Da borracharia ao "The Cal"

Há 60 anos, Calendário Pirelli documenta a história da moda e segue evolução de padrões

Adriana Negreiros Colaboração para o Nossa

Há 60 anos, no final de 1963, uma empresa italiana de borracha anunciou um dos produtos de marketing mais bem sucedidos de todos os tempos: o Calendário Pirelli, ou simplesmente "The Cal". Ao longo de seis décadas, a empresa produziu 49 edições, com pausas provocadas por crises econômicas e sanitárias, como a pandemia de covid-19.

Os detalhes sobre a edição mais recente, de 2023, foram divulgados em novembro do ano passado. Produto de origem popular — as folhinhas com mulheres em trajes ínfimos eram comuns em borracharias de beira de estrada —, o Calendário Pirelli firmou-se como um produto de luxo ao associar-se com modelos e fotógrafos da moda.

"O Calendário Pirelli é um retrato fidedigno da moda, do tempo e do comportamento", afirma a consultora de moda e imagem e professora de história da moda Camila Mundell. "Cabelos molhados, maquiagem luminosa e roupas com brilhos desenham corpos que narram histórias de seu tempo. O tempo do calendário é o tempo da moda", reforça o comunicólogo Jackson Araújo, especialista em comportamento de moda e mídia.

Mas que tempo é esse?

Os primórdios

Poucos produtos à venda no mercado automobilístico conseguem ser menos charmosos do que um pneu — quem sabe, escapamentos e baterias. Chamar a atenção para as qualidades de uma marca de revestimento de borracha para rodas, portanto, talvez seja um desafio até para o maior de todos os publicitários.

Em 1963, essa dificuldade estava angustiando um grupo de executivos da subsidiária britânica da Pirelli. Como fazer a empresa destacar-se em meio à concorrência? O que dizer sobre um pneu, além de que é preciso ter um estepe para o caso de furos?

Então alguém teve uma ideia envolvendo a banda de rock em pleno auge no início dos anos 1960: os Beatles.

Em novembro daquele ano de 1963, a banda lançaria seu segundo álbum, With the Beatles, que traria "Please Mister Postman" como a última faixa do lado A. Mas, além das músicas, havia algo a mais de muito atraente naquele LP: a foto de capa, com um jogo de luzes e sombras que conferia refinamento e mistério aos rostos de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. O responsável por aquela imagem era um jovem fotógrafo inglês de 27 anos, Robert Freeman.

Robert Freeman parecia o homem certo para levar charme aos pneus. Se conseguira isso com quatro rapazes sem pinta de galã, o que o executivo britânico da marca italiana planejara para ele era moleza.

Como tudo começou

O plano era criar um produto que levasse a marca dos pneus, embora não tivesse relação direta com eles.

Não se sabe se, antes da proposta vencedora, outras surgiram: canecas, livros institucionais ou cinzeiros. Mas o fato é que a sugestão de um calendário com fotos de mulheres sensuais clicadas pelo mesmo fotógrafo dos Beatles foi imediatamente aprovada, com recomendação para ser executada de imediato. Assim, o ano de 1964 marca a primeira edição do "The Cal".

Embora os executivos considerassem aquela uma grande sacada, a verdade é que a ideia não era tão original assim. Em 1930, uma outra empresa ligada ao universo dos carros -- a montadora britânica Leyland -- havia lançado um calendário com fotos de mulheres, o Leyland Ladies. Mais tarde, em 1956, o fabricante de freios Mintex repetiu a estratégia.

A diferença entre esses primeiros produtos e o Calendário Pirelli era a sofisticação: não se tratava de um brinde para satisfazer eventuais instintos sexuais dos clientes da empresa, mas sim um artigo de luxo, algo mais próximo da arte do que da pornografia -- um item de colecionador, que conferia status a quem desfrutasse da oportunidade de tê-lo.

A ideia, portanto, era criar um life style associado à marca — estratégia utilizada pela moda, havia tempos.

A primeira fase: 1964-1974

Três modelos foram escolhidas para posar para Freeman: Jane Lumb, Sonny Drane e Marisa Forsyth. O cenário definido para os cliques foram as praias de Maiorca, na Espanha. Embora não houvesse nudez nas imagens, elas eram, definitivamente, sensuais.

Não à toa, dois casais formaram-se durante a viagem: Sonny envolveu-se com o fotógrafo; Marisa, com o diretor de arte Derk Forsyth. De volta a Londres, casaram-se. Somente Jane Lumb, ao que se saiba, não viveu nenhum romance durante a temporada de fotos espanhola.

A consultora de imagem e estilo Camila Mundell investiga os padrões de beleza feminina ao longo das últimas décadas e, como parte de suas pesquisas, debruçou-se sobre o histórico do "The Cal". Assim, verificou como as imagens do calendário refletem o espírito do tempo na moda e na beleza. Nos anos 1960, aponta Mundell, a moda refletia a revolução sexual em vigor — simbólico disso é o surgimento da minissaia.

Não à toa, as modelos dos primeiros anos do calendário Pirelli expõem-se ao olhar, com muitos centímetros de pele à mostra. Como aponta Mundell, essas mulheres carregam uma aparência inocente, no estilo da it girl Twiggy, incorporando uma busca por escapismo de um tempo marcado por protestos contra a Guerra do Vietnã, tensões políticas da Guerra Fria e lutas por direitos civis.

A estética do primeiro calendário repetiu-se ao longo dos nove anos seguintes, com pequenos ajustes: nos anos 1970, as cores tornaram-se mais quentes, e as modelos, mais despidas.

Em 1975, para reduzir custos, a Pirelli interrompeu a produção do calendário.

