Adeus, Nakagin

O triste fim do primeiro edifício de apartamentos-cápsula que virou ícone da arquitetura japonesa

Roberto Maxwell Colaboração para Nossa, de Tóquio, Japão Denys Nevozhai/Unsplash

Era como se eu estivesse dentro de um OVNI"

A DJ Koe descreve assim a sensação de viver no Nakagin Capsule Tower, um dos prédios mais icônicos de Tóquio que começou a ser desmembrado no último dia 12, depois de anos de indefinição sobre o seu destino.

Localizado nas bordas de umas regiões mais caras da capital japonesa, com seus apartamentos-cápsula de apenas 10 , o Nakagin nasceu com uma grande ambição. "Ele trouxe uma proposta transformadora para a forma como as pessoas poderiam morar na cidade", explica o brasileiro Gabriel Kogan, especialista em arquitetura japonesa.

Inaugurado em 1972, o Nakagin foi revolucionário. Era a primeira vez que se construía um edifício reciclável. Isso numa época em que sustentabilidade e outros temas afins não faziam parte da pauta. Conheça a história dele e as impressões — já carregadas de melancolia — de quem viveu ou teve bons momentos ali.

Denys Nevozhai/Unsplash
Raphael Koh/Unsplash As cápsulas pré-fabricas seriam trocadas a cada 25 anos, mas isso nunca aconteceu

As cápsulas pré-fabricas seriam trocadas a cada 25 anos, mas isso nunca aconteceu

Paralelepípedos verticais

Dividido em duas torres, uma com 11 andares e outra com 13, o Nakagin era formado por cápsulas em formato de paralelepípedo com cerca de 10 metros quadrados cada. Cada uma delas poderia ser usada como moradia ou escritório.

As cápsulas pré-fabricadas eram conectadas à torre central por meio de cabos de alta tensão e eram removíveis. A ideia era que fossem trocadas a cada 25 anos. Com a manutenção feita de forma correta, o prédio poderia durar 200 anos, garantia Kisho Kurokawa, o arquiteto que projetou o prédio, falecido em 2007.

Desde os anos 1960, o Japão vivia um processo acelerado de desenvolvimento econômico, tecnológico e social que ficou conhecido como o Milagre Econômico. Foi neste contexto que um grupo de jovens arquitetos, discípulos do veterano Kenzo Tange, formulou as ideias do Metabolismo.

O movimento teorizava que as construções podem incorporar aspectos da natureza, incluindo crescer de forma orgânica. Construído pouco mais de uma década após o pontapé inicial do Metabolismo, o Nakagin é considerado por Gabriel Kogan uma síntese do movimento.

Getty Images O filmaker Masa Yoshikawa, um dos últimos moradores, trabalha em sua cápsula, em foto tirara em dezembro de 2021

O filmaker Masa Yoshikawa, um dos últimos moradores, trabalha em sua cápsula, em foto tirara em dezembro de 2021

Refúgio para um

O público-alvo das pequeninas unidades eram os salaryman, trabalhadores dos inúmeros escritórios localizados nas zonas mais centrais da capital japonesa. Em Tóquio, a maioria das famílias moram em subúrbios que são acessíveis através de linhas de trem e metrô quase sempre abarrotadas.

A ideia era oferecer aos trabalhadores um refúgio no centro durante a semana e evitar as longas horas de viagem entre a casa e o trabalho.

Kogan, que é especialista em arquitetura japonesa, visitou o interior do edifício. "Esperava encontrar uma unidade residencial muito pequena e ela é ainda menor do que eu esperava", conta ele, que diz ter ficado impressionado com as soluções desenvolvidas dentro da cápsula.

A parede perpendicular à cama lembra um painel de comando com TV, aparelho de som, telefone e interruptores embutidos. Encaixada a ela, como a porta de um armário, fica a escrivaninha.

O aproveitamento do espaço é ainda mais surpreendente no banheiro. O vaso sanitário, em formato circular, é integrado à minúscula banheira e, ao lado dele, existe ainda um cinzeiro, representando bem o hábito de fumar ainda hoje comum entre os salaryman.

"Apesar de pequena, a cápsula tinha uma lógica para racionalizar o uso do espaço e oferecer várias funções num mesmo lugar", explica o arquiteto.

O apartamento-cápsula por dentro

Denys Nevozhai/Unsplash Denys Nevozhai/Unsplash

Futuro do pretérito

As boas ideias, no entanto, não foram capazes de salvar o prédio da decadência. A troca das cápsulas, essencial para a manutenção, nunca foi feita. O processo teria que ser aprovado por todos os proprietários, já que as cápsulas deveriam ser trocadas todas de uma vez. A deterioração foi inevitável.

Foi um dos lugares em pior estado de conservação que eu já vi na vida. Parecia que eu estava entrando numa ruína do futuro do pretérito" Gabriel Kogan, arquiteto

Nos últimos anos, apenas cerca de 30 das 140 cápsulas estavam ocupadas de alguma maneira.

