A cozinha de Jorge Amado

O apetite do escritor baiano era parte importante dele e das personagens dos seus romances

Silvana Azevedo e Bruno Calixto Colaboração para Nossa Adriana Komura/UOL

As personagens de Jorge Amado comem. "Aquelas de quem meu pai gostava geralmente comiam os pratos preferidos dele. É muito gozado isso", diz Paloma Jorge Amado, que é filha do escritor e autora de dois livros sobre a gastronomia na vida e na obra do pai, ambos publicados pela Companhia das Letras.

O paladar, tanto do escritor como dos seres de ficção que ele criava, não era mero detalhe. A gastronomia é parte importante do universo de Amado, que foi um grande apreciador dos prazeres da vida.

"Na casa dele nunca tinha um prato só", conta a chef quituteira Dadá, uma referência na culinária baiana e dona do famoso restaurante Sorriso da Dadá, em Salvador. Como eram muito próximos, ela sabia detalhes das preferências do baiano.

Ele amava desde roscas (coquetéis com frutas) até outros drinques. E, sempre, muita variedade de comida."

Após duas décadas da morte do escritor, completadas no dia 6 de agosto, traçamos um raio-X da gastronomia de Amado, na vida real e na ficção, a partir das memórias de Dadá e Paloma.

Adriana Komura/UOL

Sarapatel dos deuses

Aos 70 anos, Paloma Jorge Amado tem onze livros publicados. São reuniões de crônicas e memórias, um infantil, outro para adolescentes e três sobre gastronomia, sendo dois dedicados ao pai. Além de "A cozinha baiana de Jorge Amado", ela escreveu "As frutas de Jorge Amado" (Companhia das Letras, 1997). Ao longo desta reportagem, você pode conferir receitas citadas no primeiro.

O sarapatel, por exemplo, era um dos pratos prediletos do baiano.

"Como a gente diz aqui, é uma comida que dá muita sustância. Curioso como, mesmo sendo ateu, papai usava menções religiosas quase todas as vezes que citava essa receita nos livros: sarapatel dos deuses, divino, para comer rezando, comer de joelhos...", diz Paloma.

Sarapatel

Serve 12 pessoas

Ingredientes

  • 3 kg de miúdos de porco muito frescos
  • 6 limões
  • 3 pimentões
  • 1 molho grande de hortelã
  • 1/ 2 molho de cebolinha verde
  • 1/ 2 molho de coentro
  • 3 cebolas grandes
  • 4 tomates
  • 150 g de toucinho defumado
  • 6 pimentas-de-cheiro
  • 5 dentes de alho
  • 10 folhas de louro
  • sal a gosto
  • 1 colher (sopa) de pimenta-cominho

OBS.: Pimenta-cominho é a mistura que se vende na Bahia de pimenta-do-reino com cominho.

Preparo

1. Lave os miúdos com muito limão.

2. No liquidificador, bata duas cebolas, os dentes de alhos, os tomates, a cebolinha, o coentro e a hortelã.

3. Misture os miúdos com os temperos batidos e junte o louro, a pimenta-cominho e as pimentas-de-cheiro inteiras.

4. Pique bem miudinho uma cebola.

5. Ponha num caldeirão o toucinho defumado e leve ao fogo para derreter. Junte a cebola e deixe dourar.

6. Coloque os miúdos temperados no refogado de cebola e mexa bem.

7. Junte toda a água de uma vez, cobrindo o sarapatel e passando três dedos.

8. Deixe cozinhar por algumas horas.

9. Sirva acompanhado de farinha e arroz.

OBS.: Sarapatel deve ser feito de véspera.

Peixe para Quincas

Outra receita que Amado gostava e aparece nos livros é a moqueca de peixe.

"No livro 'A morte e a morte de Quincas Berro d'Água', os amigos levam o corpo de Quincas para o saveiro de mestre Manuel, onde é servida uma moqueca. E eles colocam peixe na boca do morto. Há, então, um diálogo sobre a moqueca, porque a comida é vida. De repente, Quincas cai no mar. O leitor pode não se dar conta da importância desse momento, mas pense em quantas pessoas quiseram comer uma moqueca de peixe mundo afora por causa do livro?", diz Paloma.