Os sexies anos 1980

Se ainda havia dúvidas quanto à associação entre "The Cal" e o universo da moda, o ressurgimento do calendário nos anos 1980 enterrou quaisquer incertezas. As fotos do calendário de 1985 ficaram a cargo de Norman Parkinson, que fez a locação parecer um bastidor de um desfile de moda — estavam lá, obviamente, as modelos seminuas, com profusão de seios e nádegas à mostra, como se aguardassem para entrar na passarela.

Os poucos tecidos que cobriam os corpos das modelos carregavam o brilho e os materiais típicos dos anos 1980 — nylon, vison e seda. Referências aos pneus foram incorporadas às imagens.

"O universo da marca é inserido de maneira sutil, para criar um lifestyle em torno do consumo do produto", explica Camila Mundell.

Em 1987, o fotógrafo Terence Donovan convocou um time de 17 modelos negras e revelava ao mundo Naomi Campbell — na época com apenas 16 anos.

Mundell observa uma mudança na maneira como as mulheres são retratadas naquela nova fase do calendário: ao contrário dos anos 1960, em que as modelos transpareciam uma malícia quase infantil, nos anos 1980 elas ganham força. "São retratadas como grandiosas e donas do próprio corpo", avalia.

Os anos 1990 a estética "heroin chic"

A edição de 1994 do calendário Pirelli reuniu algumas das modelos mais bem pagas da indústria da moda da época: Helena Christensen, Cindy Crawford, Kate Moss e Karen Alexander. Pode-se dizer que aquele foi um calendário de transição entre os atléticos anos 1980 (representados pela saudável Crawford) e seu contraponto, os anos 1990, com um padrão de elegância que privilegiava a magreza extrema e palidez, numa estética que seria conhecida como "heroin chic" e teria em Kate Moss um dos maiores ícones.

Tratava-se um reflexo das "estratégias estéticas" da época, como explica Jackson Araújo. "Todas as edições do Calendário Pirelli se aproximam da moda por fetichizar corpos (na maioria, femininos) e alimentar aspirações de glamour e perfeição", afirma.

A própria Pirelli reconhece que, em 1994, as já fortes ligações entre "The Cal" e o universo da moda tornaram-se ainda mais consolidadas.

Com um minimalismo nas cores e figurinos que se estendia aos corpos extremamente magros, as fotos do Calendário Pirelli associaram esse padrão estético ao novo tipo de mulher contemplado pela moda dos anos 1990: "orgulhosas, sexies e bonitas por dentro", como informa um comunicado da marca a respeito da publicação de 1994.

A virada do século e a busca por diversidade

O Calendário Pirelli do primeiro ano do século consolidou o sucesso das brasileiras na moda. Estavam ali, clicadas pelo lendário fotógrafo peruano Mario Testino, as modelos Ana Claudia Michels, Fernanda Tavares, Gisele Bundchen e Mariana Weickert.

Iniciava-se, assim, uma era que avançaria para uma busca pela diversidade — geográfica, mas também de corpos. A reboque do que reivindicavam, com mais força, os movimentos sociais, a moda passaria a reconhecer — e tentar ultrapassar — algumas de suas limitações. Paulatinamente, assumiria o discurso de que a moda deve ser democrática e direcionada para qualquer pessoa — independente de seu tipo físico, gênero ou idade.

Para o calendário de 2013, quando as referências ao Brasil estavam no auge no universo fashion, a Pirelli encomendou ao fotojornalista Steve McCurry uma sequência de fotos de brasileiras no Rio de Janeiro — ali havia uma modelo grávida, a modelo Adriana Lima, e também uma mulher de 63 anos, a atriz Sônia Braga.

Dois anos depois, em 2015, uma modelo plus size apareceu pela primeira vez em uma das folhas do "The Cal". A americana Candice Huffine — modelo de número 46 — posou para as lentes de Steve Meisel.

"A questão é saber até que ponto essa diversidade foi utilizada como elemento de transformação — ou se tratou, apenas, de pauta para o negócio", pondera Camila Mundell. Para Jackson Araújo, "o que se observa é um interesse em negar as desigualdades, disseminando a ideia de que o mercado já estaria trabalhando contra isso, criando a falsa ilusão de que tais problemas já foram solucionados".

2023: o retorno do glamour pós-pandemia

Assinado por Emma Summerton — uma das poucas mulheres contratadas, ao longo de 60 anos, como fotógrafa do Calendário Pirelli —, a edição 2023 do "The Cal" celebra a volta da moda após os piores momentos da pandemia de covid-19.

O especialista em comportamento de moda e mídia Jackson Araújo observa, na publicação, inúmeras referências a este momento ímpar da alta costura: estão, ali, os ambientes de cumplicidade feminina no set com as modelos. Também identifica a opulência e a extravagância das passarelas e dos editoriais de moda.

"Trata-se de uma necessidade de afirmar que a moda não está morta. O clima de sonho e fantasia voltou. Depois de dois anos com os corpos vestindo pijamas, a moda precisa oferecer glamour, brilhos, roupas caras empacotadas numa atmosfera delirante", avalia.

"O Calendário Pirelli tem uma importância documental inquestionável. É um arsenal de informações sobre comportamento, história, cultura e estética de diferentes tempos", avalia a consultora Camila Mundell. A expectativa dela, agora, é de novas folhinhas ainda mais conectadas com a transformação — e que sejam cada vez mais diversas e inclusivas.

Revoluções da moda

Norbert Schoerner

Lady Gaga volta às origens ao lado de mentor do famoso "vestido de carne"

Ler mais
Bob Wolfenson

Bob Wolfenson, 50 anos de fotos: de Lula e Sônia Braga às capas da Playboy

Ler mais
Reprodução

Da rebeldia ao look sensual, biquíni virou ícone graças a musas brasileiras

Ler mais
Topo