O outro lado das Maldivas

Paraíso dos famosos, as ilhas têm uma face que não aparece no Instagram: miserável, violenta e toca do ISIS

Juliana Linhares Colaboração para Nossa Carl Court/Getty Images

Conhecidas por serem um paraíso para os mergulhadores, por causa do azul e da visibilidade quase infinita de seu mar, e também como esconderijo dos muito ricos que querem se isolar em seus resorts caríssimos, as Ilhas Maldivas são, para além dessas maravilhas, um país inóspito, com uma das capitais mais superlotadas do mundo, devastada pela pobreza e pela criminalidade.

As ilhas escolhidas também por celebridades, inclusive brasileiras, caso de Juliana Paes, Xuxa e Paulo Gustavo, que queriam "fugir da covid" (*), têm ainda um outro horror: é um ninho do Estado Islâmico.

As Maldivas são duas nações, dois mundos completamente diferentes. O real, composto pela capital Malé, onde quase toda a população mora — e de um jeito miserável —, e o de fantasia, que fica nas outras ilhas, onde estão localizados os resorts. E para onde os turistas vão.

Formada por 1.196 ilhas, das quais apenas 203 são habitadas, e localizadas perto do Sri Lanka e da Índia, as Maldivas são um país muçulmano. E, hoje, o país não-árabe com o maior número per capita de foreign fighters, os combatentes estrangeiros do ISIS.

A escritora e jornalista Francesca Borri lançou este ano no Brasil o livro "Que Paraíso é Esse?", em que destroça as ilusões etéreas que todos temos sobre as Maldivas. Por causa de trechos dele, foi ameaçada de morte diversas vezes. Inclusive de ser "esfolada viva", ela conta.

A seguir, uma entrevista a Nossa com a autora, trechos de seu livro e informações retiradas de estudos de organizações como ONU e The Asia Foundation detalham este lado desconhecido do paraíso.

(*) As Maldivas estão hoje no nível de risco máximo para covid-19, o quarto. Até o dia 15 dezembro, o país registrou 13.379 casos e 48 mortes.

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A pobreza

Apesar das quase 1.200 ilhas que formam o país, para os maldivanos, no fundo, ele é uma ilha só, a capital. Malé é puro concreto, motos pra lá e pra cá e ar saturado. Tem pouco mais de 6 km² e 143 mil residentes. Segundo a escritora, a população verdadeira é mais que o dobro.

"Em Malé, cada buraco é habitado. Nas casas, em cada quarto, moram 5, 10, 20 pessoas. Muitas vezes falta luz. Senhoras dormem em esteiras surradas no chão, as paredes são remendadas com chapas, e há lixo, roupas sujas e fedores dos corpos. A cozinha é um fogão velho de uma boca e uma geladeira enferrujada. Não há janelas, mesas, cadeiras. No máximo, uma TV conseguida nas últimas eleições em troca do voto", descreve Francesca, a respeito da moradia da maioria dos cidadãos.

O salário médio é de 8 mil rupias maldívias (o equivalente a cerca de 500 dólares), e o aluguel de um três-quartos, 20 mil rupias maldívias. Você leu certo.

"O que você mais gostaria de ter no mundo?", a jornalista pergunta no livro para uma moça, que mora com a família em uma casa de dois quartos, sendo que cada um abriga dez pessoas. "Um quarto com uma lâmpada", ela responde. "Ou só metade (de um quarto)".

As gangues criminosas

Malé está repartida em cerca de 30 gangues. Elas são formadas por rapazes que se juntam ora para jogar futebol, mas, na imensa maioria do tempo, para cometer crimes.

Cada gangue tem entre 50 e 500 filiados, o que quer dizer que elas envolvem um quinto dos jovens, que são a grande maioria da população. A idade média nas Maldivas é 18,7 anos.

Um relatório recente produzido pela The Asia Foundation (uma organização de desenvolvimento internacional sem fins lucrativos), baseado em entrevistas com mais de 130 membros de gangues, descobriu que a maioria dos partidos políticos se utiliza delas.

