Tradição em madeira

É nas pipas moldadas por tanoeiros que o vinho do Porto se transforma, em um ofício com séculos de história

Por Rafael Tonon, de Vila Nova de Gaia, Portugal Fotografias de Lucas Lima Lucas Lima/UOL

Entre agosto e outubro, centenas de homens e mulheres percorrem a pé os socalcos do Vale do Douro, no norte de Portugal, para colher, manualmente, as uvas que amadurecem nas íngremes encostas.

Com tesouras e baldes nas mãos, recolhem os frutos que darão origem a cerca de 60 milhões de litros anuais do Vinho do Porto, o vinho fortificado mais famoso do mundo.

Produzido na região demarcada mais antiga da história (desde 1756), o processo começa com a colheita e maceração das uvas, muitas vezes pisadas com os pés, para dar início à fermentação.

Mas o Porto só atinge sua forma final a cerca de 100 km dali, em Vila Nova de Gaia, onde estão as históricas caves. É nesses armazéns, ao pé do rio Douro, que o vinho "descansa" nas barricas — ou pipas, como são chamadas em Portugal. Durante o envelhecimento, a madeira permite uma leve oxigenação, essencial para integrar sabores, aromas e taninos.

É quando a mágica acontece: no contato com a madeira, o vinho ganha complexidade e suavidade, transformando-se no líquido aromático que conquistou o mundo. Algumas safras raras chegam a custar milhares de dólares.

As pipas que guardam o vinho durante décadas — e até séculos — são feitas por tanoeiros, profissionais de um ofício tradicional que hoje corre o risco de desaparecer.

O ambiente remete a uma oficina mecânica: o ruído intermitente dos martelos, os homens vestindo macacões e os pôsteres de mulheres seminuas pendurados nas paredes.

Mas, ao invés de motores e pneus, os golpes precisos que ecoam antes mesmo de entrar no amplo barracão são desferidos em ripas (ou aduelas) de madeira que dão forma às barricas — algumas feitas de madeira nobre e centenária, outras com menos décadas de história,

Eis a excelência do ofício em uma tanoaria: trabalhar a madeira antiga, entender seus veios e formas, tornando novas as barricas feitas com velhas aduelas para armazenar mais e mais vinho.

É também uma das profissões mais antigas do mundo. Há registros que os celtas já utilizavam madeira para armazenar e transportar vinho desde os anos 1000 a.C.

No Império Romano, com a popularização do consumo de vinhos, os barris também passaram a ser muito usados, se dissipando por toda Europa.]

No caso do Vinho do Porto, era a única forma de fazer o líquido produzido em Portugal chegar à Inglaterra (o principal cliente) e a outros portos.

Com o tempo, percebeu-se que a madeira não era só uma forma de armazenamento. Ela alterava — para melhor — o perfil dos vinhos, fazendo da tanoaria uma arte ainda mais valorizada.

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

Em Vila Nova de Gaia, onde estão as caves das principais vinícolas de Vinho do Porto, ser tanoeiro sempre foi uma profissão honrosa. Era comum ver centenas deles na região — hoje, são poucos, quase que se podem contar nos dedos.

Na Cockburn's, a equipe é composta por sete tanoeiros, alguns com mais de 40 anos de experiência. É o caso de António Manuel Sá, o chefe da equipe, que não se imagina em outra profissão. "Minha vida é talhada em madeira", diz ele.

O trabalho principal é restaurar pipas com defeitos na madeira — algo crítico no mundo do vinho, pois qualquer aduela empenada ou ranhura pode significar litros de Porto desperdiçado.

Somos uma espécie de ambulatório, em que chegam os doentes e saem daqui novos em folha. Somos os cirurgiões dos cascos" António Manuel Sá, tanoeiro

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

Os tanoeiros percorrem os corredores das caves, inspecionando as barricas. Qualquer desgaste é identificado, e a peça que não pode ser reparada ali (às vezes só um pedaço de papel ou uma pequena estaca na fuga de onde verte o vinho) é levada para a oficina.

Ali, os arcos são removidos a golpes do malho, e as aduelas, examinadas uma a uma. "Às vezes, estão mais danificadas do que supúnhamos e precisam ser substituídas inteiras", explica Manuel.

As aduelas em bom estado de outros barris maiores são recuperadas e adaptadas aos novos tamanhos. "Só de olhar já sei qual casa com qual", diz o mestre, orgulhoso do ofício que luta para manter vivo.

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

A tanoaria resistiu ao tempo (e até recentemente à tecnologia) graças à crescente importância das barricas no envelhecimento de vinhos e destilados.

