O festejo de Lucy Alves

A cantora, atriz e musicista paraibana, símbolo de um Brasil criativo e alegre, comanda a festa de Nossa

Adriana Negreiros Colaboração para Nossa

Céu multicor

"Olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo. Olha praquele balão multicor, como no céu vai sumindo". Basta fechar os olhos e cantarolar, baixinho, a música de Luiz Gonzaga — um clássico do repertório do Rei do Baião — para a cantora, multi-instrumentista e atriz Lucy Alves ser transportada, de imediato, de seu apartamento do Rio de Janeiro para a pequena Itaporanga, no sertão da Paraíba.

Se respirar fundo, pode até sentir o cheiro de milho assado na fogueira — e os olhos arderem por causa da fumaça que alcança as bandeirinhas coloridas, penduradas de um poste a outro da rua. "Foi numa noite, igual a esta, que tu me deste o teu coração. O céu estava assim em festa pois era noite de São João", diz a segunda estrofe da música.

As lembranças das noites de São João chegaram junto com o mês de junho. O vestido cheio de babados, em estampa xadrez, obra de sua avó materna, exímia costureira; o chapéu de palha com duas trancinhas embutidas; as bochechas rosadas com blush quase vermelho; as sardinhas caprichosamente pintadas com lápis preto para os olhos; o fuzuê da meninada a correr de um lado para o outro com um milho assado numa mão, um estalinho na outra.

"Desde que nasci, vejo o São João na rua", comenta, cabelos amarrados no topo da cabeça, casaquinho preto de mangas compridas e pernas de fora, como entrega a câmera do seu celular — nesta entrevista, pelo zoom, ela se remexe na cadeira com rodinhas, apoia as mãos no joelho, leva às mãos para o alto. "Sou muito inquieta", define-se.

"São João traz para mim as raízes mais profundas"

Lucy fala do convite para a curadoria, das memórias juninas e dá uma palhinha

Nas estradas do Nordeste

"Uma hora, isso tudo vai passar", afirma Lucy sobre os tempos de quarentena. Vai, mas não antes de 24 de junho, da noite de São João. Lucy sabe muito bem disso, mas não se lamenta. Este fato específico — a ausência de queixumes — demonstra um aspecto interessante (e tão valioso em tempos atuais) de sua personalidade: a resiliência. Se, para nordestinos como um todo, o São João é uma ocasião única, para a família Alves tem uma dimensão especial.

Durante décadas, sob o comando do pai, José Hilton Alves, conhecido como Badu, um adorável trio de irmãs — Lucyane, Laryssa e Lizete — percorreu sertão e litoral nordestinos para levar uma mistura de música erudita com ritmos nordestinos de raiz às maiores festas da região. Isso ocorria o ano inteiro, mas com particular intensidade em junho. O mês já começava com uma festa — o aniversário de Maria José, a matriarca dos Alves, no dia 2 — e seguia a todo vapor, tomado por preparativos para o apogeu, a noite de São João.

O nome do grupo musical estrelado pelas três irmãs - e que contava ainda com a participação da mãe — era Clã Brasil. Nas vans e ônibus nos quais cruzavam as estradas nordestinas, em meio a sanfonas e violinos, os cinco acumulavam experiências singulares de aperreio e afeto: trocavam de roupa no carro, comiam com o veículo em movimento, usavam o ombro uns dos outros como travesseiro.

Uma vida meio mambembe só na aparência, porque na verdade era cheia de regras. Badu, homem sertanejo cheio de convicções, conduzia o grupo com mão de ferro. Para preservar a mulher e suas três meninas de eventuais roubadas, certificava-se setecentas vezes da idoneidade de seus contratantes, da segurança do local dos shows, da justeza no pagamento dos cachês.

Por outro lado, garantia a beleza do espetáculo: as meninas ensaiavam exaustivamente, durante horas a fio, usualmente dedicando momentos de lazer e descanso, como sábados e domingos, ao trabalho duro.

O duplo investimento em proteção e profissionalismo dava resultado. Durante o mês de junho, a família faturava o suficiente para pagar as contas do ano inteiro. Não que precisasse daquilo. Tanto Badu quanto Maria José tinham outra fonte de renda. Ele é engenheiro eletricista; ela, professora de Educação Física. Trabalhavam no Clã Brasil muito mais por amor à música do que por impositivo financeiro. Mas, por prazer ou necessidade, se haviam decidido fazer, pois que fosse à melhor maneira. Essa era a lição que Badu procurava transmitir, diariamente, para suas meninas: em tudo na vida, é preciso dedicação e capricho.

"Painho, me deixe"

Lucyane — a Lucy — tinha 14 anos quando o grupo foi formado. Laryssa estava com 13 e Lizete, apenas 10. Àquela altura, Lucy já era uma multi-instrumentista experiente. Começara a estudar música aos 4 anos, no projeto Formiguinhas, vinculado ao curso de música da Universidade Federal da Paraíba. Com um talento excepcional para aprender a tocar instrumentos — violão, violino, piano, bandolim e sanfona são apenas alguns dos quais ela maneja com brilhantismo - aceitou ao convite da maestrina argentina Norma Romano para integrar a Camerata Izabel Buriti, no início da adolescência.

