A escondida Chiloé

Arquipélago chileno guarda tradições e atrai pelas palafitas coloridas, boa comida e natureza selvagem

Luciana Quierati Do UOL, em Chiloé (Chile) tifonimages/Getty Images/iStockphoto

Em uma viagem de 1 horas e 50 minutos de Santiago em direção ao sul do Chile, voando em paralelo com a Cordilheira dos Andes, se chega a Chiloé. Um arquipélago no oceano Pacífico quase isolado e de temperaturas baixas. Que num dia chove, no outro também, mas no terceiro abre um sol de encher os olhos. Um lugar de casas típicas de madeira, dezesseis igrejas patrimônios da humanidade, mitos e lendas ainda muito arraigados. Com mais de 200 tipos de batatas e um alho gigante apelidado de elefante. De natureza selvagem, lagos e ricos pantanais. Frutos do mar em abundância, lobos marinhos, golfinhos e pinguins. E muitas espécies de aves — não à toa Chiloé deriva de "chil-hué", que na língua mapuche significa lugar de gaivotas.

O arquipélago é formado por 40 ilhas, que juntas somam 9.200 km² — seis vezes a área da cidade de São Paulo. A maior delas é a Ilha Grande de Chiloé, com 8.300 km² e pouco mais de 150 mil habitantes (90% da população chilota). É na Ilha Grande que fica a capital da província de Chiloé, a cidade de Castro, fundada em 1567 e onde está o principal cartão postal do arquipélago, as palafitas coloridas à beira-mar, que abrigam tradicionais armazéns, hotéis e feiras de artesanato.

Um dia de passeio por Castro é o suficiente para conhecer suas principais atrações, como as palafitas do bairro Gamboa. É um dos dois conjuntos de palafitas mais conhecidos e preservados da capital, especialmente porque teve de ser reconstruído após o terremoto Valdívia, o maior tremor de terra já registrado, ocorrido em maio de 1960.

Vale conhecer o Museu de Arte Moderna de Chiloé; o Mercado Yumbel, com seus peixes frescos e produtos típicos; algum estaleiro, para entender como são fabricadas as embarcações usadas na ilha; e a igreja de São Francisco, uma das 16 de Chiloé que foram declaradas patrimônio da humanidade em razão de características em comum: estrutura de madeira, geralmente alerce (que pode durar mais de 100 anos), sem pregos de metal e com cúpula em forma de barco invertido, com técnicas de encaixe usadas na construção de embarcações.

Castro fica a meia hora de carro do aeroporto Mocopulli, que recebe voos da capital chilena quase todos os dias da semana na alta temporada, de setembro a março, quando as temperaturas variam de 17 a 22ºC durante o dia e de 10 a 12º C à noite. Nos demais meses, com frio que deixa as temperaturas negativas, os voos escasseiam, e a maioria dos hotéis fica fechada.

Ainda na Ilha Grande, a meia hora de Castro e do aeroporto, fica Dalcahue, nome que remete às dalcas, tipo de embarcação local. No povoado se pode visitar outro patrimônio da humanidade, a igreja de Nossa Senhora das Dores, de 1858, além de fazer compras de artigos típicos nas ruas de comércio, tomar um sorvete ou um chope de frente para o mar e degustar comidas chilotas, como o milcao (espécie de bolinho à base de batatas raladas), a cazuela chilota (cozido com carne, arroz e batatas) e o curanto, o prato mais tradicional da ilha.

O curanto é feito com mariscos, batatas nativas, carnes de porco ou frango e linguiças, preparado de forma lenta sobre entre folhas de nalca ou maqui (cujo fruto rende uma bela de uma geleia), sobre lenha e pedras colocadas em um buraco cavado no chão a cerca de um metro e meio de profundidade.

Na Cocinería Dalcahue, um mercado em forma de barco sobre palafitas, com pequenos restaurantes, o prato de curanto sai por 9.000 pesos chilenos (em torno de R$ 55). O estabelecimento fica ao lado da tradicional feira de artesanato do povoado, na avenida principal da comunidade, a Pedro Montt.

Quinchao: religião, história, aves e ostras

A partir de Dalcahue se chega a Quinchao, a segunda maior ilha do arquipélago. São só cinco minutos de ferry boat pelo Canal de Dalcahue. A travessia custa 3.500 pesos chilenos (R$ 21) para carros, mas é de graça para pedestres.

Quinchao é dividida em duas comunas: a de mesmo nome e a Curaco de Vélez, ligadas por estradas de asfalto bem cuidadas e quase sempre com vista para o Mar Interior, formado pelas águas do Pacífico entre as ilhas.

