Metrô, monumentos e costumes: os resquícios da URSS na Rússia
Fora dos mapas contemporâneos, a União Soviética segue presente na Rússia, trinta anos depois do desmantelamento anunciado ao mundo naquele 26 dezembro de 1991. Parte da paisagem, o legado povoa o imaginário coletivo. Nostálgicos ou críticos, os russos comparam presente e passado para o bem e o para o mal. Em sua terceira viagem de trem pelo maior país do mundo, o historiador brasileiro Rodrigo Ianhez conta no RFI Convida como a União Soviética e a Rússia atual convivem.
O roteiro de Ianhez, radicado há 11 anos em Moscou, durou pouco mais de um mês. Levou-o de Moscou a Kazan, Tobolsk, Novosibirsk, Irkutski, o lago Baikal, Birobidzhan, Khabarovsk e Vladivostok.
"É inevitável ver os resquícios da União Soviética aqui na Rússia. Diferente de alguns outros países, como os bálticos, ou na Ucrânia, houve uma tentativa de apagar esse período histórico das ruas, da arquitetura monumental, das referências, dos monumentos históricos. Na Rússia não houve ativamente essa tentativa. É claro que parte deste patrimônio arquitetônico, histórico, se perdeu e vem se perdendo", diz.
Segundo ele, alguns momentos são mais valorizados do que outros. "Por exemplo, na Rússia contemporânea se valoriza muito a vitória da Segunda Guerra Mundial, a memória da guerra. E, claro, a guerra foi travada durante a era Stálin, esse período histórico é bastante preservado. São erguidos novos museus em referência a isso, memoriais. Enquanto isso, a arquitetura construtivista foi por algum tempo relegada a segundo plano."
Nesta viagem pela Rússia, o historiador brasileiro percebeu que muitos edifícios da época da URSS se perderam, mas o passado continua estampado nas cidades.
"Mesmo o modernismo soviético não é tão valorizado, embora esteja havendo uma mudança nesse sentido. Vladimir Lenin ainda ocupa as praças centrais, os nomes das ruas ainda trazem referências ao passado, como a avenida Karl Marx, a rua Gorki, a rua Lenin. Na malha urbana, na geografia das cidades, ainda está muito impregnado isso", reitera.
URSS é ainda mais visível fora das grandes cidades
Rodrigo Ianhez afirma que a URSS ainda é presente nas pequenas cidades russas, onde, segundo ele, as mudanças não são tão constantes.
"Moscou é um eterno canteiro de obras. Quem viveu em Moscou sabe que a cidade está desde sempre reformando e construindo novos edifícios. O interior não é tão dinâmico assim. Por outro lado, é claro que país mudou muito, até em relação ao período após a União Soviética que foi um período de mudanças mais abruptas, na década de 1990, início dos anos 2000", avalia.
O historiador conta que, quando cheguei à Rússia, há 11 anos, Moscou era uma cidade com forte poluição visual. "Havia lojas para tudo que é lado, marca, propaganda para tudo que é lado, o metrô absolutamente abarrotado de propaganda, com vagões cheios de adesivos até o teto. E a cidade já não é assim."
"Já se controlou essa explosão de publicidade, essa euforia de consumismo. Claro, o consumismo ainda existe, mas já não deixa essas marcas tão visíveis na cidade."
No entanto, nas outras cidades esse processo é mais lento, embora, no aspecto urbanístico esteja melhorando muito. "O lugar mais remoto, digamos assim, é Birobidjan, que é capital da região autônoma judaica, uma cidade muito pequena, lá no Extremo Oriente, uma região bem pouco habitada. Ainda assim, eu esperava algo bem pior do que eu encontrei. Claro, lá você ainda vê muito dessa poluição visual típica que havia até cerca de 2010. Mas não com a intensidade que eu imaginava e que as pessoas relatavam", diz.
Estações de metrô da era Putin
No metrô de Moscou, abriram novas estações. Já com o Putin, o estilo grandioso retornou "de maneira diferente", descreve Ianhez. "O metrô de Moscou é monumental, é um verdadeiro palácio debaixo da terra. Foi construído na era Stálin, e na era Krushev e Brejnev, deixaram de construir estações tão monumentais. O Putin voltou com esse estilo grandioso de estações. Claro, diferente do que era feito. Mas, recentemente, abriram uma nova estação que tem uma referência muito clara ao estilo do realismo socialista", afirma.
O historiador aponta um painel dentro do metrô da capital russa representando trabalhadores do Ministério de Situações Emergenciais, como bombeiros e salva-vidas. "Eles estão num painel que imita bastante o estilo de arte soviético, com relevo na parede. De certa forma, é uma tentativa de retorno, ou pelo menos uma referência à arte soviética. Enfim, está na moda aqui este estilo, digamos, retrô", ressalta.
Segundo ele, a União Soviética é uma referência constante, "positiva e negativa", mas não é celebrada. "A comemoração, por exemplo, dos 100 anos da revolução foi muito apagada. Em 2017, o governo não quis se meter nessa história, que ainda divide opiniões. No nível oficial é apenas a guerra, que é martelada, e com força cada vez maior. Eles estão comemorando cada vez mais episódios que antes não eram tão relevantes. Por exemplo, este ano instalaram perto da Praça Vermelha um monumento temporário para comemorar os 80 anos da primeira contra-ofensiva, que começa em 5 de dezembro. Antes se comemorava apenas a Batalha de Moscou", explica.
Ianhez afirma que, para Putin, a história da União Soviética não é considerada relevante "como um todo". "Interessa uma União Soviética que sirva à narrativa, ao propósito do governo atual, a ideologia nacionalista da Rússia de Putin. Não é tudo que interessa. Até por isso Stálin interessa muito mais que Lenin. Lenin é tratado muitas vezes como um russófobo, não era nacionalista. E Stálin é identificado com a posição era nacionalista por ter conduzido o país durante a guerra."
A Rússia é um país de contrastes muito grandes e, para o especialista, essa sensação de ambiguidade em relação à ex-URSS pode ser verificada entre a população. "Agora a questão da vacinação, por exemplo, está uma discussão enorme, porque muitos russos estão desconfiados da vacina. Algumas pessoas colocam que a culpa dessa desconfiança é da União Soviética, porque obrigava as pessoas a se vacinarem. Essa desconfiança do governo vem de lá, porque as pessoas eram obrigadas, hoje têm a escolha, então, optam por não se vacinar. Outro dizem que, ao contrário, se fosse na União Soviética, havia uma confiança maior na ciência, você podia confiar numa vacina produzida naquela época, e hoje não se pode confiar."
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