volta para a comunidade. "Uma forma de ajudar", segundo o chocolatier.
Filhas do Combu
Ainda é raro encontrar produtores de cacau que sabem fazer o próprio chocolate. Izete dos Santos Costa é uma dessas pessoas apaixonadas por essa arte. Popularmente conhecida como Dona Nena, a ribeirinha mora na ilha do Combu, na frente de Belém. Ela criou a sua própria marca de chocolate, "Filhas do Combu", que produz com outras mulheres da família.
Mas antes de conseguir realizar esse sonho, encontrou muitas dificuldades. "Primeiro, fui vista como doida. Nem a minha família acreditava em mim. Ainda hoje, eu sinto essa dificuldade, porque infelizmente o machismo impera. Como mulher, é muito difícil dirigir homens, porque eles não aceitam receber ordens de uma mulher", afirma Dona Nena.
A empresária olha com desconfiança as embarcações que passam a toda velocidade em frente à sua casa. Aos finais de semana, barcos de turistas com música alta e jet-skis circulam o tempo inteiro pela região.
Esse turismo selvagem é muito preocupante. Além de ameaçar a fauna, degrada a flora e as beiras dos rios. A erosão está chegando às nossas casas, e já tivemos que mudar o nosso modo de vida: as crianças não brincam mais de 'casquinha' -- brincadeira em uma canoa pequena --, e não conseguimos mais pescar camarões"
Nos finais de semana, a ribeirinha também organiza visitas guiadas em seu ateliê de chocolate, com degustação e explicação sobre a cultura e a história do cacau da Amazônia. Trazendo os visitantes para a sua casa, a empresária tenta incentivar um turismo mais sustentável.
Para ela, explicar como é feito o chocolate faz parte de "uma luta para que as pessoas tomem consciência sobre o que é um bom chocolate". Para combater o turismo selvagem que está cada vez mais prejudicando a ilha, Dona Nena também criou uma associação com outros moradores. "A gente combate isso, mas infelizmente avançamos bem devagar", lamenta.