Ambas as comunas seguem o padrão das demais ilhas do arquipélago, com as delicadas fachadas das casas, igrejas e comércios cobertos por tejuelas, que são peças de madeira de formatos variados e que, sobrepostas, mais se parecem com um rendado a cobrir as paredes - um recurso estético, mas também funcional, para amenizar o frio.

Na comuna de Quinchao fica a cidade de Achao e, de frente para sua praça principal e a duas quadras do mar, a mais antiga das igrejas patrimônio do arquipélago (e uma das mais antigas do chile), de 1730, em estilo barroco e dedicada a Santa Maria do Loreto.

Os fundos da igreja abrigam o Museu da Evangelização, um dos 18 do arquipélago, que conta a história do processo de catequização pelos espanhóis, no século 16, dos grupos indígenas locais - os huilliches, grupo da cultura mapuche, que viviam da agricultura, e os chonos, que eram pescadores nômades. O museu também guarda memórias dos costumes e da cultura de Chiloé, do modo de tecer com os primeiros teares à culinária e aos instrumentos musicais, como o violino chilota de três cordas - as quais, antigamente, eram feitas de tripas de gato e galinha, conforme explica o guia Felipe Lopez.

Em Curaco de Vélez, uma boa pedida é passear pela orla da avenida Del Mar e gastar um tempinho numa passarela de madeira de onde se pode observar revoadas de quero-queros (os queltehue, como se diz no Chile). Aliás, para o turista que gosta de aves, um binóculo na mala é essencial. Basta circular por qualquer estrada do arquipélago para se deparar com bandos de pássaros em revoada ou pousados sobre pequenos pantanais.

Parte dessas aves é migratória, como o zarapito de bico reto ou zarapito comum, que aporta em Chiloé em novembro, vinda do Alasca, e ali passa de 5 a 6 meses antes de regressar ao Norte em março, por vezes fazendo escala no Brasil, como explica o guia Matias Cornejo.

Ainda em Curaco, na beira da praia e pensando num aperitivo ao final do dia, há alguns restaurantes conhecidos por sua especialidade em frutos do mar, especialmente ostras, como o Los Troncos, onde a unidade sai por 1.000 pesos chilenos (pouco mais de R$ 6).

Tanto em Achao como em Dalcahue, mercados e feiras oferecem um completo retrato da forte tradição chilota do artesanato feito com lã de ovelha em sua cor natural ou tingida com folhas, cascas, raízes, frutos de plantas e até barro, para os tons mais escuros.

As técnicas de tecer, que prezam pelo cuidado com a natureza, vêm dos povos ancestrais do arquipélago e são transmitidas de geração em geração, especialmente pelas mulheres indígenas. E podem ser apreciadas nessas feiras e mercados enquanto as artesãs confeccionam coletes, blusas, gorros, cachecóis e pantufas reforçadas para o frio da região. Artigos de madeira, especialmente utilidades domésticas e souvenires, também são uma opção nas bancas.

Segundo dados de 2022, cerca de 13% da população do Chile se identifica como indígena. São 2.185.792 pessoas. Número que vem diminuindo ano a ano e, segundo a guia de turismo Maria José Gavia, que integra esse grupo, faz com que povos como os chilotas, de raízes e tradições muito específicas, busquem se reinventar para manter vivos seus costumes.

E não só no artesanato. Uma das preocupações em Chiloé é conservar o estilo de vida baseado em métodos ancestrais de produzir a própria comida, sem adubos químicos e fazendo o giro das culturas para preservar a terra.

Uma das incentivadoras desse modo de viver é a agricultora huilliche Sandra Naiman, 43. Há oito anos, depois de ser demitida da indústria de salmão, ela cuida de um sítio de 5 hectares herdado de seus avós maternos, no povoado de Changüitad, em Quinchao. Detalhe: sozinha. Ao contar como é seu trabalho, ela pede para não se pôr reparo no estado de suas unhas. E justifica: "A terra produz, mas tem que botar a mão nela".

Sandra aprendeu a função com os mais velhos do povoado e hoje ensina aos mais jovens as técnicas de produção orgânica que usa em sua propriedade. Ela planta hortaliças em estufa e ao ar livre, algumas variedades de batatas e o alho chilota, ou alho gigante, mais suave que o comum, que ela vende para uma empresa que o exporta em forma de pasta para o mercado espanhol. Sandra também cria ovelhas, porcos e galinhas, cultiva quase uma centena de variedades de flores e tem em suas terras um mirante de dar a mais pura inveja a qualquer cidadão morador das grandes cidades.