Laryssa e Lizete seguiram os passos da irmã mais velha. No entanto, embora também fossem talentosas, não queriam seguir carreira artística. Na época do vestibular, Lucy optou pelo curso de Música. Laryssa e Lizete escolheram a Medicina.

Na faculdade, a jovem musicista descobriu que, além dos ritmos populares do Nordeste, podia explorar outros universos. Investiu energias nas aulas de canto. Encantou-se por bossa nova e samba. Apaixonou-se por Gilberto Gil e Bob Marley, obcecou-se por Arthur Maia - e, na companhia das irmãs e algumas amigas, criou uma banda de reggae. Tocou e cantou em barzinhos de João Pessoa, para desgosto de seu pai. "Sua felicidade está na sanfona", ele ralhava. "Painho, me deixe, quero tocar baixo", respondia, mencionando o instrumento que, por uns tempos, roubou todas as suas atenções.

Dito assim, podia parecer que Badu era um homem conservador, arredio a novidades. Pois o que pensar do fato de ter sido ele o principal incentivador para que a filha, então com 27 anos, participasse do reality show The Voice, da TV Globo? Mais uma vez, não que ela precisasse disso. Famosa na Paraíba, com uma carreira consolidada como musicista e cantora, tocava com grandes nomes da música - na época, fazia parte da banda de Alceu Valença.

"Você tem que se inscrever. Tenho certeza de que vai ser escolhida", aconselhou Badu. "Oxe, painho, o senhor é doido?", a filha respondeu. Loucura ou visão, o fato é que a garota inscreveu-se e, conquistando o Brasil com a voz afinada e o resfolegar da sanfona, terminou o concurso em segundo lugar. Ao fim do reality, lançou-se em carreira solo. "E entendi que a sanfona era o grande lance", conta Lucy. Bem que painho disse.

Em compensação ele não gostou nada quando Lucy avisou que interpretaria a personagem Luzia, da novela Velho Chico, em 2016. Achava que o novo trabalho a afastaria da música. De fato, enquanto esteve interpretando a esposa de Santo (papel do falecido ator Domingos Montagner), ela manteve distância dos palcos. Em compensação, descobriu uma nova vocação. "Sou uma atriz assumida e gosto disso", diz. Tanto que viria a atuar em outras duas novelas, Tempo de amar (2017) e Amor de mãe (2020), além de fazer uma participação especial em O outro lado do paraíso (2018). Mas assume que a música é seu grande amor. "Leva-me para outro lugar".

Bem-vindo ao Festejo!

Arriégua

Hoje, Lucy Alves segue nessa busca do justo equilíbrio entre permitir-se novas experiências sem prejuízo de suas raízes. O sotaque inegavelmente nordestino, docemente arrastado, ajuda, porque imprime personalidade a um de seus instrumentos básicos de trabalho: a voz.

Por isso, talvez, fique arretada quando escute um colega ou outro, também nordestino, adotar o carioquês como que por encanto. "Dizem que estão convivendo com muita gente e por isso mudam o jeito de falar", ela conta, danada de raiva. "Eu moro aqui há cinco anos, só tem carioca do meu lado, mas carrego meu sotaque comigo".

Lucy nunca precisou amenizar o acento paraibano para nenhum trabalho. Mas sabe que, em algum momento, talvez precise começar a chiar. Fará por um papel, se preciso for, mas sonha com o momento em que os nordestinos tenham representatividade em novelas urbanas, passadas no Rio de Janeiro, sendo o que são. Médicos, engenheiros, jornalistas, como tantos outros cearenses, pernambucanos ou baianos com seus arriéguas, visses e oxentes a viver nas grandes cidades do mundo.

E que o nordeste possa ser representado na sua diversidade, não em grotesca caricatura. Bonito e genuíno como nas festas de São João.

Globo/Raquel Cunha

Noite antecipada de São João no YouTube

No dia 19, Lucy Alves fará uma espécie de noite antecipada de São João em seu canal no YouTube. De seu apartamento no Rio de Janeiro, pretende simular uma festa autêntica, com direito a forró — e muitos quitutes.

Sabores juninos

Três pratos à base de milho que não podem faltar no São João de Lucy

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Pamonha

O quitute leva ainda coco e pode vir nas versões doce ou salgada. A massa é cozida na própria casca do milho até alcançar uma consistência firme. Lucy gosta da versão preparada com açúcar, servida com queijo coalho assado.

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Mungunzá

Doce feito de milho triturado, branco ou amarelo, cozido no leite com açúcar e servido com canela. Há versões com leite de coco e condensado.

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Espiga assada

Durante os festejos juninos, as espigas são servidas em nova versão. Além de cozidas em panelões com água e sal, também podem ser assadas nas fogueiras. Os caroços ficam queimadinhos.

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