Padoca de família

Conheça a história de três estabelecimentos que passaram de pai para filho

Flávia G Pinho Colaboração para Nossa Arte UOL

Uma lojinha pequena, acanhada, com um único balcão e o forno ao fundo, que só alguns poucos clientes visitavam pessoalmente, porque a grande maioria recebia os pães na porta de casa, junto com a garrafa de leite — esse era o modelo das primeiras padarias que funcionaram no país.

Elas começaram a aparecer no Rio de Janeiro de 1808, assim que a corte portuguesa fugiu da Europa para viver na colônia, e demoraram um bocado para mudar de cara.

Durante muito tempo, padaria era a lojinha que vendia pão, manteiga em latões, biscoitos e bolachas de fabricação própria", conta Augusto Cezar de Almeida Neto, autor de "A história da panificação brasileira".

O sotaque estrangeiro sempre foi uma das marcas registradas das nossas padarias — na São Paulo que se tornou metrópole entre o fim do século 19 e o começo do 20, portugueses e italianos disputaram o mercado pãozinho a pãozinho. E essa forte ligação cultural talvez explique outro traço importante: no Brasil, e em São Paulo particularmente, padaria é negócio que passa de pai para filho.

Comandando seus fornos e balcões com a dedicação de quem cuida de um bem precioso, gerações de padeiros e comerciantes têm mantido seus sobrenomes à frente de padarias que se confundem com a história da cidade. Conheça três delas.

Fernando Moraes/UOL Criada por imigrante italiano, São Domingos está na quinta geração

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São Domingos

Os carros que passam apressados pelo viaduto Júlio de Mesquita Filho quase raspam na parede lateral desse patrimônio histórico paulistano, testemunha de um tempo em que São Paulo era iluminada por lampiões a gás e seus moradores perambulavam em bondes elétricos.

Recém-chegado da Calábria, sul da Itália, Domenico Albanese sabia que seus conterrâneos não dispensavam o pão à mesa. E apostou alto — construiu um senhor forno a lenha com quase 10 metros de comprimento e capacidade para assar 750 pães de uma só vez. A clientela cresceu tão rápido que a carrocinha para entregas logo ficou pequena. Em 1913, a padaria ganhou balcão e porta para a rua, onde está até hoje.

As fornadas perfumavam as ruas do Bixiga, na época um bairro rural de casas amplas e chácaras. Os Albanese moravam em cima da loja e todo mundo participava da lida. Assim a padaria foi passando às mãos do filho de Domenico, Felipe, ao seu neto, Domingos, e ao bisneto, Silvio — que segue à frente do negócio na companhia da mulher, Leunice, e do filho, Vitor, trineto do fundador.

O forno segue em atividade, convertido para gás, e o balcão mal comporta a variedade de produtos que os Albanese passaram a produzir. Cada nova geração que assumia trazia um tanto de novidades. Vieram os antepastos, as linguiças, os pães recheados que viraram o carro-chefe.

"A gente foi se adaptando às novas demandas", recita Vitor, 31 anos, que estudou administração de empresas e gastronomia para dar conta do recado. "Cresci sabendo que trabalharia aqui dentro."

Repare no traçado do viaduto Júlio de Mesquita Filho: vê-se uma barriga pouco antes da Padaria São Domingos. Foi por pouco que o sobrado dos Albanese não foi para o chão.

A padaria quase foi desapropriada nos anos 1970, quando o viaduto foi construído. "Dizem que a influência da família e o empenho dos clientes provocou a mudança do traçado e impediu a demolição", conta Vitor.

Até o fim de 2022, se tudo der certo, a casa ganha a primeira filial — uma loja espaçosa, com restaurante, no bairro do Cursino. Mas na matriz, Vitor jura que ninguém mexe. "Essa padaria é a vida da minha família, jamais a tiraríamos dali."

Fernando Moraes/UOL Basilicata cresceu tanto que deu origem até a um restaurante

Basilicata cresceu tanto que deu origem até a um restaurante

Basilicata

A trajetória de 108 anos desta padaria paulistana é a cara de uma autêntica família italiana — mistura quatro gerações e, por vezes, parece tão bagunçada quanto uma gostosa macarronada de domingo. Envolve uma intrincada árvore genealógica e, não bastasse, sobrenomes com duas grafias diferentes.