Uma das formas de ocupação eram as visitas guiadas, realizadas com o apoio de uma associação criada por moradores e outros interessados na preservação do edifício.

Arquivo pessoal
A arquiteta Renata Cabrera visitou o Nakagin em 2021

Foi numa oportunidade dessas que a arquiteta Renata Cabrera visitou o prédio, em julho de 2021. Ela, que se declara fã da "estética futurista pós-apocalíptica", ficou boquiaberta com a experiência.

Infelizmente a falta de manutenção fez com que tudo ficasse muito deteriorado, mas lembro de mesmo assim ficar obcecada até pelas caixas de correio, que tinham um design incrível"

A sensação foi tão forte que ela não se esqueceu nem do número da cápsula que visitou, a A 904, que era aberta ao público. "O ambiente estava limpo e super iluminado pela grande janela redonda. A marcenaria muito bem preservada e os equipamentos de som, TV e telefone te levam lá pros anos 80, quando o edifício devia ser completamente habitado", conta ela.

Getty Images A DJ Koe participou do movimento contra o fim do edifício Nakagin

A DJ Koe participou do movimento contra o fim do edifício Nakagin

Senso de comunidade

O encantamento causado em visitantes como a Renata não é novidade para os últimos moradores do Nakagin. "Era um espaço que fazia coisas mágicas", conta a DJ Koe que morava no prédio desde 2019, quando alugou a primeira das três cápsulas em que vivia.

Ela era um dos membros mais ativos da associação que batalhou pela preservação do prédio. Com os demais companheiros, organizava eventos, visitas guiadas e outras atividades.

Como DJ, Koe costumava usar as pickups para fazer performances pelo Twitch diretamente de uma das cápsulas que ocupava. Assim, ela conseguia levar um pouco do Nakagin para gente de todo o mundo.

Queria que as pessoas soubessem que as cápsulas ainda eram utilizáveis"

Foram mais de 160 apresentações solo, além de 10 eventos com convidados. "Os amigos que me vinham visitar, os DJs convidados, todo mudo ficava muito empolgado", conta.

Susann Schuster/Unsplash

Um edifício querido

Residente em Tóquio, Piti Koshimura sentiu de perto esse senso de comunidade que envolvia o Nakagin. A influenciadora digital tem forte interesse em arquitetura e, durante uma aula com um especialista japonês, em 2019, acabou caindo no assunto do edifício.

Foi ele quem abriu as portas do prédio para ela, da forma mais inusitada possível. "No dia da nossa aula, o professor me disse que tinha um convite para um evento na Nakagin que ele não poderia ir. Ele me passou o convite e eu fui", relembra Piti. "Foi surreal. Era tipo uma festa no apê e, como eu não conhecia ninguém, ficou uma certa estranheza no início", recorda.

Era a comemoração do aniversário do Kisho Kurokawa, o projetista do Nakagin. "Tinha bolo e tudo", conta ela, rindo. O climão se dissipou após algum tempo e logo Piti estava ambientada com os moradores e convidados.

Eles são apaixonados pelo lugar, pelo projeto, pela história"

Arquivo pessoal
DJ Koe olha da janela o fim da Nakagin

"O prédio tinha, claro, um valor histórico", explica a DJ Koe. "Mas eu queria que houvesse o reconhecimento de que o Japão deveria preservá-lo. Infelizmente, não conseguimos, o que é realmente uma pena", lamenta ela, que agora acompanha a demolição pela janela de um apartamento alugado em um prédio vizinho. "Sinto uma dor no peito ao ver a remoção das partes, dos banheiros que não serão reutilizados", diz.

O arquiteto Gabriel Kogan acha que o fim da Nakagin era inevitável. "Muito dificilmente se conseguiria uma outra solução", explica. "O metabolismo tinha a ideia de que as construções se renovariam em determinados ciclos. É isso que está acontecendo", completa.

Getty Images Getty Images

O legado

O processo de desmanche do prédio deve durar até o mês de dezembro. Como as cápsulas estão sendo retiradas por inteiro, é possível que muitas delas já tenham destino. Museus e centros de exposição são os mais prováveis.

Para Gabriel Kogan, o prédio deixa mais que isso. "Os ideais do Nakagin vingaram, mesmo que sem a forma", explica ele.

O Nakagin antecipou a ideia de que é possível ser nômade na cidade"

O arquiteto aponta que algumas soluções surgidas com o edifício acabaram se tornando corriqueiras. Os hotéis-cápsula, que oferecem hospedagem barata a turistas e moradores nas grandes cidades japonesas, são um exemplo. Onipresentes nas de baixa renda e nos hotéis business, os banheiros modulares de acrílico também.

"Era um prédio muito experimental. Tinha um projeto ousado, de transposição de barreiras tecnológicas", continua Kogan.

É uma obra inspiradora que traz a ideia de que você pode sonhar coisas completamente absurdas e conseguir executar, de que você pode sonhar novas formas de morar na cidade e elas podem acontecer"

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