Expedição amazônica

Cruzeiro na selva tem rio com piranhas, encontro com jacarés e formigas gigantes e aventura em cidade fantasma

Giacomo Vicenzo De Novo Airão, Amazonas

É noite na Floresta Amazônica. O barco singra as águas do Rio Negro, tão escuras quanto a madrugada quente e úmida. Deitado na minha cabine (refrigerada, ainda bem), ouço o casco batendo nas marolas e a profusão de sons que emana da selva.

Lá fora, no espelho do rio há movimentações e raros pontos brilhantes em meio à escuridão — são quase "vagalumes" que piscam sobre as águas. Lindos, mas sei que podem ser os olhos do jacarés que espreitam nossa embarcação. Essa é a casa deles.

Estou protegido. A fera que tanto amedronta turistas incautos também dá nome ao barco que nos leva floresta adentro. O Jacaré-Açu é uma das embarcações da Expedição Katerre, proposta de turismo socioambiental que permite desbravar com conforto uma das regiões mais inóspitas deste imenso rincão verde do país — por vezes, era preciso navegar por horas para cruzar com outros barcos ou locais habitados.

Estamos navegando pela região do Arquipélago de Anavilhanas, um labirinto aquático formado por 400 ilhas, 60 lagos e centenas de canais e furos, os caminhos estreitos que atravessam os igapós. Nossa missão: conhecer comunidades, cachoeiras, trilhas e o vasto Parque Nacional do Jaú. E mais: chegar até uma cidade fantasma escondida na floresta.

Foram cinco dias explorando — com jacarés, piranhas e botos como companheiros de viagem — as margens e as águas profundas e escuras do Rio Negro. Maior afluente da margem esquerda do rio Amazonas, ele é uma via de vida e trânsito para as comunidades.

Tão grande que parece o mar, submergir no Negro é como abrir os olhos no ponto mais alto no véu da noite: não é possível ver mais que um palmo à frente. Pronto para esse mergulho na Amazônia? Vamos lá.





Árvore sagrada e de cara com a onça

A expedição começa em Novo Airão, cidade a cerca de três horas de Manaus. Aguardamos o embarque à beira do Rio Negro, no restautante flutuante Flor do Luar. O nome do local faz referência a Margaret Mee, ilustradora botânica inglesa que percorrreu os arquipelágos da região para encontrar e pintar a flor-da-lua, espécie de cacto raro que desabrocha em uma única noite do ano por apenas 12 horas.

Durante a expedição, fizemos como ela. Descíamos do Jacaré-Açu para adentrar em muitas dessas ilhotas que salpicam Anavilhanas. Sempre durante o dia (por segurança), em trilhas que cortam a floresta. Não presenciamos o raro evento do desabrochar da flor-da-lua, mas tivemos a sorte de topar com a lendária árvore sumaúma.

Considerada sagrada na Amazônia, ela é um colosso. Sua copa se perde no céu enquanto a base tem diâmetro capaz de "abraçar" vários homens. "Pelo tamanho desta aqui, ela deve entre 300 a 400 anos", explica o Josué Pedro Basílio, de 49 anos, guia há quase três décadas.

Basílio é um homem de grandes histórias. Já foi seringueiro junto de seu pai e também uma espécie de colaborador do Exército Brasileiro nos treinamentos de sobrevivência e guerra na selva. Em uma de suas aventuras pelas águas do Rio Negro, chegou a enfrentar uma onça-pintada apenas com um remo.

Era eu ou ela, achei que fosse morrer. Mergulhava pela canoa e batia o remo na onça. Quando ela ataca, não desiste da presa"



Grutas na selva e ritual com formigas

Conviver com alguns insetos — é verdade que bem menos do que imaginei com a cabeça de alguém da cidade grande — e outros animais é um preço para se estar em meio a maior floresta tropical do mundo.

Na trilha feita nas Grutas do Madadá, por exemplo, é possível ver morcegos que vivem entre os rochedos e sobrevoam entre as frestas. O caminho faz parte do percurso de pouco mais de duas horas que tem intensidade moderada. É possível fazer sem grandes aptidões físicas, mas saiba que precisa pular algumas pedras e se espremer entre passagens estreitas.

Em um certo momento, o guia para perto de um toco de árvore e raspa o seu facão. Por quê? A gente só entende quando formigas grandes e pretas começam a sair da toca e correr em direção à área em que ele raspou a madeira.

A formiga tucandeira é usada em um ritual de passagem indígena quando os rapazes completam 15 anos.

