Nova confeitaria brasileira

Com produtos regionais e resgate afetivo, doces do Brasil ganham mais sabores e identidade

Rafael Tonon Colaboração para Nossa

Doce demais, muito refém do leite condensado, influenciada por estrangeirismos? Muitos adjetivos negativos (não sem razão) foram atribuídos à doçaria brasileira nos últimos anos.

De chefs famosos que torceram o nariz para nosso brigadeiro à profusão de modismos que definiram modelos de negócios (cookies, paletas mexicanas, cupcakes, etc), a nossa confeitaria foi para muitos lados e acabou perdendo muito de sua identidade.

Mas há uma nova geração de confeiteiros, boleiros e apaixonados por doces dispostos a resgatar o que nossas sobremesas têm de mais autêntico — e especial.

Ao trazerem de volta as receitas das avós e aquelas que se faziam nas fazendas, ao olhar a riqueza de frutas que podem ser usadas em diferentes preparos e ao valorizar o ingrediente nacional, eles estão ajudando a construir um novo capítulo da nossa confeitaria.

E, com ela, trazer a público uma nova leva de profissionais que estão saindo do forno mais dispostos do que nunca a mostrar nossas doces raízes.

Eu vejo a confeitaria brasileira muito segregada. Por um lado, há uma vertente de profissionais que cada vez mais busca ingredientes fáceis de usar, atalhos com alimentos ultraprocessados

Lucas Corazza, confeiteiro, professor e um dos jurados do programa de confeitaria Que Seja Doce (GNT)

Outros caminhos

Em compensação, diz Corazza, há uma nova geração de gente com formação, de novos cozinheiros que estudaram e que chegam ao mercado mais interessados nas pesquisas que outros chefs fizeram sobre ingredientes e cozinha brasileira, para aplicar nas suas criações.

Inclusive existe um crescente interesse por parte dos cozinheiros de se profissionalizar em confeitaria, algo que antes era visto como "menor" por alunos de gastronomia.

Nesse sentido, para Corazza, o mais interessante é ver despontar o uso do chocolate com o cacau brasileiro, que tem ganhado um novo valor na confeitaria nacional.

O chocolate sempre foi um ingrediente primordial nos doces e perceber o cuidado no processo de produzir sabores intensos, deliciosos, é algo que passamos a olhar com mais atenção".

Assim, diz ele, podemos valorizar não apenas um produto que está tão ligado à nossa história, mas sobretudo sua cadeia de valor. "Espero que possamos fazer o mesmo com as nossas frutas, como o cajá, o umbu, a uvaia, que têm potencial incrível para brilhar nas nossas produções", acrescenta.

Além do "Leite Moça"

Nutella, leite condensado, leite Ninho, pasta de amendoim: a indústria investe muito para moldar os paladares da sociedade e muitas vezes os confeiteiros, em busca de uma "venda certa", "preferem não arriscar", como pontua a confeiteira Joyce Galvão, autora do livro "Ingredientes para uma Confeitaria Brasileira" (Companhia de Mesa).

Tanto é assim que grande parte dos doces brasileiros que aprendemos a ver como "afetivos" nasceram a partir do leite condensado — e das campanhas que as empresas fizeram para nos convencer disso.

Diferentemente de outras receitas que seguem por gerações, o leite condensado tem apenas cem anos no Brasil, comemorados neste ano pela Nestlé, que foi a primeira a fabricar o ingrediente no país em 1921.

Pudim, pavê e o inabalável brigadeiro são vendidos como doces que sempre estiveram entre nós, mas que são criações muito mais recentes do que cocadas, doces de compota, bolos de fubá, etc.

Hoje o confeiteiro precisa competir com uma indústria estruturada, pegar o cliente na mão e convencê-lo a comprar seu bolo e não o "doce" do supermercado. É uma briga difícil, muitos desistem." Joyce Galvão

Doce como luta

Para ela, fazer os doces tradicionais brasileiros é uma questão de resistência — e de persistência. É preciso que os profissionais do mercado possam mostrar o valor do trabalho que fazem, de ter que trabalhar muito para conseguir um ponto, mexer por horas uma panela para chegar a uma receita.

