Muito além da Casa Branca

Em Washington, parques, ruas charmosas e um rio cheio de vida são um convite para ficar uns dias a mais por lá

Felipe van Deursen Colaboração para Nossa, de Washington DC Getty Images/iStockphoto

Para nós, turistas, desbravar Washington é uma beleza. A região central da capital americana é plana, arborizada, segura e limpa, e todas as principais atrações ficam em torno de uma comprida área verde conhecida como National Mall.

Numa ponta, o Memorial a Lincoln, aquele da famosa estátua sentada. Na outra, três quilômetros adiante, o Capitólio, sede do Congresso. Próximo à metade do percurso, o Monumento a Washington, o enorme obelisco que, com 169 metros de altura, foi a estrutura mais alta do mundo por cinco anos, até ser eclipsado pela Torre Eiffel, em 1889.

Do obelisco para o norte, você tem a Casa Branca e, para o sul, o Monumento a Jefferson. No entorno, outros marcos que celebram a história do país e são visitados por multidões de americanos, numa espécie de peregrinação que celebra o mito da América. Dá a sensação de que estamos em uma cidade greco-romana de uma realidade paralela.

Mas existe uma outra Washington além do National Mall. Ela é menos institucional, burocrática, historiográfica e branca (social e arquitetonicamente) e mais diversa, colorida e musical. Vale a pena esticar sua estada em DC por uns dois dias para conhecer estes bairros.

Role a página e veja no mapa a seguir um preview da "outra" cidade que você vai conhecer nesta reportagem.



Riqueza, charme e casas coloridas

O bairro de Georgetown é a Washington antes de DC. Ela foi fundada em 1751, antes mesmo da criação do Distrito de Colúmbia, e até 1871 era uma cidade separada da capital americana.

Se ele foi descrito por uma primeira-dama do século 18 como um "buraquinho sujo", hoje Georgetown é puro charme, em uma profusão de quarteirões com ruas verdejantes e predinhos coloridos, boa parte do período pós-independência, entre os séculos 18 e 19.

O bairro é, há muito tempo, lar de americanos notáveis, como o inventor Alexander Graham Bell e John e Jacqueline Kennedy. Foi lá que o casal se conheceu e morou, e foi em uma mansão do bairro que ela passou os dias de luto após o assassinato do presidente, em 1963.

Esses e outros endereços podem ser vistos, do lado de fora (pois são residências particulares) em tours guiados que percorrem o bairro a pé. É uma boa maneira de explorar o entorno, mas se você não tiver muita paciência para tanta aula de história americana, é só seguir o instinto e seguir por onde quiser. É difícil encontrar uma rua sem graça.

A M street NW concentra lojas e restaurantes, mas é fora dela que Georgetown brilha mais. É nessas esquinas que as faias e os olmos fazem mais sombra e onde as fachadas são mais bem preservadas, com flores nas portas e o jornal do dia dobrado no capacho de entrada.

Pegue um enorme bagel da Call Your Mother e observe algo cada vez mais difícil nas cidades mais concorridas da Europa. A vida em andamento em um bairro histórico que não foi tragado pelo turismo excessivo.

Uma cidade que ama seu rio

Georgetown se desenvolveu às margens do Potomac, um rio histórico, muito importante durante a colonização americana. Os tempos áureos de comércio fluvial e do transporte de carvão ficaram para trás, e o Potomac é, hoje, o palco e o cenário de muitas das atividades de lazer preferidas de Washington.

O parque Georgetown Waterfront, inaugurado em 2011 onde antes havia um estacionamento, é o melhor lugar para ver esse movimento. Você pode alugar um caiaque ou canoa e explorar a ilha Theodore Roosevelt, que fica bem em frente, mas ao mesmo tempo parece que está a milhares de quilômetros de tão verde que é, nada a ver com a imagem mais divulgada da capital.

Nos fins de semana de calor, o parque fica apinhado de gente correndo, pedalando ou passeando, enquanto crianças se refrescam na fonte. A marina de Washington, ao lado, concentra bares, cafés e restaurantes e, no inverno, vira a maior pista de patinação no gelo da cidade. É um lugar onde as pessoas conversam num tom mais alto e riem com facilidade.

Getty Images

Roteiro para cinéfilos

Uma forma divertida (e atlética) de descer do centrinho de Georgetown até a margem do rio, perto do Waterfront Park, é através de uma escadaria longa e estreita. Ela não tem nada de incrível, fora o fato cinematograficamente relevante de ter sido usada no clímax do filme "O Exorcista" (1973).

É sem dúvida a referência mais famosa do bairro na cultura pop, mas há outra que tem atraído turistas — e controvérsia. Um morador decidiu homenagear "Transformers" (2007), que também teve cenas rodadas ali, com duas estátuas enormes dos robôs Optimus Prime e Bumblebee na frente de sua casa.