Tudo começou em 1914, quando o imigrante Filippo Ponzio inaugurou o estabelecimento na Rua Treze de Maio. Passaram-se 28 anos até que a casa fosse adquirida pelo conterrâneo Domingos Laurenti — de lá para cá, a administração do negócio virou assunto de família. Foram chegando o filho, o primo, o cunhado do primo e toda a filharada, quarteto que hoje compõe a quarta geração dos Lorenti-Laurenti.

Antônio Laurenti, 57 anos, é um deles. Sobrinho de um primo de Domingos, ele participa da Basilicata desde moleque.

Meu pai acordava às 4h30 para entregar pães. Nas férias, voltava em casa às 6h15 para me buscar, adorava passar o dia com ele na padaria. Em família de padeiros, a gente só se vê nos almoços de domingo", lembra.

A passagem do bastão nem sempre foi simples. Antônio não esquece como foi difícil convencer pai e tios a trocar o piso do imóvel, nos anos 1970. Mas o jeitinho da nova geração derrubou barreiras.

A loja cresceu, incorporou espaço para lanches e ganhou até restaurante, com direito a filial — Rafael Laurenti, 30, quinta geração, é quem comanda a cozinha.

Fernando Moraes/UOL De ambiente para brincadeiras da infância a ganha-pão: Santa Marcelina passou de pai para filhos

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Santa Marcelina

Antônio Guilherme de Brito atravessava o Atlântico sozinho, saudoso da casa da família que deixara na Serra da Estrela, em Portugal, quando completou 18 anos. Era o ano de 1957 e uma São Paulo em expansão o esperava. Já maior de idade, o garoto desembarcou sem saber que se tornaria proprietário de uma rede de padarias.

Foi de tanto trabalhar, sem ligar para horário de expediente ou folga, literalmente dormindo sobre sacos de farinha, que o garoto chamou a atenção do patrão. Virou sócio em um novo negócio e, em 1978, inaugurou uma padaria para chamar de sua: a Santa Marcelina, em Perdizes.

Vizinha à escola de quem tomou o nome emprestado, a padaria logo deu filhote: nos anos seguintes, ganhou filiais no Alto da Boa Vista, Moema e Campo Belo. Das quatro, só a do Alto da Boa Vista continua nas mãos da família. Aos 83, o próprio Antônio segue batendo ponto todos os dias, agora na companhia dos filhos Guilherme, 45, e Renato, 55.

"É ele que controla a produção e conversa com a clientela. Como não dirige mais, eu ou meu irmão passamos na casa dele às 5h15 da manhã para buscá-lo", conta Guilherme, que herdou do pai o gosto pelo negócio.

Crescemos aqui dentro, nas férias a brincadeira era passar o dia na padaria. Na nossa casa, acordar às 4h30 e dormir às 18h sempre foi rotina, assim como trabalhar nos fins de semana."

Na Santa Marcelina, o pão francês (que nasceu aqui mesmo, no Brasil) sempre teve concorrentes de sotaque português. Ninguém dispensa o folar recheado de linguiça, o pão cascudo de longa fermentação e o pastel de nata, xodó da casa.

Keiny Andrade e Newton Santos / Hype Da Santa Tereza à Galeria dos Pães, as padarias de São Paulo carregam tradição

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Pão que não acaba mais

Segundo o Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria de São Paulo (Sampapão), as 6.200 padarias da cidade vendem 25 milhões de pãezinhos por dia. A mais antiga em funcionamento é a Santa Tereza, inaugurada em 1872, na Sé.

Padarias estilo tem-de-tudo-um-pouco são recentes. Na década de 1990, elas começaram a incorporar setores como lanchonete e mercearia para fazer frente à concorrência dos supermercados, que também diversificavam os negócios.

O movimento culminou nas megapadarias, fenômeno 100% paulistano — a primeira foi a Galeria dos Pães, de 1999.

Padocaria SP

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