Outro lugar que vale conhecer é Chelín, uma ilha cheia de história, de 12 km² e cerca de 250 moradores, aonde se chega de barco pelo Mar Interior em um percurso de uma hora e quarenta minutos (se a saída for do Tierra Hotel, que oferece a excursão).

Pelo caminho até a ilha, é muito comum avistar nas águas criações de peixes e mariscos, a maioria da indústria salmoneira de países como a Noruega, atraídos pelo baixo custo de produção devido à falta de regularização da atividade no Chile, conforme explica a guia Maria José Gavia. Também se pode cruzar com um ou outro barco de pescadores artesanais de frutos do mar, robalos, trutas e mexilhões.

Em Chelín fica mais uma igreja patrimônio da humanidade, de Nossa Senhora do Rosário, estilo neoclássico e colunas com pintura que imita mármore. A história do templo é contada em um pequeno museu anexo, onde também se pode conhecer as técnicas utilizadas na sua construção, sem pregos convencionais.

O mais interessante na ilha, porém, talvez fique a 200 metros da igreja: um cemitério com lápides em forma de pequenas casas de madeira típicas da vila, construídas pelos antigos moradores locais para proteger seus mortos dos aspirantes a bruxos.

Diz a lenda — uma das centenas existentes no imaginário de Chiloé — que uma das provas para se tornar bruxo era se dirigir ao cemitério, retirar a pele do lado esquerdo do peito até a barriga do cadáver, de preferência mulher, curtir a pele em ervas e fazer dela uma manta, a "makuñ", que permitiria voar.

Crendo ou não no perigo lendário, diz a guia Ninoska Galarce, na dúvida, o melhor a se fazer era reforçar o novo aposento do ente querido, montando a miniatura de casa sobre o túmulo. Assim pensavam os moradores de Chelín de até poucas décadas atrás.

Nas águas entre Chelín e a vizinha Quehui (esta ilha um pouco maior, com 700 habitantes) é possível fazer um passeio de caiaque ou pequenos barcos motorizados, em meio a famílias de lobos-marinhos e patos, além de gaivotas em suas rasantes. Dependendo da época e da sorte, o turista pode dar de cara com golfinhos ou algum pinguim.

Na ilha, também dá para caminhar por um bosque, em uma trilha curta que começa por detrás do cemitério, passando por um mirante com vista panorâmica da ilha, ou à beira da praia, para se conhecer um pouco mais das casas e do jeito de viver locais. É só um exemplo das atividades ao ar livre disponíveis no arquipélago, que tem ainda mais de uma dezena de rotas por florestas e pampas, em passeios de meio-dia ou dia inteiro, de níveis fácil e moderado, e opções para os aventureiros em busca de trekkings.

A recomendação para esse tipo de turismo no arquipélago é trazer na bagagem roupas de uso em camadas, jaqueta à prova d'água e corta-vento. Mas é bom se preparar também para o sol, com boné ou chapéu, um bom óculos de sol e protetor solar, renovado sempre que possível.

Excursões são oferecidas por empresas e hotéis, como o Tierra Chiloé, da rede chilena Tierra Hotels, que tem pacotes all inclusive com trilhas, pedaladas, cavalgadas e navegação a bordo da Wuilliche, embarcação do hotel (que leva até Chelín, por exemplo).

Instagram/Reprodução

O hotel Tierra Chiloé — cuja rede ainda conta com unidades no deserto do Atacama e na Patagônia — fica no povoado de San José, de cerca de 300 habitantes, a 40 minutos do aeroporto de Mocopulli (há traslado de van) e a meia hora do centro de Castro. Sua arquitetura é inspirada nas tradicionais palafitas da ilha, e ele fica de frente para o pantanal de Pullao. A partir dele, é possível ver, ao fundo, a Cordilheira dos Andes e o vulcão Michimahuida.

A arquitetura do lodge foi pensada justamente para se adaptar ao clima instável de Chiloé, usando das mesmas técnicas locais para aproveitar ventilação na épocas de calor e preservar calor durante o frio.

Todo o exterior foi feito com madeira local e sua textura da fachada é inspirada nas tradicionais tejuelas, telhas de madeira que se tornaram referência cultural em todo país.

O Tierra Chiloé tem pacotes de 3 a 7 noites e várias modalidades de habitações — todas all inclusive: suíte (single e duplo), apartamento Rilán (single e duplo) e apartamentos Pullao (single, duplo e crianças). Os preços para a temporada 2022-2023 (válidos até 30 de abril de 2023), vão de US$ 3 mil a (3 noites) a US$ 14,3 mil (7 noites). Para mais informações, acesse o site do hotel.

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