Ipanema, nossa garota

Palco de pequenas e grandes revoluções, praia ajudou a moldar a cultura do Rio de Janeiro - e do Brasil

Por Yasmin Santos Colaboração para Nossa, do Rio de Janeiro Getty Images/iStockphoto

Até a década de 1930, aristocrática era a Tijuca. Ipanema não passava de um areal desabitado, isolado da cidade. Era barato de se viver, o que atraiu gente com pouca grana e muita criatividade. Pode não ter sido o berço, mas conquistou, especialmente nos áureos anos 1950 e 1960, o coração de uma série de personalidades da cultura brasileira, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Rubem Braga, Millôr, Leila Diniz, Danuza Leão, Zuzu Angel.

A mítica praia angariou adeptos fiéis e foi palco de revoluções na música, literatura, cinema, moda e costumes do país.

Um laboratório dos costumes

Foi percebendo o emaranhado de talentos que era associado à orla de 2,6 quilômetros que o escritor Ruy Castro pensou em se debruçar sobre a cultura de Ipanema. "Isso não se dava com nenhum outro bairro do Rio ou de qualquer cidade. E comecei a me perguntar por quê", conta Castro.

As respostas estão reunidas em seu livro "Ela é Carioca", uma enciclopédia que reúne 237 verbetes responsáveis por fazer de Ipanema um laboratório dos costumes da cidade.

O bairro inteiro era assim, cheio de gente que tanto entendia da direção do vento quanto da última escola filosófica em Paris. E ninguém censurava ninguém. Até as mães de Ipanema eram diferentes, davam toda a liberdade às filhas" Ruy Castro, em entrevista a Nossa

A fusão de tantos talentos e liberdades deu samba, ou melhor, bossa nova, cinema novo, O Pasquim. A praia começou a ser ocupada de oeste, o Arpoador, para leste, em direção ao Leblon.

Dividida em redutos, atraía diferentes tipos de frequentadores, que deram, por sua vez, identidade àquelas areias. Depois do Arpoador, o point se tornou o Castelinho, onde todo mundo se descobriu jovem. No Montenegro, subitamente adulto, a política predominava. O Píer era o lar do desbunde e das drogas. Ao Sol Ipanema, restou unir todas as tendências anteriores.

Arpoador

Até os anos 1930, as areias do Arpoador eram ocupadas pelos primeiros moradores do bairro, pescadores egressos de Copacabana e, principalmente, ingleses e americanos da Light, companhia de energia elétrica da cidade. O inglês era a língua predominante na areia.

Ponta extrema da praia, o Arpoador era então praticamente secreto. Isso porque, até a abertura dos túneis que ligariam os bairros da cidade, cada praia era frequentada por moradores locais. Até a chegada dos "diaristas". Eram rapazes que frequentavam as areias todo dia e para quem a praia deserta era o lugar aonde ir depois da aula e ficar até o anoitecer, jogando pelada, caindo n'água ou paquerando.

Era o Arpoador de Marina Colasanti, Zózimo Bulbul (o primeiro e até então um dos únicos rapazes negros a fazer parte das rodas da praia), Roberto Menescal, Marilia Kranz.

Eram rapazes e moças que liam os autores franceses e americanos modernos e se davam com intelectuais como Lucio Cardoso, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos. Misturavam-se com o pessoal da bossa nova, emocionavam-se com Chet Baker cantando 'My Funny Valentine', não perdiam os festivais de cinema do MAM, estudavam teatro no Tablado ou com Adolfo Celi e faziam gravura ou pintura e iam à casa de Djanira ou de Enrico Bianco" Ruy Castro em "Ela é Carioca"

O Arpoador sempre acolhera várias turmas e, até então, não tinha predomínio de uma sobre as outras. Mas o surfe tomou conta das águas em 1964 e os habitués começaram a debandar.

Castelinho

Entre 1960 e 1967, o trecho entre as ruas Rainha Elizabeth e Francisco Otaviano viveu o auge. O apelido vem de um castelinho mourisco, com torre e tudo, construído pelo cônsul sueco Johan Jansson próximo à areia no início do século 20.

