O rio está para peixe

Pouco conhecidos fora da sua região, os pescados amazônicos transbordam diversidade (na natureza e à mesa)

Ricardo Castanho Colaboração para Nossa Renata Amoedo/UOL

Explorar o tema "peixes amazônicos" é desaguar num mar de números, diversidade, sabores — e algumas confusões. A começar pela delimitação do habitat desse grupo. Parece lógico, por exemplo, afirmar que tais peixes vivem na Bacia Amazônica, mas seus domínios vão além de convenções geográficas. "Várias espécies também são encontradas em rios das bacias do Tocantins-Araguaia, do Paraguai e do Paraná", diz Jansen Zuanon, biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

E que tal convencer um morador de Belém que a pescada-amarela, espécie de água salgada, não faz parte da categoria? Para quem vive na foz do Amazonas, rio e mar não têm fronteiras óbvias. E há muita verdade nisso. Segundo Zuanon, no colossal encontro de águas, a salinidade do oceano pode ficar abaixo do padrão a até 200 quilômetros do estuário. "Em sentido oposto, não é raro encontrar espécies marinhas 300 quilômetros rio acima", explica o biólogo.

Tirando eventuais visitantes da conta, os cerca de 6 milhões de quilômetros quadrados da Bacia Amazônica, que incluem 20% do volume de água doce do planeta, abrigam quase 3 mil espécies de peixes catalogadas. "Mas o número total deve superar 4 mil", acredita Zuanon.

Renata Amoedo/UOL

Grupo famoso; integrantes nem tanto

Para a maioria dos brasileiros que não mora na Amazônia e nunca visitou a região, é difícil avançar muito nessa enorme lista de peixes típicos. Normalmente, a associação com a piranha, estrela de vários filmes de Hollywood, não falha. O fato de ser um dos maiores peixes de água doce do mundo e a preocupação com a sua sobrepesca também costumam garantir a lembrança do pirarucu.

Como ele, outras espécies são citadas por gente sintonizada com restaurantes que investiram, fora da região Norte, em sabores amazônicos, a exemplo do tambaqui e do filhote. Na soma de qualidades à mesa, visibilidade na pesca esportiva e trânsito em outras bacias, tucunaré e surubim cachara ainda podem ser listados por muitos. E, talvez, uma boa parcela dos aquaristas nacionais saiba que alguns peixes bem conhecidos da atividade têm origem amazônica, caso de acará-disco, acará-bandeira, tetra neon cardinal e oscar.

Mas o rol costuma parar por aí. Peixes de escamas populares na região amazônica, como jaraqui, matrinxã e curimatã, bem como diversos tipos de bagres e cascudos, a exemplo de dourada, mapará e bodó (ou acari), ainda são vistos como exóticos fora de lá (leia mais nas fichas dos peixes amazônicos no final desta reportagem).

Na ponta da vara

Dessa rica variedade natural, entretanto, apenas de 100 a 200 espécies de peixes são comercializadas. O aproveitamento fica ainda mais restrito ao se observar que 90% dessa oferta está centrada em dez tipos — jaraqui, tambaqui e curimatã encabeçam a lista.

De acordo com o INPA, a estimativa da produção pesqueira nas águas interiores da Amazônia brasileira é de 200 mil toneladas anuais. "Mas esse número não inclui a pesca de subsistência dos ribeirinhos", alerta Zuanon. Segundo o pesquisador do instituto, tal atividade está diretamente ligada ao alto consumo de peixe por essas populações, que supera 500 gramas diários por pessoa em várias comunidades.

A questão econômica ainda transborda para o turismo e a gastronomia. A pesca esportiva, por exemplo, encontra em Manaus sua maior oferta de hotéis voltados para a atividade. Mas o circuito dos sonhos dos praticantes ainda inclui destinos como Barcelos, no mesmo estado, o rio Iriri e o município de Tucuruí, no Pará, o rio Roosevelt, com trechos em Rondônia, Mato Grosso e Amazonas, e os rios São Benedito e Cristalino, entre Mato Grosso e Pará - cada ponto com seu conjunto específico de cenário e grupo de peixes.