"A culpa dessa desvalorização não é só da competição com a indústria, como podemos acreditar, mas também nossa. No fundo, são as nossas escolhas que moldam nosso futuro, não é?", questiona.

Para Joyce Galvão, temos uma doçaria muito bem definida — com todas as suas influências, todos os saberes empíricos, as histórias, cultura mas que está, aos poucos, sumindo. Mesmo que em determinados locais ela seja tão presente, e exista, ela perde força com o passar dos anos.

Quando o senhorzinho que faz aquela cocada maravilhosa morrer, quem vai seguir fazendo a cocada dele?

Joyce Galvão

Doçaria sobrevive

Há, entretanto, os confeiteiros e confeitarias dispostos a manter essas tradições.

Rafaela Medeiros é uma doceira do Ceará que pesquisa sobre a doçaria do seu estado e resgatou o leite de pedra, um doce feito com leite de coco e melado. Ela faz o leite artesanalmente e percorre os engenhos para conseguir o mel de cana.

Ela criou um perfil no Instagram (@doce.leitedepedra) para vender seus quitutes feitos em Pedra Branca que envia para todo o Brasil. Do tacho ao pote, a "alta doçaria cearense", como diz.

Além do leite de pedra, ela ainda comercializa brigadeiro (feito a partir do leite de pedra com adição de cacau) e o crocante (também com o doce e mais castanha de caju, farinha de mandioca torrada e flor de sal). Também envia um zine que faz sobre a doçaria cearense.

Rafaela ainda incluiu no seu portfólio o tijolim d'leite, produzido com leite de vaca e açúcar — também feito, como os outros, com amor, braço e colher de pau.

Quanto mais a gente valorizar o doce popular da nossa terra, mais produtores, trabalhadores, artesãos podem ser beneficiados, não só pela venda direta, mas pelo fortalecimento da doçaria local." Rafaela Medeiros

Foto: Divulgação Copa Cozinha Foto: Divulgação Copa Cozinha

Resgatar memórias

Fundada por três amigas de infância, a Copa Cozinha abriu as portas no Mercado Novo, em Belo Horizonte, para criar doces e bolos com um intuito particular: "matar a saudade da casa da família que nunca passou", como diz Maíra Sette, uma das sócias.

"Trabalhamos em cima de memórias, não só minhas, mas de toda equipe e até clientes, que se envolvem e voltam na infância ao entrar na nossa cozinha e acabam compartilhando receitas e memórias conosco", conta Julia Gontijo que, com a irmã Cristina, completam o trio de sócias.

Assim, um doce de laranjinha Kinkan inspira uma tortinha de chocolate com caramelo salgado, o gostinho de limão capeta do quintal vira bolo com creme de queijo e geleia de amora, e ainda o bolinho de fubá, "que tem milhares de receitas e está sempre presente na nossa mesa de café da manhã", ela diz.

Julia conta que um dia uma senhora de uns 80 anos chegou com os olhos cheios de lágrimas e agradeceu por oferecer a ela o bolo de fubá igual ao que a sua madrinha fazia.

"A Copa Cozinha acredita nisso, que o simples bolo de fubá bem feito pode ter um valor imensurável", afirma.

Os doces são adaptações das "quitandas" (como são chamados os doces caseiros) tão presentes nas mesas das famílias no interior de Minas.

Todos os ingredientes são simples. O que faz a nossa combinação especial é a familiaridade com as receitas carinhosas que compartilhamos na infância. São sabores que nos transportam para um tempo saudoso e afetivo." Maíra Sette, Sócia do Copa Cozinha

Brasil à mesa

Além de cravo e canela

Conheça a riqueza culinária na vida e obra de Jorge Amado

Ler mais

Ingredientes e raízes

No Pará, terra do açaí, cacau e chocolate também roubam a cena.

Ler mais

"Marvada" que nada

Cachaça rebate preconceito e cresce como bebida gourmet.

Topo