Mas não foi a arquitetura o chamariz. Foi o Mau Cheiro, um bar pé-sujo nos arredores. A clientela incluía gente de teatro, aspirantes a cineastas (futuros diretores do cinema novo), o pessoal da bossa nova, jornalistas e boêmios de toda sorte.

Era o único botequim de frente para o mar. Pioneiros, Jaguar e Tom Jobim já o frequentavam desde os anos 1950, ao lado de motoristas do ônibus G. Osório, que faziam ponto final por ali e usavam o terreno baldio vizinho como mijódromo — daí o mau cheiro que deu nome ao bar.

Em 1962 Glauber Rocha e companhia dedicaram-se aos filmes e deixaram de comparecer. Mas, por causa deles, o Mau Cheiro passou a atrair uma turma ainda mais jovem. A partir daí, a praia por excelência do Rio passou a ser Ipanema. Nos anos seguintes, o Castelinho teve seu grande momento. Fotógrafos de revistas não saíam de lá e os frequentadores da praia estamparam várias dessas páginas. Mas em 1965 o novo ponto já era outro.

Montenegro

Essa era a praia dos intelectuais, dominada por cineastas (Glauber Rocha, Cacá Diegues, Ruy Guerra), cartunistas (Juarez Machado, Lan, Ziraldo), fotógrafos (Paulo Goes, David Zingg, Armando Rozário), artistas plásticos (Thereza Simões, Carlos Vergara, Marilia Kranz), poetas (Armando Freitas Filho), atrizes (Marieta Severo, Maria Lucia Dahl, Ana Maria Magalhães). Montenegro, porém, era praia de fim de semana — de segunda a sexta, a maioria dos frequentadores trocava biquínis e calções de banho por ternos.

O programa pós-praia era o Veloso, onde ficavam os intelectuais que preferiam beber a entrar no mar, como Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino. Vinicius o definiu como "um bar de homens discretos, onde ninguém aborrece ninguém e cujo maior prazer consiste em falar sem dizer grande coisa".

Foi nas mesas do Veloso que Tom e Vinicius contemplaram Helô Pinheiro, ela, a garota. O fato atraiu uma nova clientela e, em fins de 1966, o botequim passou a se chamar "Garota de Ipanema", foi reformado e deixou de ser pé-sujo. Habitués como Leila Diniz discordaram dessas mudanças e continuaram o frequentando por um bom tempo, mas se recusaram a chamá-lo pelo novo nome.

O bar perdura até hoje na rua Vinicius de Moraes (antiga Montenegro), mas sem a tradição que o tornou conhecido e apinhado de turistas.

Píer

Durante três verões, o Píer foi a liberdade no poder. Ao contrário do resto do país, que vivia sob censura, prisões e torturas do regime militar, ali era proibido proibir.

O Píer era mesmo um píer: armação de ferro e madeira, instalada em 1970 para a construção do emissário submarino de Ipanema. As tubulações que avançavam 300 metros mar adentro formavam ondas violentas, ideais para o surfe. A areia dragada do mar e despejada na praia fez dunas artificiais — não por acaso apelidadas de "dunas do barato" — que atraíram Gal Costa, Jards Macalé, Neville d'Almeida, quase todos entre os 20 e poucos anos e arautos da "contracultura".

O Píer tornou-se praia hippie. Lá se ressuscitou o costume de bater palmas para o pôr do sol, inaugurado dez anos antes no Arpoador. O som por ali era o rock e o tropicalismo, enquanto no Arpoador e no Castelinho reinavam o jazz e a bossa nova. Cantava-se, tocava-se violão e fumava-se maconha nas dunas.