Moqueca de Peixe

Serve 6 pessoas

PARA A MARINADA DO PEIXE

Ingredientes

  • 1 namorado de 2 kg cortado em postas (se quiser, peça à peixaria a cabeça e o rabo do peixe) ou 6 postas do peixe branco que preferir, como robalo, vermelho ou garoupa
  • 1 cebola
  • 1 pimentão verde
  • 1 tomate
  • 3 dentes de alho
  • 2 xícaras (chá) de folhas de coentro (meça pressionando)
  • caldo de 3 limões
  • 1 colher (sopa) de vinagre
  • 1 ½ colher (sopa) de sal

Preparo

1. Sob água corrente, lave o peixe, seque delicadamente com um pano de prato limpo e passe para uma tigela. Cubra com filme e leve à geladeira.

2. Lave e deixe de molho em água e 1 colher (sopa) de vinagre o maço de coentro, antes de retirar o talo e medir as 2 xícaras (chá) de folhas. Cerca de 10 minutos para o molho são suficientes para higienizar. Retire o maço (em vez de escorrer a água), assim as sujeirinhas ficam no fundo da tigela.

3. Numa tábua, corte o pimentão ao meio e descarte as sementes. Descasque os dentes de alho e as cebolas. Corte os tomates ao meio.

4. Num processador de alimentos, bata todos os ingredientes listados (menos o peixe), até formar uma pasta lisa. Se preferir, pique tudo bem fininho numa tábua e misture numa tigela com o limão e o sal.

5. Tempere o peixe com a marinada, envolvendo bem todos os pedaços. Cubra com filme e deixe descansar na geladeira, enquanto prepara os outros ingredientes.

"Muito bom, mas não presta"

Mas o autor não dedicava linhas só aos pratos que apreciava. O que ele não gostava também aparecia nas histórias.

Paloma conta que o pai rejeitava "comidas de moda". O "estrogonofe brasileiro", que aparece em "Gabriela, cravo e canela" (1958), é uma delas, como conta:

"Quando há o rompimento de Gabriela e Nacib, ele fica sem cozinheira e contrata um francês, que prepara estrogonofe e maionese — maionese industrializada era outra coisa que papai detestava. É um momento muito engraçado do livro. Nacib coloca os amigos para provar a comida do cozinheiro, cheia de molho e creme de leite. O amigo livreiro de Nacib resume bem o que pensava meu pai: 'muito bom, mas não presta'".

O paladar de Amado também influenciou a família. É o caso do que aconteceu com o caviar, que aparece em "Dona Flor e seus dois maridos" (1976). Ovas de esturjão eram uma das iguarias preferidas de Jorge Amado e acabavam fazendo parte do lanche da casa.

Veja o que papai fez com a gente: nos ensinou a ser simples de tudo, mas a adorar caviar. Agora a gente não pode nem olhar o preço que já fica tremendo", brinca.

Paloma lembra que, no tempo da União Soviética, os livros do pai eram publicados na região. Ele recebia os direitos autorais somente quando ia para a atual Rússia e tinha que gastar o dinheiro lá. Por isso, saia do país trazendo o caviar que tanto apreciava.

Fatia de Parida (ou Rabanada)

Serve 6 pessoas

Ingredientes

  • 2 baguetes médias amanhecidas
  • 1 xícara (chá) de leite de coco grosso
  • 1 xícara (chá) de leite de coco ralo ou água
  • 3 colheres (sopa) de açúcar
  • ¼ de colher (chá) de sal
  • 3 ovos
  • 200 g de manteiga
  • 1 xícara (chá) de açúcar para polvilhar
  • 1 colher (sopa) de canela em pó

Preparo

1. Com uma faca de pão, corte as baguetes em rodelas de 2 cm.

2. Numa tigela, misture os leites de coco (grosso e ralo) com o açúcar e o sal. Em outra tigela, quebre os ovos e misture com um garfo.

3. Na tigela com o leite de coco temperado, coloque algumas fatias de pão e deixe de molho por alguns segundos. Use uma peneira para escorrer o excesso de líquido.

4. Leve uma frigideira grande ao fogo baixo e coloque um terço da manteiga para derreter.

5. Passe as fatias hidratadas pelos ovos batidos e transfira imediatamente para a frigideira, deixando dourar dos dois lados. Disponha numa assadeira forrada com papel-toalha e repita todo o processo com as outras fatias, acrescentando o restante da manteiga na frigideira quando necessário.

