'Atacama' argentino

Uma viagem pela Puna de Salta, onde, em 1999, 3 crianças incas foram descobertas congeladas nas montanhas

Daniel Nunes Gonçalves* colaboração para o UOL

Lado B de Salta

Existem três crianças congeladas em exibição em um discreto museu de Salta, na Argentina. Muitos brasileiros que têm descoberto a charmosa cidade no norte do país recentemente, depois que ela passou a receber voos diretos do Brasil, nem se dão conta, mas trata-se de um dos maiores achados da arqueologia mundial.

La Niña del Rayo, el Niño e Doncella morreram 500 anos atrás em um ritual de sacrifício dos incas aos deuses e foram encontradas em 1999 durante uma expedição científica à montanha de Llullaillaco.

Desavisados, alguns brasileiros que visitam Salta mal conhecem a história dos "Niños de Llullaillaco". Estão entretidos caminhando pelo centro histórico, provando as mais famosas empanadas argentinas - as salteñas - e tomando alguns dos melhores vinhos brancos do mundo, produzidos ali na vizinha Cafayate.

Para quem se interessa por montanhas e viagens de carro, o MAAM pode ser o ponto de partida inspirador de uma road trip ímpar: pelas alturas remotas do Deserto da Puna, o fantástico lado B da província de Salta.

Veias cênicas da América Latina

Nossa jornada motorizada de seis dias e 1.500 quilômetros pelo deserto argentino começa na fotogênica Rota 68. Ela atravessa as formações rochosas avermelhadas espetaculares entre a cidade de Salta e seu charmoso distrito produtor de vinhos, Cafayate.

Por abrigar algumas das estradas mais lindas da América Latina, o norte da Argentina é velho conhecido dos amantes das road trips. Muitos deles partem do Brasil com motos e veículos 4x4, se deslumbram com Salta e Cafayate até que, 14 horas depois, chegam ao vizinho Deserto do Atacama, no Chile.

Em nosso caso, preferimos voar a Salta e focar na Argentina. Somos 8 pessoas de 4 países a bordo de duas picapes da Socompa, empresa pioneira que desde 2004 lidera expedições pela Puna. "Estamos prestes a entrar em uma das regiões mais remotas do planeta", diz Fernando Caram, um dos dois guias-motoristas, com o mapa em mãos.

O deserto é um imenso planalto árido na área central da Cordilheira dos Andes, com impressionantes 1.800 quilômetros de extensão e 400 de largura. O platô leva o nome de Altiplano, na sua porção dentro da Bolívia e do Peru, mas também é chamado de Puna Atacameña, no Chile, ou simplesmente Puna, na Argentina.

A paisagem natural, que ignora as fronteiras desses países, é impactante. Ladeando a imensidão desse plano elevado com desertos de sal a uma altitude de 3.200 metros erguem-se duas séries de picos de mais de 6 mil metros, separando a Cordilheira dos Andes em uma parte oriental e outra ocidental.

Mais de 200 desses picos são vulcões. E entre eles está o Llullaillaco, onde as crianças incas do museu de Salta foram achadas.

Cidade de pedra

Uma monumental cidade sagrada pré-inca do povo Quilmes salta aos nossos olhos uma hora depois de deixarmos Cafayate pela Rota 40, mítica rodovia que atravessa a Argentina de norte a sul.

Localizados já na província vizinha de Tucumán, estes terraços com paredes de pedras e cactos gigantes que sobem montanha acima teriam sido, por volta do século 10, lar de um dos mais avançados povos pré-colombianos do continente.

Um singelo centro de visitantes narra esta história e conta como os Quilmes foram influenciados pelo Império Inca, que dominou a América Latina por volta do século 15, antes da invasão dos espanhóis.

Dunas de Randolfo

Quando os carros desviam para a Rota 43 e começam a subida para a Puna, agora na província de Catamarca, a paisagem vai mudando.

Surgem as lindas Dunas de Randolfo, à beira da estrada, e mais adiante, algumas das montanhas andinas em cujos cumes os montanhistas já acharam 25 crianças incas mumificadas.

Quando enfim chegamos, no entardecer, a um refúgio no meio do nada em El Peñon, local dos próximos três pernoites, uma convidada especial passa a nos acompanhar: a montanhista argentina Constanza Ceruti, única arqueóloga entre os 9 exploradores que encontraram, há 25 anos, as três crianças congeladas de Llullaillaco.

Marte é logo aqui

A contemplação das múltiplas cores quentes do céu seco e frio nas alturas da Puna, no anoitecer da chegada, ajudam a minimizar os desconfortos da altitude de 3.400 metros (a mesma da antiga capital inca em Cusco, no Peru). Não por acaso, o mal-estar é conhecido como "mal da Puna".

A Hostería El Peñon surge como um oásis de conforto no inóspito vilarejo de mesmo nome. "Vinte anos atrás, nem os argentinos conheciam a Puna", conta o proprietário Fabrizio Ghilardi, um italiano que há duas décadas se apaixonou pela Puna. "A luz elétrica para o dia todo só chegou em 2018", conta Fabrizio, enquanto orienta sua equipe a aquecer os 8 quartos com lenha para driblar o frio de 5 graus negativos.

É no dia seguinte, porém, que a exploração dos primeiros 130 quilômetros de carro pelos arredores - ao longo de 7 horas - mostra por que o cenário incomum da Puna é sempre associado ao de outro planeta.

Quando os carros se aproximam da base do vulcão Carachi Pampa, um campo de lava negra petrificada contrasta com o céu azul e a lagoa avermelhada pelo reflexo das montanhas.