Uma rede de sabores

Essa diversidade de estilos também aparece quando os pescados amazônicos vão para a cozinha. Segundo Felipe Schaedler, uma referência da culinária da região, a maior riqueza desses ingredientes está na variedade de texturas e gostos, que separa, por exemplo, o tambaqui do tucunaré. "Enquanto o tambaqui apresenta cor, gordura e sabor próximos da carne suína, o tucunaré tem carne branca e gosto suave."

O chef do restaurante Banzeiro, com matriz em Manaus e filial paulistana, também gosta de jogar luz em espécies menores, que reforçam esse interessante mosaico. Na sua lista de preferidos estão a sardinha (sem parentesco com a de mar), o jaraqui, de sabor intenso, e o bodó (ou acari). "O bodó tem um sabor único e as suas ovas são uma iguaria."

Outra estrela da cozinha amazônica, Thiago Castanho apoia um menu que explore mais essa multiplicidade. "Às vezes, as pessoas elegem um peixe e passam a ignorar os outros", alerta o chef de Belém, líder dos restaurantes Remanso do Peixe e Remanso do Bosque. Para ele, também é importante acabar com a divisão entre peixes "de rico" e "de pobre". "Vale observar lugares que apreciam pescados desvalorizados. E aprender, com eles, a extrair o melhor de cada espécie."

Um rótulo, dois menus

O que ambos os chefs propõem está muito ligado ao consumo ancestral desses peixes. Os povos indígenas pré-colombianos comiam o que a pesca do dia proporcionava — o moquém, grelha de varas sobre fogo, era a grande referência para assar e defumar.

Uma lógica parecida segue valendo em comunidades menores, onde a diversidade de espécies à mesa é superior à de grandes centros da região. Nas duas maiores capitais do Norte, por exemplo, esse reducionismo, a oferta local e razões históricas e culturais moldaram preferências e cardápios bem distintos.

Em Manaus, o consumo é dominado por peixes de escamas — uma antiga lenda associando bagres a doenças de pele contribuiu para isso. No topo da lista gastronômica, brilham o tambaqui e o pirarucu.

A banda e as costelas do primeiro, assadas na brasa, reinam nos menus. Quanto ao segundo, o típico "pirarucu de casaca" traz o peixe dessalgado com outras duas estrelas locais: a banana pacovã e a farinha de Uarini. Ambos os peixes ainda protagonizam caldos com tucupi, moquecas e caldeiradas. Nesse último preparo, o tucunaré tem destaque. Ele e peixes menores, como jaraqui e matrinxã, fazem sucesso fritos.

Uma questão de pele

Se Manaus não morde a isca dos bagres, Belém coloca os peixes "de couro" ou "de pele" no pedestal. O filhote, maior bagre amazônico, é o queridinho da culinária local. Mas esse apreço se estende para outras espécies similares, caso do mapará e da dourada. Todos têm uma alta taxa de gordura intramuscular, que vai muito bem com o calor de brasa.

Entre os peixes de escamas, o único a rivalizar com o filhote nos mercados é a pescada-amarela. Versátil na cozinha, ela pode ser encontrada grelhada, ao forno ou em caldeiradas e moquecas. O pirarucu dessalgado também faz sucesso, geralmente no leite de coco ou de castanha-do-pará.

Quando o tema é a expansão dos peixes amazônicos para mesas fora da Amazônia, os chefs Schaedler e Castanho concordam que o grupo já perdeu um pouco do "exotismo" em outras regiões e reconhecem o papel das criações em cativeiro nesse processo.

"Existe muito preconceito com criadores de peixes amazônicos que estão fora da Amazônia, mas acho isso ótimo quando o trabalho é bem feito", opina Schaedler. Para Castanho, o avanço do segmento propicia uma difusão desses sabores com menos risco para a natureza. "É preciso não descuidar desse aspecto."

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Esta reportagem faz parte da temporada Brasileiro, de Nossa, uma série de conteúdos especiais que, durante três meses, abordam temas relacionados às regiões do país. Ela é dividida em cinco ciclos, cada um com um curador que atua como editor especial de Nossa na seleção dos temas, personagens e criadores da temporada. Teresa Cristina foi a responsável pelo ciclo sobre o Sudeste. A atriz Tainá Müller assumiu o posto para o Sul do Brasil. O chef Paulo Machado desbravou o Centro-Oeste com a gente. Agora, Joelma apresenta a região Norte.

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