Vizinhos odiaram, a cidade ordenou a remoção e a briga está na Justiça. O caso mostra que Georgetown é um bairro avesso a mudanças radicais em sua paisagem. Aliens robóticos? Aqui não.

Diversão no pôr do sol (e depois dele)

Outro jeito divertido de explorar o rio é de táxi. O Potomac Water Taxi (a partir de US$ 22) conecta Georgetown a outros pontos de interesse da região.

Trata-se de um barco para cerca de 100 passageiros que oferece novos ângulos para algumas das paisagens mais famosas de DC, como o Monumento a Washington e o Capitólio, e outras mais curiosas, como os edifícios Watergate, onde teve início o escândalo político mais famoso dos EUA.

Divulgação

Um dos trajetos mais populares do táxi aquático leva a The Wharf, complexo inaugurado em 2022 com hotéis, restaurantes, marinas, lojas, casas noturnas e outras diversões às margens de um canal ligado ao Potomac.

Com uma arquitetura arrojada e moderna e uma penca de atrações, o Wharf é um contraponto interessante à sisudez neoclássica e ao caráter um tanto institucional de Washington.

A guia Becca Grawl me disse, em um outro bairro, que o Wharf não tem nada de pega-turista: é lá que os locais vão se divertir. Há sessões de cinema no pôr do sol, aulas de salsa, festivais de rock e jazz (sempre com espaço para o ritmo local, o go-go), desfiles de barcos e oktoberfests com aulas de polca.

Quando desembarquei, a quantidade de cachorrinhos no píer chamou a atenção. Logo descobri que estava rolando, em prol de uma ONG de adoção de animais, uma divertida e barulhenta corrida de chihuahuas.

Uma ode a espiões de verdade (e o maior da ficção)

Em uma caminhada de menos de 20 minutos pela orla onde fica o Wharf, dá para ir do mercado da Maine Avenue, o mais antigo mercado de frutos do mar em funcionamento no país, até o Titanic Memorial, monumento aos homens que se sacrificaram no naufrágio do navio. Mas é algumas ruas para cima que fica uma das melhores atrações da região.

O International Spy Museum foi reinaugurado em 2019 em um prédio escuro de aço e vidro que destoa nessa cidade famosa pelos edifícios claros de calcário e mármore. O museu conta, por meio de objetos, vídeos, fotos e muita interatividade, a história da espionagem no mundo.

Estão lá a machadinha usada para matar o líder soviético Leon Trotsky (com marca de sangue e tudo), utensílios da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, e destroços do 11 de Setembro. Mas a maior atração, para fãs do gênero, acaba sendo uma mostra paralela, dedicada aos veículos originais usados nos filmes de 007.

As principais fases de James Bond estão representadas, de Sean Connery a Daniel Craig. Os carros têm lança-mísseis e outros adicionais, típicos da série.

O único porém é o preço. Diferentemente da formidável rede gratuita de museus de DC, o ingresso custa a partir de US$ 27 (em torno de R$ 150), ou de US$ 38 (R$ 215), no combo com a mostra Bond.

A 'Broadway Negra'

O bairro de Shaw é um centro cultural, econômico e social dos negros americanos desde o século 19, quando começou a ser ocupado por recém-libertos da escravidão. Após o assassinato de Martin Luther King, em 1968, as rebeliões que tomaram esse e outros bairros, seguidas da previsível repressão policial, levaram a uma época de violência e decadência.

Uma leva de imigração etíope trouxe mais elementos ao caldeirão cultural nos anos 1980, e hoje Shaw está em alta, com grafites, bares da moda, uma vida noturna agitada em torno da U Street (e também uma certa gentrificação).

A cena musical é eclética e conta com duas casas de shows centenárias, os teatros Howard e Lincoln, onde se apresentaram dezenas e dezenas de grandes nomes americanos. Entre eles, Duke Ellington e Marvin Gaye, que cresceram no bairro e atualmente são homenageados em murais e monumentos.

Vale a pena percorrer Shaw de dia e comer um cachorro-quente na tradicional Ben's Chili Bowl, lanchonete visitada por tudo que é celebridade negra há décadas.

Barack Obama fez questão de ir lá pouco antes de ser empossado, em 2009. O comediante Bill Cosby era presença frequente, mas os escândalos de estupro e assédios removeram essa lembrança das paredes do restaurante.

À noite, sem dúvida, Shaw fica mais pulsante. Carros passam devagar com a música a todo volume na U Street, filas se formam na calçada, casas noturnas abrem as portas. É um contraste interessante com a tranquilidade no interior dos bons restaurantes do entorno.

O Mita, por exemplo, oferece um criativo menu vegetariano latino-americano. É um festival de releituras de arepa, acarajé, ceviche e afins. Um bom jeito de começar os trabalhos antes de encarar as releituras do hip-hop e do reggaeton noite adentro.

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