Eles colocam as mãos em luvas feitas de folhas cheias do inseto. Recebem picadas das formigas e não podem tomar remédio para dor depois" Josué Pedro Basílio, guia

Durante todo o caminho, vimos ainda de perto árvores e plantas de variadas espécies e algumas raízes tão vermelhas quanto sangue que cortavam o solo escuro da floresta.

No fim do trajeto, o cenário idílico de um igapó (área de terra em região alagada) com uma grande árvore e rochas que pareciam ser esculpidas foi como a recompensa pela caminhada e as picadas dos carapanãs — como são chamados os pernilongos na região.

Em busca da cidade fantasma

Nossa jornada segue rio acima em direção a Velho Airão, a "cidade perdida" que foi dominada pela floresta e hoje é território de mistérios e lendas. O guia Josué antecipa a maior delas, sobre o abandono do local por todos os moradores.

Dizem que um padre rogou uma maldição e, em seguida, a cidade foi tomada por formigas de fogo. Os bichos atacaram a população e crianças chegaram a morrer pelas picadas"

Depois de uma rápida pescaria de piranhas próximo a Velho Airão, atracamos em terra firme.

O cenário corresponde à fama de "fantasma". No percurso, encontramos velhas construções totalmente tomadas por plantas. Paredes de uma grande construção estão dominadas por uma árvore que se enrosca e parece apertar o concreto — o guia explica que é uma espécie de árvore que "enforca" e tomou a estrutura para si.

Giacomo Vicenzo/UOL

Em meio às ruínas, ainda é possível notar inscrições envelhecidas da Fábrica de Palença de Lisboa. São resquícios da época de construção da cidade com materiais que vinham de Portugal.

Antes de se tornar uma cidade fantasma, Velho Airão foi um local estratégico para o chamado ciclo da borracha, que teve seu auge entre 1879 e 1912 — até que começou a ser desabitada depois de uma mudança no mercado de compra de látex pelos ingleses.

De fato, caminhar nas ruínas da cidade é como entrar em uma cena de filme apocalíptico, com as construções abandonadas entre a mata densa e seringueiras. "Olhem essas marcas", aponta o guia sinalizando pequenos buracos no relevo de uma velha estrutura. "São de quando a marinha treinava tiro na cidade já desabitada".

No cemitério esquecido, túmulos ainda preservam os nomes e datas de morte dos antigos habitantes. Almas que, mostram as lápides, descansam ali desde 1912.

Giacomo Vicenzo/UOL

Incas na Amazônia?

Próximo à cidade fantasma, outro segredo repousa às margens do rio: são petróglifos, inscrições entalhadas em pedras. "A fala da região é que são dos Incas, pois as aldeias só fazem pintura, e essas marcas têm mais de 500 anos", conta Ruy Carlos Tone, sócio e fundador da Expedição Katerre, que nos acompanhou durante toda a viagem. "Porém, o arqueólogo Eduardo Goes, que estuda a região, me disse que, na verdade, podem ser de um povo antigo que vivia na bacia do Rio Solimões".



Jacarés na escuridão e praias

Chegou um dos momentos mais emblemáticos da jornada: a focagem noturna de jacarés. É a chance de ver bem de perto estes animais que despertam um misto de medo e fascínio.

Para chegar até eles, saímos do Jacaré-Açu em entramos na voadeira, espécie de canoa de alumínio movida a motor que nos levava sempre entre as estreitas ilhas alagadas.

Embarcados à noite e próximos às águas escuras, a única luz era a das estrelas. Demora um tempo até que os olhos se acostumem e alguns contornos possam ser vistos em meio à escuridão.

O guia orienta que todos desliguem as telas dos celulares. Ele aponta a lanterna às margens do rio. A expectativa é que os olhos dos jacarés e das cobras brilhem com a luminosidade.

Ficamos ali algum tempo à "caça" dos olhos brilhantes. E quando os barquinhos se aproximaram de ramos de mato alto vimos o amarelo-brilhante de um jacaré-açu filhote. Missão cumprida.

Divulgação

Diferente da noite, hora dos predadores amazônicos, durante o dia aproveitamos para colocar o bronzeado em dia em alguns bancos de areias que se formam no Rio Negro. Parece que estamos em praias do mar, mas sem ondas e em águas pra lá de escuras.

Por outras vezes, o barco para em algum trecho para nadarmos. É sempre no meio do rio porque nas margens há maior risco do dar de cara com algum animal como o jacaré — mas em mais de uma década de expedição, o guia garante nunca ter acontecido nenhum incidente.

