Santos Juninos

Entre raízes pagãs e religião: as histórias que cercam as Festas Juninas e seus padroeiros

Felipe van Deursen Arielle Martins/UOL

Podemos até esquecer de vez em quando, entre uma dose e outra de quentão, mas a festa junina é uma celebração ancorada nas datas comemorativas de três santos católicos, Antônio, João e Pedro. É uma festividade que chegou com a colonização portuguesa e aqui ganhou elementos indígenas e africanos que lhe deram uma marca única, bastante ligada ao Brasil agrário.

Mas as festas juninas têm, também, raízes nada cristãs. Fogueiras, por exemplo, sinalizavam a chegada do solstício de verão no Hemisfério Norte, que acontece em junho e marca os ciclos das colheitas. A Igreja teria assimilado essas práticas e por isso determinou o 24 de junho como data de nascimento de São João Batista. Assim, essas antigas festividades passavam a ganhar contornos católicos. No Brasil, junho também é mês de solstício, mas de inverno, e é período da colheita do milho e do amendoim. Então, o elemento rural permaneceu no centro da celebração.

Para o folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), as festas juninas são recriações de festividades europeias embebidas de um clima ritualístico com aspectos religiosos, míticos e folclóricos. A começar pela fogueira, um elemento típico pagão, mas que também teria uma raiz bíblica. Nisso, a biografia e os mitos em torno dos três santos deram o caldo necessário à mistura da festa. Confira a seguir.

Arielle Martins/UOL

João, o pregador revolucionário

O santo que é sinônimo de festa junina está longe de ser uma exclusividade católica. João é um personagem importante no islamismo e em outras religiões com bem menos seguidores, como druzismo e fé baha'í.

João foi um pregador itinerante que atuava na área do Rio Jordão, na fronteira dos atuais Israel, Palestina e Jordânia. Costumava batizar seus seguidores (Jesus entre eles) nas águas do rio, o que inquietava as autoridades romanas que comandavam a área.

O historiador Flávio Josefo, que registrou muitos dos importantes acontecimentos da região, escreveu em "Antiguidades Judaicas" que o governador Herodes Antipas temia que a grande influência de João sobre o povo pudesse levantar uma revolta. Isso acabou levando à execução do santo.

Segundo a tradição cristã, João condenou publicamente Herodes por trocar a esposa por Herodias, mulher de seu irmão. Isso lhe rendeu a prisão e, depois, a decapitação, a pedido de Salomé, filha de Herodias.

A cabeça de São João Batista se tornou uma importante relíquia cristã ao longo dos séculos, especialmente na Idade Média, quando o culto a supostos restos mortais de santos era comum. Uma igreja em Roma, uma catedral na França e uma mesquita na Síria já alegaram possuir a cabeça de João.

OUTRAS FESTAS JOANINAS

Devido às raízes pagãs, a nossa festa junina acaba sendo uma das diversas festividades que acontecem no mundo nessa época em torno do santo e do solstício, ambos símbolos de renovação. A Fête de la Saint-Jean-Baptiste é o feriado nacional do Quebec, no Canadá. Na Estônia, a data tem o fator extra de marcar a expulsão dos nazistas na Segunda Guerra. Nos outros países bálticos e escandinavos, elementos pagãos são evidentes. Na Lituânia, as pessoas saúdam o nascer do sol, saltam fogueiras e lavam o rosto com o orvalho da manhã.

FOGUEIRA DE SANTA ISABEL

Além das origens pré-cristãs das fogueiras nas festas de junho, existe outra explicação, que remete ao nascimento do santo. Ao dar à luz, Isabel, mãe de João, teria acendido uma fogueira para avisar Maria, que estava grávida de Jesus. Não há menção a isso na Bíblia, no entanto: o "Evangelho Segundo Lucas" se limita a informar que Isabel e Maria eram parentes, ficaram grávidas na mesma época e que Maria visitou Isabel. Mas o cristianismo popular difundiu essa versão, dizendo que a fogueira foi acendida em 24 de junho para avisar da boa nova.