6. Numa tigela, misture 1 xícara (chá) de açúcar com a canela em pó.

7. Arrume as fatias de pão numa travessa bonita e polvilhe com a mistura de açúcar e canela. Sirva a seguir.

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Jorge Amado em seu escritório Paris, em 1991

Pernil em Paris

Graças ao privilégio de ser filha de um dos casais mais respeitados da literatura brasileira (a mãe era Zélia Gattai), Paloma conviveu com grandes nomes como, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.

Era apadrinhada pelos escritores Pablo Neruda e Nicolás Guillén, e Chico Buarque foi seu vizinho no período em que morou em Paris. Virava e mexia, ele ganhava uma quentinha com os pratos preferidos de Jorge Amado, preparados por Paloma. Uma delas tinha rabanada com leite de coco e o pernil do Natal.

"Teve um Natal que papai passou comigo e fez questão de pernil de porco. Eu nunca tinha visto um pernil de porco inteiro para vender em Paris", conta.

Mas ela deu um jeito e encomendou a peça num açougue. Quando foi buscar, o açougueiro fez questão de contar que conheceu o porco. "Era um animal ótimo, tranquilo, muito calmo, eu diria até que era um porco feliz", lembra Paloma, que quase desistiu do prato.

Por sorte, cumpriu o combinado e a realização ficou tão boa que o pai saiu distribuindo aos amigos. "Foi o melhor pernil de porco que eu fiz na minha vida inteira", afirma.

Pernil de Porco Assado

Serve 8 pessoas

O prato sempre foi o preferido da família Amado. A "casquinha escura, salgadinha e crocante, que se forma em torno dele", aliás, era objeto de disputa entre os filhos do escritor, conta Paloma em seu livro.

Tempo de preparo: 15 minutos + 12 horas para marinar + 4h30 no forno

PARA O PERNIL

Ingredientes

  • 1 pernil de porco de cerca de 3 kg
  • 9 dentes de alho
  • 6 folhas de louro
  • 4 ramos de alecrim
  • 1 garrafa de vinho tinto (750 ml)
  • sal e pimenta-do-reino moída na hora

Preparo

NA VÉSPERA

1. Numa assadeira grande que comporte o pernil, coloque os ramos de alecrim, o louro, o vinho tinto, o sal e a pimenta-do-reino.

2. Numa tábua, esmague os dentes de alho com a lateral da lâmina da faca (apertando com a palma da mão). Descarte as cascas, que irão se soltar. Transfira para a assadeira.

3. Com a ponta de uma faca afiada, faça incisões ao longo da carne do pernil. Transfira para a assadeira, cubra com papel-alumínio e leve à geladeira por cerca de 12 horas, virando o pernil na marinada pelo menos duas vezes.

NO DIA DE ASSAR

1. Preaqueça o forno a 160 °C (temperatura baixa) e retire a assadeira da geladeira para quebrar o gelo, cerca de 20 minutos antes de levar ao forno.

2. Certifique-se de que o papel-alumínio está bem vedado e leve a assadeira ao forno por 3 horas, sem abrir a porta.

3. Retire do forno e, com cuidado para não se queimar com o vapor, retire o papel-alumínio. Regue a carne com o caldo do cozimento e cubra novamente com o papel-alumínio. Volte ao forno e deixe assar por mais 1 hora.

4. Retire o papel-alumínio, regue com mais caldo e deixe no forno até dourar, cerca de 30 minutos.

5. Transfira o pernil para uma tábua e deixe descansar em temperatura ambiente com papel-alumínio, por cerca de 10 minutos, antes de fatiar.

PARA A FAROFA

Ingredientes

  • 1 ½ xícara (chá) de farinha de mandioca
  • sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

Preparo

1. Passe o caldo que se formou no fundo da assadeira por uma peneira e transfira para uma molheira — reserve a assadeira sem limpar.

2. Retire as ervas e leve a assadeira ao fogo médio. Salpique a farinha de mandioca e misture bem. Deixe torrar um pouco, cerca de 2 minutos. Verifique os temperos e, se necessário, tempere com sal e pimenta-do-reino. Desligue o fogo e transfira a farofa para uma tigela.