O candiru, conhecido como peixe vampiro e temido porque pode invadir a uretra, também existe nas águas que nos banhamos, mas o guia tranquiliza e diz que é só nadar com roupa de banho que não há perigo.

A água passa uma sensação sempre quente e varia de temperaturas de 23 Cº a 28 Cº — é essa mesma água que usamos no barco para tomar banho e escovar os dentes, que são bombeadas para o navio.

Na Ilha dos Macacos

Quase ao fim de nossa expedição, navegamos nas águas do Parque Nacional do Jaú, onde está a maior variedade de peixes elétricos do mundo — obviamente, é proibido pescar.

A unidade de conservação ambiental abrange, além do rio com mesmo nome do parque, o Unini, Paunini, o Rio Negro e o Carabinani, onde conhecemos uma grande corredeira que movimentava tanto a água que a fazia espumar. Em um ponto mais calmo, foi possível relaxar em suas pedras e quedas d´água.

Na região, conhecemos Eduardo de Souza, de 52 anos, conhecido como Sibá, guia e fundador de uma comunidade ribeirinha. A bordo de seus conhecimentos, desembarcamos da voadeira na Ilha do Macacos, onde vivem 11 dos primatas.

Hoje, Sibá ajuda na preservação da espécie, porém, no passado eles já estiveram em seu prato:

Já comi macaco, tartaruga, mas hoje entendo a importância desses animais, eles fazem parte da minha vida e do meu trabalho"

A chegada do turismo ajudou Sibá a se tornar um protetor da região e dos animais. Por conta própria, ele ajuda na desova de quelônios (tartarugas) da região, cavando em uma ilha para elas desovarem e fiscalizando para que pessoas da comunidade não as capturem.





Comunidades e suas histórias

Durante a viagem, fizemos visitas a comunidades ribeirinhas. Era sempre como adentrar em um mundo à parte: os moldes geralmente se parecem, com o sustento por meio da produção de farinha de mandioca, que é vendida na cidade e dá aos morados recursos para comprar itens como sabão, café e açúcar — o resto é obtido com o roçado e a pesca.

Apesar da distância da cidade, a Comunidade Ribeirinha Mirituba, conta com uma escola, que entrará no projeto Educação Ribeirinha feito pela Expedição Katerre em parceria com a prefeitura de Novo Airão para a reforma de escolas.

No local, conhecemos Maria de Fátima, cujo nome indígena é Katymyry Apurinã, de 63 anos, a última pessoa do local a falar a língua de seu povo apurinã. "Os mais jovens não se interessam em aprender", lamenta.

Na comunidade onde vive Sibá, visitamos uma escola, já reformada pela iniciativa, e acompanhamos o fim de uma das aulas.

Acompanhar de perto os olhos atentos dos alunos e a receptividade com os visitantes nos levam a conhecer as pessoas que residem e ajudam a manter a vida na maior floresta tropical do mundo, um terreno que nos parece inexplorado, quase desconhecido, mas que para eles é a extensão de seu quintal.

Mantendo a Amazônia viva e de pé

Três projetos que ajudam na preservação de espécies e na educação socioambiental das comunidades ribeirinhas

Divulgação

Bicho de Casco

Criado em 2003, o projeto ajuda na preservação de tartarugas e outros quelônios, apoiado pela Expedição Katerre, que disponibiliza transporte para a operação. A iniciativa já devolveu à natureza mais de 22 mil animais vítimas de tráfico. O momento de proteção começa antes dos ovos eclodirem e termina após, quando estão mais fortes e prontos para a soltura. Sete praias são monitoradas e seis comunidades fazem parte do programa.

Giacomo Vicenzo/UOL

Educação Ribeirinha

Yudi Tairo de Oliveira, de 9 anos, gosta de pintar. "O último que eu vi na minha mente foi a frente da escola", conta. O menino está numa escola nova, construída pelo projeto, que visa desenvolver a educação básica em 25 comunidades de Novo Airão, construindo e reformando edifícios escolares. O desenvolvimento do projeto tem a parceria do hotel de selva Mirante do Gavião, da Expedição Katerre e da Prefeitura de Novo Airão.

Divulgação

Fundação Almerinda Malaquias

Murais pintados pelos alunos com elementos da cultura local dão boas-vindas na FAM. Ali, eles têm cursos como agroecologia e biomas e atuam na limpeza de praias e trilhas. Um foco é a geração de renda pela capacitação de jovens e adultos nos ofícios de marchetaria, reciclagem e produção de sabonetes. A ONG atende 40 famílias nas oficinas e mais de 160 crianças nos projetos educacionais.

Topo