O SENHOR DOS NÓS

Em tempos sem pandemia, o Círio de Nazaré, uma das maiores celebrações católicas do Brasil, reúne mais de 2 milhões de pessoas nas ruas de Belém do Pará. No centro deste espetáculo de fé, está a imensa corda disputada pelos fiéis. Numa via crucis de dor, lágrimas, calor e suor, carregá-la ou simplesmente encostar nela é o ápice da devoção a Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da Amazônia.

Distante mais de 3.500 quilômetros dali, Seu Leopoldo Bittencourt, de 69 anos, sente orgulho de fazer parte desta história. É de suas mãos que, há 8 anos, nascem os pesados nós que fazem parte da corda-símbolo da procissão.

É em um pequeno rancho de madeira no bairro Salseiros, na área rural do município catarinense de Itajaí, que ele segue a tradição de feitura de nós em cordas de sisal. Já aposentado, Leopoldo viu no ofício uma forma de complementar a renda e ficar em casa, mais perto da esposa com saúde frágil. E lá se vão 25 anos de dedicação. Hoje, ele é o único que domina a arte na região.

O ancestral ofício dos pescadores lhe foi passado por um amigo. Leopoldo começou trançando os nós em laços de boi. Há oito anos, recebeu, por intermédio da fábrica de cordas onde o filho dele trabalhava em Santa Catarina, a encomenda do seu maior desafio: fazer os nós da corda dos promesseiros do Círio de Nazaré - com amarras fortes o bastante para sustentar os 800 metros deste símbolo da devoção e suportar a ânsia dos milhares de fiéis que se espremem para segurá-la.

Não foi tarefa fácil. Seu Leopoldo teve que aprender a fazer esse nó mais intrincado e que demanda um trabalho de força e paciência. Cada nó precisa de pelo menos oito tiras de sisal para ganhar forma e rigidez e pode chegar a pesar até 48 quilos. No total, a corda do Círio é composta com 32 deles.

Para esse trabalho, em 2020 ele ganhou o reforço da filha, Joiciane, de 48 anos, que deixou o emprego de professora para ajudar o pai. Ela é a única dos quatro filhos - os demais são homens - e nove netos a manifestar interesse em perpetuar o seu legado.

A produção é lenta e cansativa. Cada nó é apertado à mão, numa rotina que toma sete horas por dia. Em um dia, Seu Leopoldo e Joiciane produzem no máximo quatro. Para facilitar, criaram uma estrutura com um carrinho e um gancho, onde as cordas são penduradas. Eles aliviam o peso e ajudam na torção das tiras.

Tanto nos laços de boi quanto nos gigantes nós do Círio, é importante que eles fiquem bem apertados para aguentar o tranco e evitar que se soltem na hora do uso. "Há um segredo para isso, mas não revelo de jeito nenhum", diz Leopoldo.

A produção dos nós do Círio de Nazaré começa no início de agosto e leva pelo menos 15 dias. O artesão recebe os pedaços de sisal e, à medida que termina uma quantidade de nós, entrega e busca o próximo material. São várias viagens de carro, a uma distância de 20 km de casa, até a conclusão do último nó.

A corda do Círio é considerada um dos símbolos da procissão. Seus 800 metros são divididos em dois pedaços para as principais procissões da festividade: a Trasladação, na noite anterior do segundo domingo de outubro; e o próprio Círio, na manhã seguinte.

Tradicionalmente, a corda compõe a estrutura da berlinda, o oratório que leva a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Nazaré. A função do nós é conectar as duas partes e garantir estabilidade e segurança no deslocamento da estátua sagrada. Os fiéis disputam um lugar próximo à corda durante a caminhada entre a Catedral de Belém até a Basílica Santuário. Ao final, eles levam pedaços como amuleto.

Este ano, não haverá procissão por conta da pandemia. Mas a tradição de confecção desse ícone da festa católica foi mantida. A corda foi fatiada e está em exposição pela capital paraense.

Devoto de Nossa Senhora Aparecida e de Nossa Senhora de Nazaré, Seu Leopoldo as considera "a mesma mãe" e deseja produzir os nós até quando tiver forças, como uma forma de agradecimento a graças alcançadas. Para o artesão, só o fato de fazer um trabalho que viaja quase 3.500 quilômetros, já é o seu milagre.

Publicado em 10 de outubro de 2021.

Edição: Eduardo Burckhardt
Texto: Luciana Cavalcante
Design: Carol Malavolta
Fotos e vídeos: Anderson Coelho
Foto adicional (devotos com a corda): Brazil Photos/Gettyimages