Flamingos cor-de-rosa e vicunhas selvagens dão toques surreais à cena. Ali perto, as impecáveis Dunas Blancas convidam a caminhar.

Mais chocante é o vizinho Campo de Pedra-Pomes, uma imensa reserva natural formada por labirintos de rochas porosas brancas esculpidas de forma magistral pelos ventos — e absolutamente convidativa para fotos. Marte deve ser assim.

Conquistadores de montanhas

Por ser uma parada estratégica de quem desbrava os confins da Puna, El Peñon é um ponto de encontro de gente destemida cheia de histórias.

Se na primeira noite ouvimos as memórias do italiano dono da pousada, e também de um casal de hóspedes europeus que vive a viajar de motorhome, no jantar seguinte é a vez de assistir à projeção de fotos e ouvir os bastidores da descoberta dos niños de Llullaillaco com Constanza Ceruti, amiga de Fabrizio, ex-professora do guia Fernando e acompanhante do grupo da Socompa.

Criança de Llullaillaco - Wikipedia - Wikipedia
As 'múmias' das crianças de Llullaillaco entraram para o livro dos recordes como as mais preservadas já encontradas
Imagem: Wikipedia

Nativa de Buenos Aires, ela codirigiu a expedição que destacaria Salta na arqueologia mundial aos 25 anos, quando já tinha escalado 50 montanhas de mais de 5000 metros (hoje seu currículo passa de 100 picos, incluindo dois cumes do Aconcágua). Não por acaso, ela se tornaria uma das maiores arqueólogas de alta montanha da Terra, com 25 livros publicados.

"Levamos mais de um mês na expedição, que foi liderada pelo norte-americano Johan Reinhard, um explorador experiente da National Geographic", conta Constanza, que dedica a vida a pesquisar os centros cerimoniais que os incas ergueram nas montanhas andinas de mais de 6.000 metros.

Antes de Llullaillaco, Constanza já tinha encontrado restos de pessoas mumificadas em expedições como a do Nevado Quehuar, também na Puna.

As três crianças foram encontradas congeladas, em um estado de conservação surpreendente - Reprodução - Reprodução
As três crianças foram encontradas congeladas, em um estado de conservação surpreendente
Imagem: Reprodução

Ela só não imaginava que os 6.739 metros do Llullaillaco escondiam tamanha preciosidade: rodeadas por oferendas, as três crianças congeladas surgiram impecáveis das escavações, o que as levaria até ao Livro dos Recordes como as pessoas mumificadas mais bem preservadas do planeta.

Flamingos e fumarolas

Quanto mais se passam os dias nas expedições pela Puna, maior é a consciência de que estamos em um destino remoto sem igual no planeta.

No dia seguinte, quando partimos para conhecer quatro lagoas andinas e chegamos a uma altitude de 4.750 metros, só cruzamos outro grupo de seres humanos depois de 5 horas na estrada.

"A Puna é o melhor lugar do mundo para viajar de moto", defende o mecânico Juan Manuel Sanchez, um dos nove motociclistas de Buenos Aires que levaram uma semana para vir desde a capital. "Ao menos uma vez por ano fazemos uma expedição para cá", conta, entre uma foto e outra à beira da lagoa de sal, esse líder do grupo de amigos chamado Moterraneos World Tour.

Os cenários continuam alucinantes. A Laguna Grande surpreende como o maior ponto de congregação de flamingos de toda a Puna: mais de 19 mil pássaros costumam se encontrar ali na primavera (eles somem no inverno, quando a lagoa congela).

Já a Laguna Diamante, também habitada por patos e rodeada por vicunhas, fica na caldeira do Vulcão Galán, a maior dos Andes.

Não distante estão as fumarolas, fissuras vulcânicas no solo onde águas borbulhantes emitem fumaça e gases como o dióxido de enxofre. Faz lembrar os gêiseres do Atacama, mas sem borrifar jatos - e num lugar mais remoto e quase sem turistas.

Montes de pedras

Por dias a fio, a jornada pela imensidão da Puna encanta pela exuberância: cruza montanhas coloridas, lagoas de sal e formações geológicas milenares cortadas pelas estradas desertas.

Especialmente gratificante é visitar vilarejos sonolentos com meia dúzia de casas, e quem sabe conhecer escolas locais, como fizemos no pueblo de El Peñon.

Neste norte da Argentina, as crianças têm a mesma pele morena dos ancestrais incas, como a das crianças congeladas do Museu de Salta, e não brancas como as dos descendentes de espanhóis comuns em Buenos Aires.

No caminho pela Quebrada de Calalaste rumo a Tolar Grande, ponto do último pernoite antes de voltar a Salta, paramos para entender os montes altos de pedras empilhadas que vínhamos observando em vários pontos da Puna. Eram as apachetas.

"As apachetas são parte da cultura de gratidão aos espíritos das montanhas que se repete em vários lugares dos Andes e do mundo", explica a arqueóloga Constanza.

Cada um de nós deposita a sua pedra justamente na apacheta da beira da estrada onde se vê, ao fundo, a montanha de Llullaillaco.

Chegar ao cume sagrado dos picos andinos é privilégio de montanhistas como Constanza.

Mas avistar os topos a partir das bases — e ouvir dos guias as histórias das ascensões — já é suficiente para encantar, com gosto de "quero mais", os poucos viajantes que exploram, de carro e por caminhos incríveis, o cenário apaixonante da puna.

*O jornalista Daniel Nunes Gonçalves participou da expedição a convite da Socompa.

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