Kpop à mesa

Desbravamos com o chef Paulo Shin os sabores da hypada culinária sul-coreana em um passeio por São Paulo

Gabriela Erbetta Colaboração para Nossa Arte/UOL

Sabor de memórias

Em uma manhã cinzenta de segunda-feira. O chef Paulo Shin caminha pelos corredores do supermercado Otugui, no Bom Retiro, bairro central de São Paulo, enquanto conversa sobre os ingredientes e utensílios típicos da cozinha coreana, especialidade da loja.

Para diante das geladeiras, repletas de alimentos congelados, examina as embalagens de macarrão instantâneo que admite adorar comer em casa, confere os grandes sacos de mandu - o guioza coreano - com recheios de kimchi, carne suína, vegetais. Na seção de equipamentos, nota as grandes bacias usadas para fazer conservas e mostra as panelas elétricas de arroz, que, garante, todo coreano tem na cozinha.

Estamos no epicentro das primeiras memórias gastronômicas de Paulo Shin. No Bom Retiro de restaurantes frequentados pela comunidade coreana; de supermercado onde quase tudo vem da Ásia; de antigos e novos sabores que o chef indica no roteiro que desbravamos com ele pelo bairro:

Coreia revisitada

Filho de um casal que emigrou da Coreia do Sul para o Brasil na década de 1970, Shin fala sobre a culinária coreana com conhecimento de causa. Aos 32 anos, ele é um dos principais responsáveis por colocar a comida da terra de seus pais na rota da melhor gastronomia paulistana.

Shin é chef e sócio do restaurante Komah, que coleciona prêmios desde a inauguração. Levou o título de novidade do ano na eleição promovida em 2016 pelo "Guia", da Folha de S.Paulo, e foi escolhido o melhor asiático da capital pelo júri do prêmio "O melhor de São Paulo", também atribuído pelo jornal, nas edições de 2018 e de 2019.

Suas interpretações para receitas tradicionais, como kimchi (conserva picante de acelga), bibimbap (arroz com legumes), japchae (macarrão de batata-doce) e galbi jim (costela bovina com shoyu e gengibre), fazem com que a casa tenha filas diárias no almoço e no jantar. Por mês, cerca de 3 mil pessoas passam por lá.

Kimchi: viva a pimenta!

O kimchi nasceu da necessidade de conservar alimentos para enfrentar a escassez dos invernos rigorosos. Um dos pratos mais emblemáticos da cozinha coreana, servido desde o café da manhã até o jantar, essa conserva apimentada e fermentada é até tema de um instituto financiado pelo governo do país, dedicado ao estudo de seus benefícios. Segundo o World Institute of Kimchi, cada cidadão da Coreia do Sul consome, em média, 25 quilos da receita por ano.

Embora seja feito desde o século 7, o kimchi só ganhou sua principal característica cerca de 500 anos atrás, quando o Oriente foi apresentado a um dos inúmeros ingredientes descobertos pelos colonizadores das Américas: a pimenta. É ela, na forma de pó, flocos ou pasta, que confere uma pungência marcante às hortaliças utilizadas na receita.

A acelga é a verdura mais comum, mas também há versões com nabo, mostarda, pepino e outros vegetais. Só no supermercado Otugui e na UOK Mercearia, que fizeram parte do nosso roteiro pelo Bom Retiro, há mais de uma dúzia de variações. Desde 2013, o preparo do kimchi está inscrito na lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, elaborada pela Unesco.

A descoberta de chef

Por pouco a história de sucesso de Paulo Shin e do Komah não foi bem diferente. Sua primeira ideia era abrir um restaurante de almoço, para servir pratos feitos, os populares PFs. "Eu tinha um certo bloqueio com a cozinha coreana", confessa.

Embora tenha crescido com uma mãe e uma avó que dominavam as receitas de seu país de origem - "com uns 7 ou 8 anos, lembro de ir à Ceagesp com meu tio comprar ingredientes para minha avó fazer conservas e vender para a comunidade coreana", conta -, seu apreço pela comida e pela cultura dos antepassados limitava-se às refeições em família.

Shin conta que convivia com as ideias estereotipadas e preconceituosas que os amigos faziam da alimentação oriental. Durante a Copa do Mundo de futebol de 2002, disputada na Coreia do Sul e no Japão, perguntavam a ele se é verdade que se come carne de cachorro no país. "Existe, sim, mas não em todo lugar. É como a buchada de bode brasileira: você vê buchada em qualquer restaurante?".

Quando começou a cursar Gastronomia no Senac, em 2006, percebeu que as tradições culinárias de seus pais também não tinham aceitação entre os colegas.

A decisão de estudar Gastronomia, aliás, pegou a família de surpresa, já que o máximo de interesse que o caçula tinha demonstrado pelas panelas era ver, na TV, os programas da Palmirinha, de Jamie Oliver e de Alex Atala.

A mãe, Myung Yul Shin Lee, foi contra. "Você vai trabalhar sempre com a mão molhada", disse, tentando convencer o filho a fazer outra escolha. Não adiantou. Ainda na faculdade, um professor o indicou para um estágio no D.O.M., de Atala, um dos melhores restaurantes do país.

