O paraíso do surfe no Japão

A mais de 1000 km da praia que coroou o ouro de Ítalo Ferreira, Miyazaki é principal reduto do esporte no país

Fotos Juliana Anzai Texto Gilberto Yoshinaga

O tempo parece passar mais devagar em Miyazaki, no extremo sul do Japão. Com quase 400 mil habitantes, a aconchegante cidade na costa leste da ilha de Kyushu é o principal reduto dos surfistas no arquipélago. Tudo por ali gira em torno do mar e do surfe, esporte que, neste ano, fez sua estreia como modalidade olímpica na Tóquio-2020 (na praia de Tsurigasaki, a apenas 100 km da sede olímpica). Palco das ondas mais desafiadoras do Japão, não são apenas elas que atraem os visitantes. Toda a atmosfera da cidade faz muitos deles decidirem fincar bases ali. É o caso dos personagens que encontramos em Miyazaki durante a produção desta reportagem, apaixonados pela cidade e pelo lifestyle das pranchas.

Quem circula por ali, principalmente na praia de Aoshima, chega a esquecer que está no Japão. Nada na tranquila cidade litorânea remete ao estereótipo encravado à metrópole Tóquio, por exemplo, onde um formigueiro humano está sempre apressado e se acotovelando entre prédios e luzes de neon. Em Miyazaki, as calçadas são largas e os postes possuem adereços que os fazem lembrar palmeiras. O estilo de vida é minimalista e totalmente "good vibes", com nativos de pele bronzeada e cabelos queimados, sempre receptivos com seus visitantes.

Quando o sol nasce naquele recanto do "país do sol nascente", já é possível encontrar pessoas praticando ioga entre as muitas palmeiras da praia ou mesmo nos espaços abertos das pousadas e hostels — onde, não raro, turistas descolados trabalham apenas em troca de hospedagem. Ali, não há muito espaço para as típicas formalidades nipônicas. Os hóspedes interagem, criam laços de amizade e costumam conversar sobre seu principal assunto: o surfe. Perguntas como "como está o mar?" e "e aí, pegou boas ondas?" dão o tom do que importa nessas bandas.

As ondas de Miyazaki são consideradas as mais apreciadas pelos surfistas experientes, mas também acessíveis para marinheiros de primeira viagem — motivo pelo qual há muitas escolas de surfe na cidade. Isso atrai praticantes do esporte de todo o arquipélago e também muitos estrangeiros, o que faz com que a maioria dos estabelecimentos voltados para o turismo também ofereça atendimento em inglês.

Juliana Anzai passou dois meses no paraíso japonês dos surfistas e se impressionou com a leveza e a simplicidade de hábitos dos nativos e dos turistas que lá frequentam — traços que se contrapõem a um Japão historicamente retratado como um país regrado e bastante consumista. A proprietária de um hostel onde a fotógrafa se hospedou também possui uma loja de joias em Tóquio. "Uma joalheria, disse ela, não vingaria em Miyazaki, onde ninguém dá tanto valor a luxos materiais e outras coisas consideradas supérfluas".

O principal ponto de encontro, por óbvio, é a praia, onde há quem passe horas apenas a contemplar o horizonte e alguns turistas nômades estacionam os furgões que fazem as vezes de suas "casas". A maioria vive basicamente em função do esporte sobre uma prancha. Conforme a época do ano, alguns trocam o verão de Miyazaki pelo inverno de Hokkaido, província situada ao extremo norte do arquipélago, onde o surfe é substituído pelo snowboarding. Não é difícil, aliás, ver carros com placas de Hokkaido pelas ruas de Miyazaki.

As conversas giram em torno do mar porque, para essas pessoas, o surfe representa um estilo de vida"

Juliana Anzai, fotógrafa e autora das imagens que ilustram esta reportagem

A sensação de liberdade é o que motiva Shugo Noda, 44, a surfar. Ele conheceu o esporte há 30 anos e nunca mais parou. "Não é só pelas boas ondas. Miyazaki emana paz e também me faz bem porque as pessoas são mais sorridentes, têm um astral diferente", conta Noda, que é carpinteiro e residia em Nichinan, cidade situada a menos de 40 quilômetros de Miyazaki, para onde se mudou recentemente. Como seu trabalho exige foco e disciplina, ele vê no surfe uma válvula de escape, uma maneira de espairecer e se renovar.

No fim do dia, quando o sol se põe e a praia pouco a pouco vai se esvaziando, ainda paira no ar essa sensação de liberdade que os surfistas tanto citam. Sabe-se que, no dia seguinte, outros virão em busca desta paz — e, claro, da onda perfeita.