3. Transfira o pernil fatiado para uma travessa e sirva com a farofa e o molho à parte.

O escritor e a cozinheira

O primeiro encontro da chef Dadá com Jorge Amado foi há 30 anos, no Varal da Dadá, um restaurante improvisado no quintal da então casa dela, em Salvador. Na ocasião, estavam com ele a filha, a esposa, Zélia Gattai (1916-2008), e o artista plástico Carybé (1911-1997).

"Tinha varal de roupas minhas e da vizinha", diz Dadá. Dali em diante, os dois nunca mais se separaram. Passados alguns anos, Jorge Amado já frequentava quase semanalmente, sempre acompanhado de amigos e parentes, não só o Varal (atualmente um depósito), mas também o Tempero da Dadá, no Pelourinho, hoje o Sorriso da Dadá.

Para iniciar os trabalhos, conta a cozinheira, o mestre fazia brindes com coquetéis de frutas da época. Para comer, pedia moquecas, sarapatel, arroz de hauçá e galinha de parida (assada na brasa e depois escaldada). "Às vezes, fazia encomendas do que pedia para levar para casa."

Dos pratos dela, a maniçoba e o arroz de hauçá estavam entre os prediletos de Jorge Amado. O primeiro é uma espécie de feijoada sem feijão e o outro, um prato requintado do norte da Nigéria, que leva arroz, leite de coco, dendê, camarão fresco, camarão seco, carne-seca desfiada, cebola, alho, pimenta, coco ralado e coentro.

Reprodução

Salada não leva a nada

Se Jorge Amado ainda fosse vivo e Dadá pudesse escolher o menu, o escritor jantaria um banquete composto por seu arroz hauçá, sarapatel, frigideira de siri catado, acarajé e doce de puta (doce de banana).

Nascida no pequeno município de Conde, litoral da Bahia, Dadá, além de ser proprietária do restaurante que leva seu nome, presta consultoria num hotel em Salvador. Serviu a última refeição ao autor no restaurante do Pelourinho, seis meses antes de ele partir.

"Aprendi com Jorge a amar e respeitar o próximo", declara a quituteira, em tom de saudade. E emenda em uma história:

Fui almoçar na casa deles uma vez. Ele estava de dieta, mas pegou um prato fundo, colocou feijoada, carnes e, por cima, uma salada bem bonita. Até então, todos achavam que era só uma salada. Quando vimos o que tinha de verdade no fundo do prato, caímos na gargalhada, mas fingimos que não estávamos vendo nada."

Maniçoba da Dadá

Amiga de Jorge Amado, a chef baiana Dadá se acostumou a fazer as vontades do escritor. Garante que a sua maniçoba era o prato predileto dele.

Ingredientes

  • 1 kg carne de fumeiro suína
  • 1 kg carne chã de fora bovina
  • 1 kg de bacon
  • 500g de carne suína salpresa
  • 500g costela suína defumada
  • 1 kg carne de sertão colchão mole
  • 500g costela suína salgada
  • 2 pés de porco salgados e cortados em quatro partes
  • 2 pés de porco defumado cortados em quatro partes
  • 500g de toucinho de barriga suíno com pedaços de carne vermelha
  • 2 kg da folha da mandioca triturada
  • 2 kg de cebola picadas em pequenos pedaços
  • 1 kg de tomate picado em pequenos pedaços
  • 4 pimentões coloridos picados
  • 500g de alho
  • 50g cominho
  • 100g de pimenta-do-reino
  • 500g extrato de tomate
  • 1 xícara de chá de óleo
  • 5 folhas de louro
  • 50g de corante
  • 2 xícaras de chá hortelã grosso
  • 2 xícaras de chá hortelã miúdo
  • 1 xícara de chá de salsa
  • 1 xícara de chá de molho shoyu
  • 1 xícara de chá de vinagre

Modo de preparo

1. Lavar a folha da maniçoba dez vezes, deixar de molho por duas horas a cada lavada

2. Deixar carnes salgadas de molho na água de um dia para o outro, sempre ir trocando as águas de três em duas horas para retirar o sal

3. Os temperos picados e os demais ingredientes como alho, condimentos, folhas: colocar numa panela grande e, com a ajuda de um machucador de temperos, machucar até que os temperos estejam moídos, adicionar folhas, carnes e deixar cozinhar por mais ou menos 15 horas, sempre adicionando água, o segredo é ver as carnes ficarem espatifadas

Servir com arroz, pimenta e farinha.

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