ESTANDARTES JUNINOS

As bandeirolas juninas são muitas vezes feitas a partir de imagens de santinhos, cartões colecionáveis, muito populares até meados do século passado, com orações e ilustrações de santos. Antônio, em geral, aparece segurando o menino Jesus, enquanto João é uma criança pueril, de cabelos encaracolados. São figuras que refletem a visão popular desses homens e funcionam como um recorte específico de suas hagiografias (biografia do santo).

Mas esses santos aparecem de diversas outras formas na iconografia católica. Pinturas renascentistas, por exemplo, exibiam um João adulto, forte e seguro em pregações e batizados (ou então sua cabeça em uma bandeja oferecida a Salomé). Já Antônio foi retratado operando muitos dos seus milagres.

São cenas que não costumam aparecer nas festas juninas, pois a infância inocente de João ou um Antônio amoroso com o menino Jesus são imagens que se associam mais facilmente aos temas das festas de solstício. Um menino angelical combina mais com uma festa de renovação, fartura e purificação do que uma cabeça decepada.

Quanto a Pedro, não há muitas variações. Descoberta em 2010, a imagem mais antiga de que se tem notícia do santo data do século 4º d.C. e já o mostrava como um homem velho, barbudo, de semblante sério. Na Idade Média, ele ganhou as chaves para guardar o céu, mas, desde os primórdios da arte cristã, pouca coisa mudou.

Antônio, o orador brilhante

Dos três santos juninos, Antônio é aquele de cuja vida mais temos detalhes históricos. Primeiro porque ele viveu há apenas 800 anos — e não há 2 mil, como João e Pedro. Segundo, e muito importante, porque Antônio era de família rica, o que significa, em geral, mais documentos, cartas e registros para a posteridade. Nós o conhecemos tanto pelo local de nascimento ("de Lisboa") como de morte ("de Pádua").

Nascido no seio de uma importante família portuguesa em 1195, ele iniciou cedo os estudos religiosos. De Coimbra, resolveu migrar para o Marrocos e evangelizar os mouros. Naquela época, a Península Ibérica ainda vivia o processo da chamada Reconquista, e os muçulmanos dominavam um pedaço do sul dos atuais territórios de Portugal e Espanha.

Mal chegou ao Marrocos e Antônio caiu de cama. Precisou voltar, mas uma tempestade empurrou seu barco até a Sicília. Ficou por ali, com seus companheiros da Ordem dos Franciscanos, e depois se mudou para o norte, onde seu intelecto e seus sermões chamaram atenção do próprio fundador da ordem, Francisco de Assis.

Antônio pregou na Itália e na França. Morreu em 1231 e já no ano seguinte foi canonizado. Anselm Grün, monge alemão e autor de centenas de livros de religião e espiritualidade, chegou a afirmar que "Antônio é, de todos os santos, possivelmente o mais amado pelo povo. Os italianos o chamam simplesmente de Il Santo".

O CASAMENTEIRO

Ao Brasil, a veneração a Santo Antônio chegou com os portugueses, que o viam como casamenteiro. Uma série de costumes nasceu disso. Um deles, o de colocar a imagem do santo de cabeça para baixo, surgiu da lenda de uma jovem que deixou a imagem na janela de casa, à espera de um noivo. Não foi atendida, então jogou a estátua na calçada. Mas ela caiu em um rapaz, que se apaixonou por ela. A fama de casamenteiro ficou tão grande no Brasil que sua data comemorativa, 13 de junho, inspirou a criação do Dia dos Namorados. Nos anos 1940, uma loja de São Paulo queria incrementar as vendas, ruins nesse mês. Então uma agência criou uma propaganda para namorados trocarem presentes em 12 de junho. Deu certo.

