Mago do Moscow Mule

Expoente no Brasil em alta coquetelaria, Marcelo Serrano foi quem criou a espuminha do drinque da moda

Sergio Crusco Colaboração para Nossa Fernando Moraes/UOL

Se você frequenta bares de coquetéis e nunca pediu, certamente já viu alguém pedindo um Moscow Mule na canequinha de cobre, com a "regulamentar" espuminha de gengibre no topo.

Caso queira beber o coquetel em Londres, Tóquio ou Nova York, prepare-se para receber uma caneca sem espuma. E sem direito a reclamação: ela nunca foi regra em nenhum lado do mundo, só no Brasil.

A espuminha brasileira tem nome e sobrenome: Marcelo Serrano, um dos mixologistas responsáveis por colocar o país no mapa da alta coquetelaria há pouco mais de dez anos.

A invenção que subverteu a receita clássica de Moscow Mule (vodca, açúcar, limão, ginger beer e folhinhas de menta) nasceu bem mais do que por acaso. Por necessidade.

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De cara com Madonna

Serrano foi parar nos balcões de bar também por necessidade, depois de uma lesão desfazer sua trajetória como jogador de futebol, na posição de artilheiro. Nascido em São Paulo e criado em Bragança Paulista, começou a carreira nos campos aos 11 anos, no Guarani de Campinas.

Passou pelo Bragantino, pelo XV de Jaú e, aos 18, o sonho de ser um atleta de fama internacional o levou ao Clapton F.C., time do leste de Londres.

A contusão que o obrigou a passar por uma cirurgia e o impediu fez com que revesse planos e voltasse ao Brasil, onde tentou nova carreira como professor em uma escolinha de futebol.

Logo vi que não queria dar aula e decidi voltar à Inglaterra para tentar ganhar a vida do jeito que desse"

O jeito que deu foi o bar. O começo na área de hospitalidade, em 1999, talvez não tenha sido dos mais glamourosos, embora tivesse encontrado trabalho no refinado Sketch (até hoje um dos restaurantes mais badalados de Londres) e, algum tempo depois, no exclusivo (e hoje extinto) Morton's Members Club.

Nesses lugares sacudidos teve a chance de presenciar Madonna comemorando seus 46 anos, trabalhar na festa de lançamento de "Matrix Reloaded", esbarrar com celebridades como Mick Jagger, Leonardo Di Caprio, Christina Aguilera, Dolph Lundgren.

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Nos bastidores do balcão

À parte o contato, ainda que discreto, com a realeza do entretenimento, as jornadas eram extenuantes. "Eu estudava inglês, fazia todos os extras que podia para aprender a profissão do bar, fazia faxina, lavava copos, lavava o bar, cuidava do estoque, atuava como barback", conta.

Barback é o cara que, como o nome diz, fica "atrás do bar". Não deixa faltar gelo, cuida para que utensílios e copos estejam limpos e nos devidos lugares, repõe garrafas e suprimentos, seca o chão para que a equipe não escorregue, mantém o balcão limpo. Faz o trabalho de bastidor para que o bartender apenas se concentre no preparo dos coquetéis e receba os louros.

O lufa-lufa não impedia que Serrano prestasse milimétrica atenção a tudo: a proporção dos ingredientes nos coquetéis clássicos e autorais, as preferências do público e a execução de cada receita em minúcias.

Eu lia a comanda e já sabia preparar o coquetel, em que copo ele deveria ser servido, com que tipo de gelo e de guarnição"

Faltava apenas por a mão na massa.

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Uma Margarita para Paul McCartney

Numa tarde muito fria, 5 graus negativos, dia de folga, Serrano recebeu o telefonema que mudou tudo. Dois bartenders haviam faltado e o barback brasileiro era chamado para ocupar emergencialmente uma das vagas. Jogou duro: "Disse que ia, mas com a condição de que a chefia do Sketch me promovesse a bartender no dia seguinte".

A estratégia deu certo e logo Serrano teve a chance de preparar coquetéis e exercitar a criatividade que o consagraria. De bartender de execução, foi subindo postos até chegar ao de bar manager e à assistência da gerência.

Adaptar receitas clássicas foi uma das lições que a impecável escola de coquetelaria londrina lhe proporcionou. Paul McCartney, a quem teve o prazer de atender no Morton's, pedia sua Margarita com um tico de suco de laranja, ingrediente que não consta da receita original.

Lá pelas tantas, tocado pela tequila, o bar já fechado, Paul McCartney voltou do banheiro batucando em um balde de champanhe. Ele cantou algumas músicas, das quais reconheci 'Hey Jude', e perguntou em que bares ele e seus amigos ainda poderiam beber mais uns drinques aquela noite"

Marcelo Serrano

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Boemia, aqui me tens de regresso

Um belo dia, o sonho acabou, como cantara Lennon, parceiro de McCartney. Ou perdeu a graça. "Bateu saudade da família. Já havia juntado algum dinheiro, comprado um carro", explica Serrano sobre sua decisão de voltar ao Brasil, mesmo tendo vencido em uma das cidades mais influentes da coquetelaria, da cultura, da moda e da economia mundiais.