"Ali, foi paixão pela carreira, pela estrutura de um restaurante. Eu trabalhava de graça com gosto", conta. "Queria absorver o máximo e dar o máximo também. Você aprende com quem é melhor do que você". Na sequência, passou pelas cozinhas de outras casas igualmente badaladas em São Paulo, como Le Coq Hardy e Kinoshita. "Eu ficava um tempo e trocava, para ter o maior repertório possível."

Banchan: três em um

A típica refeição coreana inclui um cozido, um caldo ou sopa, uma fonte de proteína, arroz e banchan, pequenas porções de alimentos que servem como couvert, entradinha ou acompanhamento, para que todos compartilhem da comida em volta da mesa.

"O banchan traz sabores e texturas que completam a refeição", diz Paulo Shin. "É tradicional tanto em restaurantes quanto na casa das pessoas."

Hortaliças temperadas na hora, manjubinha, kimchi feito com diversos tipos de legumes e verduras, camarão em conserva, raiz-de-lótus e até salada de batata com maionese, segundo Shin, podem fazer parte do banchan.

Lojas que visitamos com o chef, como o supermercado Otugui e a UOK Mercearia, vendem os ingredientes ou porções já preparadas de receitas como lula desfiada, raiz de bardana e talo de algas marinhas, prontas para servir.

Sim, sou coreano

Em 2009, Paulo Shin fez as malas e foi para Nova York. Morava no Queens, trabalhava em um bistrô francês na região de Times Square e gastava todo o dinheiro que recebia para conhecer outros restaurantes.

Só de casas com a grife Momofuku, império inaugurado em 2004 pelo chef multimídia americano David Chang, também de origem coreana, conheceu três: o Noodle Bar, o Ko e o Ssäm Bar.

De volta ao Brasil, em 2011, frustrado com os baixos salários e os rumos da profissão, resolveu largar a cozinha para trabalhar com as irmãs na fábrica de sapatos que mantinham em um galpão na Barra Funda. Bem perto dali, no vizinho bairro do Bom Retiro, Shin continuou frequentando os restaurantes, lojas e cafés que atendem a comunidade coreana desde que, na década de 1960, os primeiros imigrantes começaram a se instalar na região, por muito tempo conhecida como um dos principais enclaves judaicos de São Paulo.

Até que os familiares sabores orientais de pratos servidos em restaurantes como Umiguan e Asawon, que ele frequenta até hoje, nortearam uma nova alteração de rota: em 2013, o chef resolveu carimbar outra vez o passaporte, dessa vez em direção a Seul, na Coreia do Sul, onde passou um mês hospedado com uma tia.

Shin revela que sentiu imenso prazer de voltar às origens e de se identificar com tradições que os pais imigrantes fizeram questão de manter vivas no Brasil. "Nas refeições, por exemplo, o mais velho da mesa se serve primeiro. É uma questão de respeito", conta. Percebeu, também, como a mãe era boa cozinheira. "Em todo lugar, eu reconhecia o tempero dela."

Soju: destilado mais vendido do mundo

Esqueça o uísque e a vodca: de acordo com os rankings elaborados anualmente pela revista Drinks International e pela consultoria de marketing IWSR, ambas britânicas, nenhum outro destilado é mais comercializado, em todo o planeta, do que o soju, a "cachaça" coreana.

De acordo com a lista da Drinks International, só da marca Jinro foram vendidos 702 milhões de litros em 2018, mais do que o dobro em relação ao segundo colocado, o uísque indiano Officer's Choice, que aparece com 306 milhões de litros.

Da maneira mais tradicional, o soju é feito com arroz, fermentado e então destilado. Em meados da década de 1960, porém, quando houve uma escassez do grão no país, a bebida passou a ser fabricada com outros cereais e ingredientes, como a batata-doce, até hoje muito utilizada. O teor alcoólico varia entre 16% e 53% - quanto mais artesanal, mais alto.

Na Coreia do Sul, a bebida é servida gelada, em shots. Aqui, começa a integrar a carta de bares e restaurantes também em coquetéis - no Komah, faz parte do fresh soju (vodca, soju, maçã verde, licor Luxardo e suco de limão) e do smoke Mary (vodca, soju, abacaxi, açúcar e alecrim defumado), entre outros.

Nasce o "pirralho"

Novamente animado com a cozinha, Paulo Shin voltou para São Paulo e, num acordo com as irmãs, decidiu abrir seu próprio restaurante no imóvel que funcionava como fábrica de sapatos, na Barra Funda.

Descartada a ideia inicial de servir PFs para os trabalhadores da região e com a ajuda da mãe, que preparava receitas como o kimchi servido na casa, surgiu o Komah - que, em coreano, quer dizer "caçula", ou "pirralho".

Três anos depois, Shin e o sócio têm 24 funcionários - a mãe, aos 63 anos, agora vive na Serra da Cantareira, onde cuida de uma horta que produz alface, folha de gergelim, azedinha e broto de beterraba, entre outras verduras que abastecem o Komah.

Com os negócios estruturados, atualmente dá tempo do chef frequentar academia, ler, ir ao cinema, viajar e ainda revisitar as raízes orientais nas lojas, cafés e restaurantes do Bom Retiro. Mas com uma e importante diferença: hoje, elas convivem em paz com sua origem brasileira.

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