OUTROS MILAGRES

Antônio é um santo de várias lendas e vários milagres, não só daqueles relacionados ao matrimônio. Para muitos, ele é o santo dos objetos perdidos. Pinturas, e os estandartes juninos, o mostram com o menino Jesus. A tradição surgiu da história de um conde que hospedava Antônio e entrou em seu quarto quando viu um clarão, achando que fosse um incêndio. O homem ficou fascinado: Antônio segurava um bebê que irradiava uma luz resplandecente. Antônio também costumava falar aos cátaros (ou albigenses), seita que tinha influência na Itália e na França. Certa vez, ele tentava pregar, mas ninguém lhe dava bola. Dirigiu-se aos peixes, que colocaram a cabeça para fora da água. Ao ver isso, muitos cátaros, impressionados, abandonaram suas crenças.

Pedro, o primeiro papa

Na tradição popular, ele é o chaveiro do céu. No cristianismo, é um dos pilares da Igreja. Pedro era, ao lado do irmão André, um pescador da Galileia, região que hoje corresponde ao norte de Israel. Tornou-se um dos apóstolos de Jesus e, segundo a Bíblia, foi responsável pela primeira conversão de um pagão.

De acordo com as primeiras crônicas cristãs, Pedro fundou a Igreja de Antioquia, na atual Turquia, e de lá viajou para difundir o movimento na capital do Império Romano, ao lado de Paulo. Bispo de Roma, Pedro é considerado o primeiro papa, embora essas hierarquias não existissem no século 1º d.C. "Chamar Pedro de 'bispo de Roma' é um anacronismo: o conceito de um único indivíduo presidir a comunidade cristã local não surgiu durante a vida de Pedro nem com seus imediatos sucessores", lembra Michael Walsh, autor de diversos livros sobre a história da Igreja, no "Dicionário de Papas".

Até os anos vividos em Roma são motivo de controvérsia entre alguns ramos do cristianismo. Martinho Lutero, no século 16, foi um dos tantos que questionou isso.

Hoje, a maioria dos historiadores acredita que, apesar da falta de evidências mais sólidas, é provável que Pedro tenha sido martirizado em Roma na época do imperador Nero, que teria culpado os cristãos pelo incêndio que devastou a cidade no ano 64. Para a tradição católica, Pedro foi crucificado de cabeça para baixo na colina onde hoje fica a Basílica de São Pedro, no Vaticano.

E SÃO PAULO?

A Igreja não lembra apenas o martírio de São Pedro no dia 29 de junho, mas também o de São Paulo, executado em Roma na mesma época. Paulo de Tarso foi o homem que deu forma ao cristianismo em seus primeiros séculos, ao espalhar os ensinamentos de Jesus para os gentios que viviam longe da realidade dos judeus da Palestina.

Mas por que só Pedro é lembrado nas festas juninas? Alguns argumentam que Pedro foi um simples pescador, que conviveu com Jesus, enquanto Paulo era um cidadão romano, um fariseu privilegiado, que se converteu só depois da crucificação. Biograficamente, Pedro teria mais apelo.

É possível que essa predileção seja herança dos portugueses. São Paulo não é padroeiro de nenhuma cidade importante de Portugal. Antônio e João, de duas. Mesmo São Pedro, padroeiro de Évora, acaba ofuscado por São João, que tem a festa mais popular da cidade alentejana. Já Antônio, de família rica e tendo vivido mais mil anos após Jesus, é o mais querido de Lisboa, é claro. Conquistou o povo - sendo que o padroeiro da capital é outro, São Vicente.

O MÊS DOS SANTOS

  • São José de Anchieta

    Padre jesuíta do século 16, nasceu na Espanha e morreu no Brasil, onde atuou como catequizador, poeta, dramaturgo e tradutor. Participou da fundação de São Paulo, do Rio de Janeiro e da cidade que leva seu nome, no Espírito Santo.

  • São Luís Gonzaga

    Religioso italiano do século 16. De família aristocrática, abriu mão das riquezas e se tornou jesuíta. Morreu de peste aos 23 anos e é santo protetor dos estudantes e das vítimas da aids.

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