"Se você roubar uma manga da árvore do vizinho pode pegar um ano de cadeia. Mas, ao mesmo tempo, a tolerância é total: estamos a serviço dos políticos. E eles te encomendam de tudo, de um serviço de panfletagem a um esfaqueamento. Com tabela de preços. 1200 dólares para quebrar uma vidraça, 600 para queimar um carro, 1600 para agredir um jornalista. Se for útil para eles (até) te tiram da cadeia", diz Kinan, 31, um dos nomes mais conhecidos da criminalidade de Malé, em entrevista a Francesca.

Kinan, ela diz, já assassinou mais de uma vez, é viciado em heroína, traficante da droga, foi condenado duas vezes mas nunca foi preso.

A entrevista traz mais horrores sobre os políticos: "Quando se começa a discutir sobre os hospitais que faltam e propinas, te pedem para provocar um pouco de caos. Algumas porradas no estádio. Um pouco de sangue. Assim, as pessoas pensam em outras coisas", ele completa. De acordo com o livro, a polícia de Malé é tomada como mais uma das gangues.

Quando meu livro foi lançado em inglês, recebi centenas de ameaças de morte. Eu mandei uma mensagem de volta apenas, para um homem que me assediou por dias. "Quem se importa?", eu respondi. "Você não tem ideia de onde estou". Uma hora depois, ele me enviou as coordenadas de GPS de onde eu estava"

Francesca Borri , Autora do livro "Que Paraíso é Esse?"

Heroína e water-cola

Outro grande problema associado à violência nas Maldivas é a heroína. Ela custa muito menos do que uma vodca — e o álcool, para eles, muçulmanos, é proibido — e o vício de muitos jovens aterroriza as famílias.

Mohammed Shoaib, da Journey, uma ONG criada para ajudar os adictos em Malé, diz no livro que mais de 100 usuários da droga se registram em seu escritório todos os meses. "É mais rápido comprar heroína do que pizza", ele fala.

Cinquenta por cento dos jovens das Maldivas são viciados em algum tipo de droga, atestou o New York Times, alguns anos atrás, citando um estudo da Unicef. Segundo o livro de Francesca, a ONU aponta que hoje 98% das pessoas nas Maldivas conhecem alguém que tem problemas com o vício. E 44% têm um parente nesta condição.

Em meio à juventude, uma outra substância tem causado muita perturbação, a chamada water-cola. Trata-se de uma bebida que mistura refrigerante com água de colônia. Muito mais água de colônia. E ela basicamente faz a pessoa desmaiar.

Arquivo pessoal

"Eles prometem me rastrear e me esfolar viva"

Autora fala a Nossa de ameaças que recebe por causa do livro

Racista e preconceituosa. Essas são algumas das acusações de maldivanos que pesam sobre você, desde o lançamento do livro. O que tem a dizer sobre elas?
Meu livro é sobre jihadistas, mas ninguém disse uma palavra sobre isso. Fui "assada" por algo bem diferente: por dizer que as Maldivas não têm uma cozinha típica (na pág. 53, ela escreve que as Maldivas devem ser o único país do mundo sem uma culinária local). Porque são deslumbrantes, sim, são lindas além da imaginação, mas, ainda assim, são um arquipélago no meio do nada, e por isso eram tão pobres antes do turismo. É um ambiente difícil. Sem nem mesmo uma nascente de água. E, bom: sem nem uma cozinha típica. Mas, céus. (Alguns maldivanos, em resposta) Ainda estão tirando fotos de atuns e camarões, me acusando de ser a racista branca ocidental de sempre, que retrata o sul do mundo como um mundo de selvagens. Então, enquanto publicam selfies com sargos assados e um chapéu de chef, em particular, eles prometem me rastrear e me esfolar viva.

Que outras represálias você sofre por causa do livro?
Em janeiro de 2019, quando meu livro foi lançado em inglês, recebi centenas de ameaças de morte. Eu mandei uma mensagem de volta apenas uma vez, para um homem que me assediou por dias. "Quem se importa?", eu respondi. "Você não tem ideia de onde estou". Uma hora depois, ele me enviou as coordenadas de GPS de onde eu estava. Nas Maldivas, as redes sociais são frequentemente utilizadas para intimidação. E a web está repleta das chamadas listas de sucesso, com nomes de jornalistas e ativistas para atingir. Mas, francamente, não há sentido em negar a existência de jihadistas; nas Maldivas, eles sempre estiveram à vista. Eles tinham, e ainda têm, páginas da web sobre como se alistar e por quê. Qual guerra escolher. Qual país. Prós e contras. Entre a edição italiana e a americana de meu livro, (o jornalista) Yameen Rasheed foi morto e três outros foram para o exílio (blogueiro e ativista maldivano, Rasheed, de 29 anos, foi esfaqueado em Malé, em 2017. Ele era conhecido pelas críticas contra o governo e o islamismo radical).