Ninguém me tira da cabeça que o que aconteceu ali, como o desbunde e a droga, teria sido convenientemente tolerado pelos militares — enquanto a turma estivesse numa boa, não estaria engajada em luta estudantil ou armada" Ruy Castro, em entrevista a Nossa

Os surfistas foram os primeiros a cair fora, os artistas saíram de fininho até que, em 1973, o Píer era frequentado só por turistas. Depois, com o fim das obras do emissário, as dunas foram aplainadas e o píer explodido.

O primeiro topless

A área do Píer foi palco deste que é o primeiro registro de topless nas areias de Ipanema, em 1972. O fotógrafo Frederico Mendes estava curtindo a praia após fazer um ensaio para a revista "Pais & Filhos" quando reparou na cena:

"Vi uma menina linda, mas linda mesmo, com flores na cabeça, que passava para lá e para cá sem a parte de cima do biquíni. E o que era mais interessante: ninguém olhava pros 'peitos' da moça!", contou Frederico ao site "Bom dia, Ipanema".

O fotógrafo não teve dúvidas: fez cliques de longe e, depois, mais perto. "Aí a praia virou a maior bagunça! [...] E no meio daquela confusão uma outra moça também tirou o sutiã, em solidariedade à amiga". A foto acima, a mais famosa da sequência, foi no momento que, depois do circo armado, a garota decidiu colocar a blusa para ir para casa.

"A notícia deste tal de 'topless' se espalhou pela cidade e no dia seguinte, domingo, todos os grandes jornais e televisões mandaram equipes para o Píer de Ipanema para cobrir 'as meninas cariocas de peitinho de fora'", escreveu Frederico.

Sol Ipanema

Talvez pela quantidade de gente concentrada em tão poucos metros de areia, curtia-se o Sol em pé. Ninguém se sentava ou deitava: eram grupos eretos conversando, movendo-se só para um mergulho. Os frequentadores se comportavam como num coquetel, o que levou o cineasta Antonio Calmon a definir o Sol como um "sober cocktail" (um porre sóbrio), já que a bebida que mais circulava por ali era o mate.

Ao mesmo tempo, o Sol foi o berço dos Doces Bárbaros e o escritório do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone. Nelson Motta, Cazuza, Lobão, Lulu Santos, Léo Jaime tramaram ali a criação do rock brasileiro, gerando bandas como Blitz, Barão Vermelho e Kid Abelha.

Sonia Braga, então estrela absoluta do Brasil, circulava pelo Sol sem ser incomodada — porque todo mundo ali era famoso.

Mas o Sol como "instituição" não passou de 1982. Nos fins de semana, o excesso de contingente o tornou impraticável. Em meados dos anos 80, com a reforma dos postos de salvamento da orla, o que se chamava de Sol Ipanema passou a ser conhecido como Posto 9, dando adeus à mística.

Ipanema de ontem... e hoje

O início do fim da Ipanema vanguardista se deu por volta dos anos 1970. Com o tempo, a orla foi tomada por prédios enormes e a cultura de bairro, de jogar conversa fiada e de servir fiado no botequim, não teve mais espaço.

O preço do metro quadrado, antes uma pechincha, passou a ser um dos mais caros do país. Os pé-sujos deram lugar a restaurantes e bares com influências diversas, da brasileira à japonesa. O azul cristalino do mar em que, segundo a atriz Rosamaria Murtinho, era possível até distinguir as camadas de esmalte nas unhas dos pés, deu lugar a uma água turva.

Hoje, já não é raro ver notícias sobre a poluição do mar — no fim de 2021, reportou-se, a areia amanheceu com cheiro de esgoto.

Bela por natureza, a praia de Ipanema continua a atrair um séquito de fãs e turistas. E uma tradição, vinda dos anos clássicos, permanece: os aplausos ao pôr do sol no Arpoador. Resta ainda saber se há entre nós uma nova Garota de Ipanema:

Não creio que exista uma nova Garota de Ipanema ou que se precise de uma. Tudo que Leila Diniz fazia nos anos 60 qualquer menina de hoje, em qualquer parte, faz sem problema. E assim ficou melhor: hoje, todas as garotas do Brasil são garotas de Ipanema

Ruy Castro, Escritor

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