Eu não sabia nada do mercado de bares no Brasil, mas logo percebi que aqui eu não ganharia o mesmo dinheiro que ganhava em Londres. Decidi voltar mesmo assim"

Perguntou sobre trabalho a um amigo, ao amigo do amigo. Assim foi até garantir seu retorno com emprego acertado, no East, restaurante asiático no bairro dos Jardins, em São Paulo.

Chegou em 2006 com status de "barman de fora" e antenado com a coquetelaria de ponta que se fazia no planeta. Em pouco tempo, enturmou-se com bartenders veteranos da cidade, como Derivan de Souza e Kascão Oliveira, e encontrou reflexo no trabalho de outros profissionais que também traziam novidades do exterior, como Márcio Silva, chegado da Espanha.

Naquele tempo, na Europa, já acontecia a conversa entre o bar e a gastronomia, os mixologistas puxando as técnicas dos chefs para a coquetelaria, criando seus próprios ingredientes. Cheguei aqui e os drinques da moda eram Apple Martini, Cosmopolitan, Mojito, aquele gosto do brasileiro por bebidas mais adocicadas. Fui nessa linha, era o que o público queria"

Marcelo Serrano

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Sacudindo as bases da coquetelaria

Depois de passar por outros endereços, finalmente teve a chance de colocar em prática habilidades mais ousadas. O MyNY Bar, inaugurado em 2009 no Itaim, teve vida breve, mas sacudiu as bases da coquetelaria paulistana, tremor sentido em outras regiões do Brasil. Spencer Amereno Jr., outro mestre da geração de Serrano, também passou por lá.

"O MyNY e o SubAstor, com Márcio Silva, foram responsáveis por lançar muita coisa que vemos hoje em dia, como o gelão cristalino, coquetéis envelhecidos em madeira, xaropes artesanais, taças e copos diferenciados", diz

Era a coquetelaria como uma verdadeira experiência sensorial, que envolve olhos, aroma e paladar"

Ali, com liberdade e estrutura para criar, estabeleceu receitas que até hoje aparecem em suas cartas de coquetéis, como o Robusto (amaretto, pêssego, licor de damasco, limão siciliano, grappa, xarope de maple e chocolate granulado, tudo defumado com canela). Sua invenção mais célebre nasceu no mesmo período.

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Eis que surge a espuminha

A espuminha do Moscow Mule surgiu como solução para uma deficiência do mercado brasileiro. Não havia por aqui ginger beer ou ginger ale, ingredientes fundamentais para dar o toque picante de gengibre à receita. Serrano foi às bases da coquetelaria molecular, então bastante em voga. E deu seu jeito.

Nem era exatamente uma novidade. No Buddha Bar, o bartender Henrique Medeiros já havia criado uma espuma de Caipirinha. A onda molecular nem era muito minha praia, mas foi a solução que encontrei para executar o Moscow Mule"

Outro perrengue: tampouco havia no Brasil a canequinha de cobre, hoje presente em qualquer boteco. Serrano convenceu a casa a importar as canecas e finalmente pôde servir, sobre a base de vodca e limão, com sifões também importados, a espuma feita com clara de ovo, suco de gengibre, limão, açúcar e refrigerante citrus.

Sabem o que aconteceu? Praticamente nada. Os bebedores do MyNY, mais afeitos a tragos potentes como Negroni, Dry Martini ou Old Fashioned, pouca bola deram para o leve e cítrico Moscow Mule.

Serrano, depois da trabalheira que foi colocar o drinque na praça, não desistiu dele. Levou-o a seu novo posto na Brasserie des Arts, endereço frequentado por pattys e maurícios nos Jardins.

O Moscow Mule bombou na Brasserie des Arts, em 2012. Era o começo do Instagram, apareciam as primeiras blogueirinhas, as influencers. Muita gente pedia 'o drinque da canequinha' sem nem querer saber o que tinha dentro dele. Outros bares tiveram de fazer. Só que acabaram fazendo do jeito deles"

Marcelo Serrano

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Cópias controversas

Serrano chegou a se impacientar com a livre interpretação de sua sacada. A espuminha original foi pensada para se dissolver rapidamente no coquetel, mesclando o perfume e o sabor do gengibre a cada gole. Uma parada leve e sutil. Nada a ver com algumas espumas densas, à base de creme de leite e com consistência de merengue, que surgiram a seguir.

"Hoje entendo que todo mundo precisa se virar do jeito que pode, é uma luta manter um negócio em pé. Minha contribuição passou a ser ensinar os profissionais a fazer e a servir a espuma do jeito correto", diz Serrano, que tatuou Moscow Mule no braço, em homenagem ao coquetel que lhe deu fama.

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Um grande mago, afinal

Acompanhar o trabalho de Marcelo Serrano nos leva a outras surpresas sensoriais.

Adaptar um clássico, para ele, não tem apenas sabor de desafio, mas de curiosidade e interesse pelos ingredientes locais. A delicadeza com que prepara um sour de cachaça com cupuaçu é comovente.

Acho que devemos respeitar os clássicos, pois são a base de qualquer pensamento em coquetelaria. Mas as reinterpretações, quando bem-feitas, sempre são bem vindas, e nisso o Brasil tem muito a oferecer"

"Um Negroni com café fica bem gostoso. Um Daiquiri com jabuticaba também. Nossas frutas, ervas e raizes abrem um mundo de possibilidades", diz.

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