As bebidas mais valorizadas no mercado maturam em madeira — principalmente carvalho francês ou americano — para alcançar seu melhor potencial.

Em 2019, uma garrafa de Vinho do Porto foi vendida por 127 mil dólares: o Niepoort 1863, engarrafado em uma cristaleira da grife francesa Lalique, alcançou esse valor em leilão.

Após envelhecer por 40 anos em madeira, o vinho foi armazenado em grandes garrafões e utilizado em icônicos lotes da Niepoort ao longo dos anos.

As barricas de Porto também se tornaram altamente cobiçadas por destilarias, que sonham em envelhecer seus uísques e runs em madeiras impregnadas pelo famoso vinho.

"Vendemos uma ou outra quando insistem muito ou há alguma relação com a empresa, mas é muito pouco habitual", explica Ana Margarida Morgado, Relações Públicas da Taylor's.

Poucas barricas deixam as vinícolas. Algumas madeiras, reaproveitadas há mais de um século, são transformadas em novos formatos, preservando sua importância histórica e funcional.

"A cascaria é um patrimônio das vinícolas, a matéria-prima com que os tanoeiros mostram a importância de seu ofício", diz Ana Margarida. Dos balseiros (veja quadro abaixo) às pipas, cada peça carrega uma história.

Embora seja uma profissão em extinção — com cada vez menos artesãos e mais máquinas substituindo o trabalho antes feito exclusivamente à mão —, a tanoaria resiste discretamente, atraindo novos profissionais que mantêm viva sua tradição.

Vindo de Luanda, em Angola, para viver no Porto, Sebastião Antônio trabalhou inicialmente em uma confeitaria, até conseguir um emprego nos armazéns da Cockburn's. Surgiu então a oportunidade de atuar na tanoaria, e ele não pensou duas vezes. "Estou há apenas um mês, mas já aprendi a gostar disso", afirma.

Sebastião não vem de uma família de tanoeiros — como é comum entre os que seguem o ofício — nem havia visto uma barrica antes. "É preciso muita concentração, tomo bastante cuidado para fazer tudo certinho", comenta. "Mas vou precisar de muito tempo", reconhece.

Já Ricardo Jesus é filho de Manuel, mestre tanoeiro da Taylor's desde 1998. Por estar habituado a ver o pai às voltas com as madeiras desde pequeno, acabou desenvolvendo um gosto pelo ofício. "Ele diz que gosta, não sou eu que obriguei", brinca Manuel.

Ricardo trabalha ao lado do pai todos os dias há oito anos e, há quatro, entrou para o quadro de funcionários da empresa. "Tê-lo como mestre é um ouro. Eu posso estar mais tempo com ele, vê-lo envelhecer", afirma. "Mas também levo mais bronca", ri.

Aos 27 anos, foi com o pai que aprendeu todo o ofício, desde marcar as aduelas com um "X" para serem substituídas ou com um "O" para analisá-las com mais minúcia depois.

Também aprendeu a medir as madeiras, calcular os ângulos corretos e ser preciso ao juntá-las. "Não há livros que ensinem, a gente aprende mesmo é fazendo", conclui.

Na Cockburn's, as máquinas chegaram há poucos meses e já ajudam o time de tanoeiros. Cortar as ripas de madeira ficou mais fácil, assim como cravar os aros de metal — jabre, bojo, rabo de palhas: cada anilha tem um nome, reconhecido pelo diâmetro só de olhar.

Mesmo com o maquinário agilizando o trabalho e aliviando pesos das costas, as tarefas principais ainda são feitas pelos homens, que confiam mais na destreza de suas mãos do que na precisão das máquinas.

Com um compasso e bom olhar, eles fazem os círculos, refilam as aduelas e, como num Lego pré-fabricado, tudo se encaixa ao final — às vezes com pequenos ajustes, como tudo na vida.

Ao contrário de médicos e engenheiros, que compram prontas suas ferramentas, nós é que as fazemos" Manuel Jesus, tanoeiro

"Esse pedacinho de papel pode estancar litros de vazamento", afirma, mostrando dois centímetros de papel manteiga usado para vedar folgas entre as aduelas.

Quando o papel não basta, é preciso restaurar a barrica ou usar estacas feitas com madeira sobrante. Nada é desperdiçado. Algumas madeiras, que já viajaram pelo mundo levando vinho, voltam para formar novos contentores em novos formatos.

"Aprendemos esse ofício com muitos anos de trabalho. Não há livros que ensinem a ser tanoeiro", diz Ricardo, filho de Manuel. "É com o tempo que ficamos melhores", completa o pai. "Como o vinho do Porto".

Topo