Velho normal

Máscaras são protagonistas dos registros captados por fotógrafo brasileiro nas ruas de Tóquio durante 16 meses

Fotos: Pedro Silvestre Texto: Gilberto Yoshinaga

Era fevereiro de 2020, fim do inverno japonês, quando o fotógrafo paulistano Pedro Silvestre, de 60 anos, começou a notar "algo diferente no ar".

Há 25 anos radicado no Japão, hoje na cidade de Yokohama, a 35 km de Tóquio, Silvestre costuma perambular sempre munido de sua máquina fotográfica e registrar cenas curiosas do cotidiano. Depois de tanto tempo no arquipélago, ele já tinha se acostumado a ver milhares de mascarados no dia a dia -- lá, o uso de máscaras faciais já é comum há décadas.

Nos primeiros dias de março, porém, Silvestre notou algo de diferente no boom de máscaras na região metropolitana de Tóquio. A quebra da normalidade que o fotógrafo sentira no ar, ao fim, se desdobraria na declaração de pandemia global de covid-19 pela OMS (Organização Mundial de Saúde), dia 11 de março de 2020.

Desde então, ele passou a registrar cenas de um hábito nipônico que, pouco tempo depois, se tornaria um fenômeno mundial. Um tipo de objeto de análise: as máscaras, que sob as lentes do fotógrafo se tornaram "personagem" principal de um ensaio feito em Tóquio e arredores, que Nossa mostra a seguir com exclusividade.

Um hábito antigo

Cirúrgica, de pano simples ou estampa de Pokémon, máscaras faciais permeiam o cotidiano japonês há muito tempo. A inspiração data do período Edo (1603-1868), quando se tornou comum cobrir o rosto com um pedaço de papel ou ramo de "sakaki", tipo de planta comum em alguns países asiáticos, para disfarçar mau hálito.

Depois, na década de 1920, as peças se popularizariam por conta da gripe espanhola, epidemia que atravessou continentes e chegou ao Japão. Paulatinamente, japoneses incorporaram o hábito de usar máscaras para proteger a si mesmos e aos outros.

Tornou-se um hábito cultural que, em certo ponto, reflete o senso de educação no convívio em sociedade, além de ser uma barreira contra a poluição e de prevenção quando há surtos de doenças transmitidas por vias respiratórias"
Mitsutoshi Horii, sociólogo, professor da Universidade Shumei

O uso desse diminuto acessório, um pedaço de tecido cobrindo o nariz e os lábios, foi apontado por especialistas como fator chave para o controle da Sars (síndrome respiratória aguda grave), cuja epidemia atingiu países do sudeste asiático em 2003. Na China, a doença infectou mais de 5 mil pessoas e provocou quase 350 mortes; no Japão, foram apenas duas infecções e nenhum morto.

Baile dos mascarados

Ao longo da última década, a produção de máscaras cirúrgicas disparou no Japão, de acordo com dados da Statista, empresa alemã especializada em dados globais de mercado e consumo. Em 2010, foram 670 milhões de unidades; em 2019, o indicador mais recente, o número saltou para 6,46 bilhões de peças.

Pré-pandemia, as primaveras japonesas, tão famosas pelas efêmeras flores de cerejeiras, já eram marcadas como temporada de alta procura pelas peças.

Explica-se: é a época do "kafunsho", alergia ao pólen de um tipo de pinheiro muito comum no arquipélago, que provoca espirros, dificuldade para respirar e irritação nos olhos. Assim, na primavera de 2020, não seria surpresa ver um baile dos mascarados transitando pelas cidades japonesas, por conta das alergias.

Mas viria a declaração de pandemia. E, com ela, uma corrida intensa atrás de itens de higiene pessoal, o que fez máscaras e outros produtos desaparecerem, da noite para o dia, das prateleiras dos mercados e farmácias japonesas.

Até abril de 2020, foi quase impossível encontrar frascos de álcool em gel nas gôndolas e até papel higiênico se tornou um disputado objeto de desejo -- o Brasil, como se sabe, repetiria esse script pouco tempo depois. No Japão, o abastecimento voltou num ritmo relativamente rápido, mas a rotina dos japoneses continuou "anormal" -- ou, como se diz no mundo todo, sob a égide de um "novo normal".