Eu fui basicamente a primeira [a escrever sobre essa faceta das Maldivas]. E é por isso que passei despercebida. Agora, seria muito perigoso. Mas na Al Jazira, há um poderoso documentário sobre corrupção, chamado "Stealing Paradise", e outro sobre jihadistas, o "Trouble in Paradise". Depois de nós, todos os repórteres internacionais que tentaram continuar a história, e eles realmente deram o melhor de si, foram forçados a fugir. Ou a entrada deles no aeroporto foi negada"

Francesca Borri, Autora do livro "Que Paraíso é Esse?"

Arquivo pessoal

A pobreza nas Maldivas, especialmente em Malé, continua hoje nos mesmos moldes dos descritos pelo seu livro, lançado em 2018 (no Brasil, apenas este ano)?
Nas Maldivas, a pobreza e a violência são um efeito da própria estrutura da economia, dominada por poucos empresários bem relacionados: 5% da população detém 95% da riqueza do país. É algo que você não pode mudar do dia para a noite, e especialmente agora, com a covid-19. O país teve apenas 48 mortes até agora. Mas mais de 70% de seu PIB vem do turismo, e em 2020, as chegadas caíram muito, de 1,7 milhão em 2019 para cerca de meio milhão. Um em cada cinco turistas é da China e não há voos da China. O PIB caiu os piores 9% de sua história. No entanto, economia à parte, o quadro não é tão sombrio. Porque, politicamente, há muita coisa acontecendo. Em setembro de 2018, o líder da oposição Ibrahim Mohamed Solih venceu as eleições. E em novembro de 2019, o ex-presidente Abdulla Yameen foi condenado a cinco anos por lavagem de dinheiro. Ele agora está na prisão. E nas Maldivas, o combate à corrupção é o primeiro passo para combater a pobreza.

Quais razões há, além das históricas, para a ligação das Maldivas com o que você chama de "Islã mais profundo"?
O Islã nas Maldivas é profundamente influenciado pela Arábia Saudita. Por wahabismo (uma forma rígida e conservadora do islamismo; chamada por muitos de "pai ideológico" do Estado Islâmico. Os wahabistas defendem por exemplo a independência política e cultural dos países árabes em relação ao Ocidente). O que realmente tem pouco a ver com a cultura local. Em Himandhoo, por exemplo, a música é proibida e acusada de ser contra as tradições. E, no entanto, na nota de 10 rupias ainda há um tambor, o instrumento típico do país. Se não fosse pelo bilhão de dólares com que é financiado, o wahabismo nunca se espalharia. A Arábia Saudita paga escolas, hospitais, mesquitas, infraestrutura. Dá dinheiro e um propósito aparente a uma geração jovem que se sente perdida e sem futuro. Quando você não precisa de dinheiro e pode viver uma vida plena, não apenas a vida de um garçom de hotel, de um servo, quando você é livre, então o seu Islã também é livre.

Os resorts: eles também têm desumanidades

Para quem, até aqui, achou que os problemas estavam apenas em Malé, saiba que as outras ilhas têm seus horrores também.

Muitas delas possuem pouco mais do que algumas mercearias, uma escola, um campinho de futebol e a mesquita. Algumas não têm nem eletricidade.

Das cerca de 200 ilhas habitadas, mais da metade são resorts; que ocupam a ilha inteira. E, nelas, portanto, só há uma possibilidade de trabalho: ser funcionário desses hotéis.

A descrição que a jornalista faz da vida levada pelos jovens com essa ocupação é desoladora. "Os jovens ficam longe nove meses de casa. E, ainda assim, com o salário, mal conseguem pagar o aluguel da casa onde ficou a família. Fora do horário de trabalho, são proibidos de andar por ali e costumam dividir um quarto com outros muitos empregados".

