À luz do céu,
no mar profundo

Texto e fotos


Dubes Sônego

A rotina de trabalho começa antes do sol nascer para os pescadores na Praia da Pinheira, distante pouco mais de 40 quilômetros de Florianópolis, em direção ao Sul de Santa Catarina. Por volta das 4h30 da manhã, todos os dias, eles surgem na praia, vindos de ruas ainda escuras, antes de embarcar em pequenos grupos, de dois ou três, em direção aos barcos ancorados na baía. É um ritual silencioso, ritmado pelos humores do mar.

Thuan Miranda é um dos mais jovens pescadores da Pinheira. Nas duas últimas décadas, com o desenvolvimento do antigo povoado, vizinho da badalada Guarda do Embaú, o comércio e a construção civil surgiram como alternativas econômicas mais atrativas para as novas gerações. E poucos decidiram seguir a atividade dos pais e avós.

O que atraiu Thuan para a profissão, ele me conta, foi a possibilidade de viver em contato com a natureza. Mesmo com a dura rotina de acordar de madrugada todos os dias, incluindo finais de semana e datas comemorativas, como Natal e Ano Novo, ele diz que em nenhum trabalho teria a chance de ver tantas vezes o nascer do sol no mar. Casou-se com a filha de um pescador local e, junto com o sogro, investiu na compra de um barco, financiado pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.

A rotina de pescadores como Thuan me intrigava desde pequeno, quando veraneava na Pinheira. Cedo pela manhã, ia com meu pai à praia comprar peixes recém pescados. E ficava imaginando que horas eles iam para o mar para estarem de volta à terra tão cedo. Em um final de ano recente, depois de fazer uma série de fotos dos peixes sendo vendidos ainda nos barcos aos turistas, pedi para acompanhar uma das saídas desses mesmos pescadores. Thuan, ele próprio um entusiasta da fotografia, com seu celular, aceitou me levar no barco.

A primeira hora depois da partida se passa ainda no escuro. A única luz é a da brasa dos cigarros. Todos fumam. Os estampidos do motor a diesel dificultam qualquer conversa. São pouco mais de sete quilômetros até o ponto onde, no dia anterior, foram deixadas as redes. Quando amanhece, as redes já estão próximas. É hora de checá-las.

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Um motor e uma polia na proa ajudam a puxar as redes para dentro do barco. Cada uma tem 800 metros de comprimento. Thuan e seu sogro, Adelcio João dos Santos, têm três delas. É Adelcio quem opera o equipamento. Na medida em que a rede vai saindo da água, é preciso direcioná-la, para que os companheiros possam retirar os peixes, e acomodá-la da forma correta, para evitar que embarace.

A rede é puxada para dentro do barco. Os peixes vão sendo retirados, um a um, e separados em caixotes plásticos. Em dias bons, a pesca pode render centenas de quilos. Eventualmente, mais de uma tonelada. Mas dias bons, diz Thuan, são cada vez mais raros. Em parte, acredita, por causa da pesca industrial, bastante forte no litoral catarinense.

Com o volume da pesca em queda, cada pescador consegue tirar algo entre R$ 500 e R$ 800 por mês, conta Thuan. No verão, parte da produção é vendida diretamente aos turistas, na praia. Na baixa temporada, os peixes são limpos, cortados em filés, congelados e vendidos para restaurantes e mercados da região. Para manter as contas em dia, nem todos pescam o ano inteiro. Alguns se dedicam apenas à pesca artesanal da tainha, de maio a julho. E muitos acabam buscando trabalhos temporários em outras áreas.

Enquanto as redes são retiradas do mar, o barco fica ancorado, balançando à mercê das ondas. Para os pescadores, é uma situação normal, do dia a dia. Para marinheiros de primeira viagem, como eu, é bastante desconfortável. Mesmo tendo evitado comer e tomado dois comprimidos para enjoo antes de sair, vomitei duas vezes da borda do barco para fora. Uma vez recolhidos os peixes, porém, o motor é religado e as redes são devolvidas à água, lentamente.

Por volta das 7 horas da manhã, a temperatura ainda é amena, no verão. Parte do trabalho já está feita e o tempo no trajeto entre uma rede e outra é gasto, quase sempre, em silêncio. Depois de uma breve troca de palavras sobre em que direção seguir, sobre mudar ou não uma das redes de posição, Adelsio acende um cigarro e comanda o barco, enquanto observa o horizonte fluido do mar.

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O dia de trabalho de Thuan e Adelsio, por volta das 9 horas, rendeu pouco mais de uma caixa e meia de peixes, que serão vendidos na praia aos turistas por R$ 5, R$ 10, R$ 20 o quilo, dependendo da espécie. Com alguns, ganharão reais extras também pelo trabalho de limpeza. Há turistas que, eventualmente, ainda reclamam dos preços, diz Thuan. Mas, dos ganhos brutos no dia, na ocasião divididos por três (havia no barco um terceiro pescador convidado, João Carlos da Silveira), ainda é preciso descontar os gastos com diesel e outras despesas, como manutenção das redes e as prestações do financiamento do barco.

Apesar da beleza do mar, diante das condições de trabalho e dos rendimentos, a geração de Adelsio é, possivelmente, a última a se dedicar à pesca artesanal na Praia da Pinheira. Thuan sabe que, na sua, é uma exceção. Outros já vêm transformando os barcos de pesca em embarcações de turismo e vendendo passeios a turistas, conta. É uma alternativa de futuro.

Assim como acontece no campo, no mar, para quem é pequeno, sobreviver com dignidade à lógica da produção em larga escala parece cada vez mais difícil. Talvez seguir adiante na tradição do povoado pesqueiro açoriano seja um caminho apenas para quem já não vê opções. Talvez requeira certa ingenuidade. Ou, talvez, algum tanto de poesia.

Publicado em 04 de maio de 2021

Texto e fotos: Dubes Sônego
Edição: Giuliana Bergamo