Gosto muito da sensação de liberdade que o surfe proporciona e creio que o oceano é a essência da natureza. Afinal, as primeiras espécies de vida vieram da água"

Shugo Noda

Moradores da gélida província de Hokkaido, a designer e instrutora de ioga inglesa Charlie Davies, 32, e seu namorado espanhol Toni Rodriguez, 43, que é fotógrafo e instrutor de surfe e snowboarding, percorreram recentemente mais de 2 mil quilômetros, de carro, para conhecer Miyazaki. Nem é tão longe para eles, que já levaram suas pranchas para mais paraísos do surfe na Europa, Indonésia, Marrocos e Sri Lanka, entre outros recantos.

Quando estou surfando, somos apenas eu e a onda, não há espaço para pensar em problemas ou pressões externas"

Charlie Davies

Surfe proporciona uma conexão única com a natureza. Surfar me dá força e equilíbrio, principalmente mental"

Toni Rodriguez

Outro casal de estrangeiros com estilo de vida semelhante é formado pelo brasileiro Daissuke Amano, 42, e a suíça Lisa Marina D'Onofrio, 27 — que se conheceram surfando em Miyazaki há quase um ano e não possuem residência fixa.

Desapegados com relação a bens materiais ou status, eles têm rodado o Japão, de carro, em busca das ondas perfeitas. Sem emprego fixo, encaram todo tipo de trabalho temporário para poderem manter seu estilo de vida, seja em restaurantes, pousadas ou qualquer outro bico que surgir. "Chegamos até a morar na van durante o inverno, quando trabalhamos em uma estação de esqui na província de Nagano", conta Daissuke, que já surfou no Sri Lanka e na Califórnia e pretendia percorrer outros países asiáticos e Austrália com sua prancha, plano adiado em razão da pandemia da covid-19.

Formado em Economia pela Universidade Rollins, nos Estados Unidos, o brasileiro conta que teve cargo de chefia em multinacionais por 12 anos. Três anos atrás, decidiu largar tudo e viajar pelo mundo em busca de autoconhecimento.

Hoje percebo que aquele perfil de executivo, com bom status dentro de um escritório, não era meu verdadeiro eu. Mas esse desprendimento, principalmente com a vaidade e o ego, é uma busca interminável"

Daissuke Amano

Nascido e criado em Miyazaki, Hironari Yamamoto, 38, vive em função do surfe, que foi sua "terapia" em uma fase difícil da adolescência. "Ao final do ensino médio, tive transtornos emocionais a ponto de não conseguir mais ir à escola. Meu irmão insistiu para que eu experimentasse o surfe e deu tão certo que nunca mais larguei a prancha", relata ele, que trabalha como instrutor de surfe e salva-vidas nas altas temporadas da cidade.

Yamamoto também descobriu no surfe uma maneira de desafiar seus limites: uma vez por ano, viaja para algum lugar do mundo com o intuito de domar ondas gigantes. "Já peguei algumas delas em Maui, no Havaí, e em Nazaré, em Portugal", orgulha-se o nativo.

Extrovertido e comunicativo, Kengo Katagiri, 23, é o menos experiente da temporada. Surfou pela primeira vez há pouco menos de um ano, no último verão japonês. "Fiquei viciado já na primeira onda que consegui pegar. Como meu pai e meu irmão também surfam, então ganhei a maioria das roupas e meu maior gasto foi para comprar a prancha", conta ele, sempre sorridente.

Morador de Tóquio, onde trabalhava como entregador de comida de um aplicativo, atualmente está desempregado e também vive de fazer pequenos bicos para poder continuar remando em Miyazaki.

Já fui surfar no Peru e, em breve, pretendo ir para a Austrália estudar em um programa de intercâmbio. E é óbvio que também vou levar minha prancha e pegar muitas ondas"

Kengo Katagiri

O mais experiente dos surfistas ouvidos pela reportagem também é morador de Miyazaki. O japonês Toru Yoshigaki, 67, nunca parou de pegar ondas desde que conheceu o esporte, há quase meio século, aos 20 anos. Nascido em Tóquio, ele se mudou para Miyazaki justamente por conta do surfe. Também já viajou para pegar ondas na Indonésia e no Havaí — de onde trouxe seu inseparável ukulele.

O veterano acredita que seu atual trabalho como florista possui ligação com o surfe, pois teoriza que, para pegar boas ondas, é necessário se conectar com a natureza.

Em cima da prancha, eu me sintonizo com o ritmo das ondas, com o mar, para poder desfrutar plenamente daquele momento"

Toru Yoshigaki

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