Os resorts foram todos abertos mais ou menos nos anos 1970, por empresários estrangeiros, com a permissão do governo que queria modernizar o país.

Pela lei, eles precisam ter um sócio maldivano que, na prática, é quem consegue a concessão da ilha. E, por isso, esses moradores são sempre próximos a algum político. Cada empresário tem o seu partido de referência. E cada partido tem a sua gangue de referência.

Com o turismo, entram cerca de 3,5 bilhões de dólares por ano nas Maldivas — a diárias de um resort pode chegar a 5,6 mil dólares. E esse dinheiro vai para as mãos apenas desse grupo de empresários, seus sócios estrangeiros e alguns políticos.

"Aos maldivanos não chega nada. O dinheiro praticamente nem circula nas Maldivas. No país, 5% da população possui 95% da riqueza", diz Francesca. Em 2016, 8,2% dos maldivianos viviam abaixo da linha de pobreza do país, segundo pesquisa da ONU.

A opção de pousadas: perigosa

Diferentemente dos resorts, elas estão em ilhas normais, com moradores. Foram criadas depois de 2008, com o objetivo de produzir um pouco de renda para os locais. Quem as inventou foi o presidente Mohammed Nasheed, que tentou, em linhas gerais, trazer mais democracia para o país — e foi obrigado a renunciar em 2012.

Elas não deram tão certo quanto Nasheed imaginou. Mesmo custando infinitamente menos que os resorts, cerca de 100, 150 dólares por noite, tendo quartos geralmente iluminados e amplos e, bem, aquele deslumbre de mar.

Essa é a análise da autora.

De comércio, essas ilhas geralmente têm apenas uma loja de souvenires, dois ou três cafés e o mesmo tanto de mercearias. Para atrair os turistas, os donos das pousadas pedem há anos que o governo permita a melhora dos serviços.

Eles querem, por exemplo, alargar a bikini beach, que é a expressão usada para definir a praia para os ocidentais, único lugar onde o biquíni é permitido. Com fortes tradições religiosas, nas ilhas, muitas delas usam o niqab, o véu que deixa apenas os olhos à mostra.

Eles também não são autorizados a criar festivais ou mesmo um cinema. Segundo donos de pousadas entrevistados por Francesca, o governo os boicota. Isso porque, dizem, as pousadas poderiam mudar todo o sistema turístico, dito corrompido, das Maldivas.

Uma das pousadas em que a autora se hospedou, na Ilha Maafushi, em 2018, era "um retrato do que há de melhor no ramo".

A falta de luz e água era frequente. A janela de seu quarto dava para o muro da central elétrica da ilha. O menor dos problemas dali, entretanto, era o zumbido ininterrupto. "Atrás dessa central só há areia e lixo. Uma longa extensão de lixo, que é queimado tudo junto. O cheiro é de dioxina (espécie de substância tóxica, proveniente da síntese de desinfetantes e herbicidas, por exemplo)", ela descreve.

Minúscula, em dez minutos é possível percorrê-la de ponta a ponta, Maafushi fica a duas horas de balsa de Malé. Ou também a meia hora de lancha, por um preço 10 vezes maior (aos resorts, só se chega de hidroavião).

Nas mercearias locais são vendidas apenas linha de pesca, afirma Francesca. "Deixar a gente abrir uma pousada não é o suficiente. Aqui não tem nada, só o oceano. E os turistas não querem só uma cama e um café da manhã. São turistas, não refugiados", diz o dono da loja de souvenires local, ouvido pela escritora.

As pousadas melhores oferecem passeios para pescarias e mergulhos. Algumas, visitas a um resort. Por cerca de 250 dólares, os turistas apenas podem ficar na praia; sem usar a estrutura do resort. No preço estão incluídos sanduíches naturais e bebidas. A melhor delas, segundo a autora, é a Crystal Sands. Trata-se na verdade de um hotel 4 estrelas, com restaurante internacional. O custo médio é de 130 dólares.

Nas ilhas, os turistas ficam, sim, entre os maldivanos, mas a verdade é que eles não se misturam, diz o livro. "Quando se aventuram fora da bikini beach, por exemplo, andam de trajes de banho. Ou seja, demonstram respeito zero ao local".