Novo normal

Notícias sobre a escalada da covid-19 do Irã à Itália, do Reino Unido ao Brasil, deixaram a população japonesa apreensiva. "Lembro-me de ter visto na TV o caso de uma mulher que, assustada, apertou o botão de emergência de um trem em Tóquio, depois que um passageiro espirrou dentro do vagão -- e ele estava de máscara", conta o fotógrafo.

No território japonês, o primeiro surto de covid-19 ocorreu no navio de cruzeiro Diamond Princess, que ficou atracado na baía de Yokohama entre fevereiro e maio de 2020. Para Silvestre, foi um marco para a mudança de comportamento da população japonesa. Ao todo, quase 650 pessoas foram infectadas na embarcação -- entre elas, seis morreram.

Ele próprio achou muito assustador ver agentes de saúde entrarem no navio com roupas especiais, que lembravam vestimentas de astronautas. No Japão, imagem semelhante não era vista desde o desastre nuclear ocorrido em Fukushima, em 2011.

Passou a primavera nipônica, vieram o verão e o outono, o inverno chegou e mais uma vez fez-se primavera. Desta vez, nas vésperas das Olimpíadas, Silvestre via um arquipélago temeroso com relação ao evento, sem aquele clima festivo que costuma anteceder os Jogos. E, com a vacinação atrasada (23% dos residentes estão com a imunização completa), as máscaras, dos mais diversos modelos e cores, ainda parecem ser o principal escudo da população contra o vírus.

Entre luzes e sombras

Pedro Silvestre migrou para o Japão para trabalhar como operário em uma fábrica japonesa de autopeças em Hamamatsu (Shizuoka), conhecida como "a cidade mais brasileira do Japão", em 1991. Fez seu primeiro curso de fotografia em 1993 e, nos anos seguintes, ainda batendo ponto na fábrica, passou a participar de diversas exposições e concursos culturais japoneses.

Silvestre começou a perambular pela Ásia para fotografar, passando por países como Mianmar, Tailândia e Vietnã. Em maio de 2013, ele voltou temporariamente a São Paulo, onde abriu uma agência de fotografia. Em abril de 2018, decidiu viajar ao Japão, entre outros motivos, para visitar os filhos e netos. Passaram as estações e ele, que pretendia voltar ao Brasil, foi surpreendido pela pandemia e adiou o plano por "tempo indeterminado". Atualmente, ele trabalha em uma fábrica de parafusos e, no tempo livre, continua a sair a campo com sua câmera.

Nas suas andanças por Tóquio, apesar de ser uma cidade famosa pelo caleidoscópio de luzes coloridas, ele privilegiou registros em preto e branco, entre sombras.

Estamos falando de um período tenso e até nebuloso, de muita ansiedade e abalos emocionais. Não usar cores foi uma maneira de expressar essa dramaticidade, essa frieza"

"Torço muito para que possamos voltar ao que conhecíamos como normalidade. Sinto falta do calor humano, das conexões afetuosas entre as pessoas e de podermos nos enxergar com mais cores, e não apenas com esses muitos tons de cinza".

Fragmentos de uma linha do tempo

Cenas que marcaram o fotógrafo Pedro Silvestre na pandemia

Agosto de 2020

Sem nenhum centímetro de pele à mostra, esta mulher fotografada em um trem em Tóquio simboliza o quanto a covid-19 deixou algumas pessoas muito assustadas. A cena foi registrada no auge do verão japonês, em uma tarde em que o termômetro apontava 38°C

Setembro de 2020

Em uma tarde de garoa, as máscaras dividiam espaço com os guarda-chuvas no cruzamento mais movimentado do mundo, no bairro de Shibuya, em Tóquio. Nos horários de pico, o fluxo chega a mais de 3 mil pessoas em 90 segundos, a cada abertura dos semáforos

Maio de 2021

Vestindo os típicos quimonos japoneses, mulheres amarram papéis nos arredores do templo budista Sensouji, no bairro de Asakusa, em Tóquio. Na tradição japonesa, esses papéis costumam conter pedidos de paz, prosperidade e realizações pessoais

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