E a atitude dos locais também é difícil.

Ainda está no YouTube o casamento de um casal suíço, em 2010, num resort. Rolava aquela cerimônia clássica na praia, os dois descalços e com colares de flores. Os nativos estavam com roupas tradicionais e, um deles, que realizava a cerimônia em dhiveni, a língua das Maldivas, dizia: "Vocês são apenas fornicadores infiéis, certo?", "Filhos da puta". O casal sorri e diz "Sim, sim".

A ilha que é um toca dos ISIS

A dez horas de barco da capital, Himandhoo é uma ilha selvagem. Tem 600 habitantes, a maioria pescadores, palmeiras e lojinhas cujas prateleiras estão cheias de bugigangas de tudo o que os barcos precisam.

Himandhoo é o bastião do Islã radical. Muitos de seus habitantes partiram para a Síria e o Iraque e, antes disso, para o Afeganistão. Na árvore mais alta da ilha costumava flamular uma bandeira da al-Qaeda e seus moradores construíram uma mesquita alternativa à estatal, segundo Francesca.

Por tudo isso, há anos ela é vigiada pelo governo.

Em 2007, a polícia desembarcou na ilha depois que um ataque jihadista ferira doze turista em Malé. Os policiais encontraram dezenas de homens com o rosto coberto, armados com barras de ferro, pedras e facas. Um policial teve a mão decepada. Precisaram bater em retirada.

Na ilha, a música é proibida e as mulheres todas usam o niqab. "Elas te olham, mesmo as meninas, e desaparecem para dentro das casas", diz a jornalista, que se hospedou em Himandhoo.

"Na chegada, vi só duas mulheres num canto, completamente cobertas de preto. Não tem ruas. A gente abre caminho entre os galhos. A pousada que reservei é a única casa verdadeira. O rapaz da recepção não fazia ideia que um hóspede estava chegando", ela conta.

O lugar, a autora conta, é só areia e palmeiras. A única diversão é um mínimo de esporte. Homens jogam futebol e as mulheres, bashi, que segundo a escritora, é uma mistura de beisebol com tênis. As moças jogam vestidas todas de preto, claro. À noite, não tem ninguém na rua.

Em março deste ano, uma lancha da polícia foi incendiada no atol de Lama Gan. Segundo dados do governo britânico (os ingleses vão muito para as Maldívias), a polícia o caracterizou como um incidente terrorista.

Um mês antes, dois funcionários residentes e um turista haviam sido esfaqueados em uma outra ilha, a de Hulhumale. O ataque fora reivindicado por apoiadores do Estado Islâmico.

"O que me impressiona é que nada tenha acontecido antes. E nada pior", escreveu sobre o episódio o jornalista Jason Burke, um dos maiores especialistas em jihad, e que trabalha no jornal The Guardian.

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E eles iam quase todos para a Síria

Nos últimos anos, assim como os estrangeiros aportaram nas Maldivas, um número importante de locais começou a viajar para outro lugar que também prometia 'paraíso', embora em um sentido radicalmente diferente: a Síria.

O país vive uma guerra desde 2011. O conflito opõe o governo sírio e seus aliados a grupos rebeldes. O mais forte deles e que controlava a região era o Estado Islâmico. No ano passado, uma coalizão militar multinacional praticamente erradicou o ISIS da Síria, mas a organização segue ativa em algumas regiões do país.

Há 173 casos confirmados de combatentes estrangeiros das Maldivas, de acordo com o governo do Reino Unido. Em uma população de 350 mil habitantes. Os dados mostram ainda que 26% incluem mulheres adultas.

O governo nega. Mas nas Maldivas todo mundo tem um irmão, primo ou amigo na Síria.

A marginalização econômica e social tem papel decisivo nos alistamentos dos jovens maldivanos ao EI. Mais do que a religião, dizem os especialistas.

"A Síria é uma oportunidade não somente financeira, mas moral: é uma espécie de de redenção. Ir para lá significa ter uma casa, um salário, amigos. E, principalmente, uma identidade; um lugar, finalmente. Um sentido. Ir para a Síria significa recomeçar do zero", diz Aishaat Ali Naaz, diretora do Maldivian Institute for Psychological Services, Training and Research, que recupera dependentes químicos e dá apoio psicológico na região, entre outros processos.

Kiran, o rapaz citado no começo da reportagem, que disse já ter cometido crimes financiados por políticos, vai mais fundo:

"Não é difícil (ir para a Síria). Ninguém te para. Têm todo o interesse em se livrar de nós, (porque) realizamos todos os crimes deles, conhecemos todos os segredos deles. E queremos todos ir embora. Qualquer coisa é melhor que Malé. Na Síria, pelo menos eu seria morto por uma razão melhor", diz Kiran à jornalista.

A religião, claro, também é parte do motivo. "Somos muçulmanos. Somos uma única comunidade. E a Síria, simplesmente, é a prioridade. Seria estranho que com 500 mil mortos pensássemos mais em nós que na Síria", diz Mohamed, estudante de 20 anos, apaixonado por filosofia, literatura e relações internacionais.

Os jihadistas são rapazes normais. Alguns têm problemas, claro, estão nas gangues ou fugindo da polícia, mas normalmente levam uma vida de noitada, têm amigos, família. Não são extremistas, dizem estudiosos ouvidos para o livro.

"Sentem-se um zero trabalhando em resorts, ficam lá meses, longe de tudo e aí começam a pensar na possibilidade de se alistar", pontua um deles.

O esfacelamento do Estado Islâmico na Síria e a chegada do coronavírus mudaram um pouco esta dinâmica. No entanto, Francesca afirma que o perigo permanece.

"Com a covid-19, está tudo congelado. Muitos foreign fighters ainda estão lá, mas ninguém hoje está viajando para a Síria. O Estado Islâmico não existe mais, mas todos os fatores que levaram ao seu surgimento, ainda existem. Na Síria e no Iraque acontecem cerca de cem ataques deles todos os meses", disse a autora a Nossa.

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O inferno dentro do paraíso

"Viver nas Maldivas é terrível. E não só por causa da criminalidade. Você está no meio do oceano. Ou seja, é magnífico, sim, mas só por um dia. Uma semana. É como ficar preso em uma armadilha, aqui. E ainda por cima sem nenhum cinema, parque, teatro, show. Nada. Um dia igual ao outro", diz no livro a psicóloga Aishaat Ali Naaz.

Não há estações de ano no país. A temperatura é constante, entre 25 e 30 graus. A luz é sempre a mesma, o ano todo. As pessoas vestem sempre as mesmas roupas. Chove muito de maio a outubro, mas não esfria.

Quase tudo que aos turistas é permitido, aos locais é vetado: álcool e o sexo fora do casamento, por exemplo, podem render a punição de chibatadas em público.

O paladino da lei contra o álcool é Gasim Ibrahim, um deputado que, além de ser um fervoroso fiel, é um fervoroso empresário, talvez o mais rico do país: seus resorts são os maiores consumidores de uísque, vodca e vinho, afirma a autora.

Aos fins de semana, para se divertir, os jovens maldivanos vão para noitadas no Sri Lanka, onde tudo é permitido. E se esbaldam.

"As Maldivas obviamente são de uma beleza extraordinária. Porém, não se vive de beleza. Se vive... se vive de vida", diz Aishaat Ali Naaz.

Mulheres e gays: chibatas em público

A Constituição reconhece a liberdade de opinião, mas com a condição de não a exercer contrariando o Islã. Somente os muçulmanos podem ser cidadãos e a apostasia, ou o abandono da religião, é crime.

Ainda por trás da imagem idílica retratada pelos operadores de turismo, existe um sistema judicial violentíssimo que persegue mulheres e gays.

Esposas que traem os maridos podem ser castigadas com 100 chibatadas. A punição em tese é aplicada do mesmo modo para os homens, mas quase todas são aplicadas em mulheres.

A homossexualidade também é punível com chicotadas, além de deportação, prisão domiciliar ou seis anos de prisão.

Quase um terço das meninas das Maldivas na escola secundária foram abusadas sexualmente pelo menos uma vez, segundo a Unicef, com taxas entre as meninas e o dobro das taxas entre os meninos. Além disso, quase metade de todas as crianças sofreram castigo emocional ou físico.

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