Anarriê amazônico

Arraiais de rua inspiram os irmãos cozinheiros Felipe e Thiago Castanho, que ensinam seu pãozinho de tapioca

Flávia G. Pinho Colaboração para Nossa Getty Images/iStockphoto

O turista que desembarcar no Pará, durante o mês de junho, pode ficar meio confuso. Vai encontrar as mesmas bandeirolas coloridas das festas juninas que embalam o país de norte a sul, e os mesmos quitutes de milho conhecidos dos cardápios típicos de São João, Santo Antônio e São Pedro. Mas as semelhanças param por aí.

Tanto em Belém quanto nas pequenas cidades do interior, as manifestações culturais juninas têm som, cor e cheiro locais. Para quem vem de outras regiões, a sensação é de desembarcar em um Carnaval de rua fora de época.

Nascido e criado na capital paraense, o chef Thiago Castanho explica essa miscigenação de costumes.

Nossos interiores têm formas diferentes de celebrar a festa junina. São Caetano de Odivelas, por exemplo, promove a festa dos mascarados, que mistura as festas dos santos trazidas pelos portugueses ao Boi-Bumbá. Quando eu era criança, tinha boi até na festa junina da escola, e lembro de sentir medo. Mas ainda bem que as pessoas mantêm a tradição viva, é bonito de ver"

O sincretismo, diz Thiago, também toma conta das ruas da capital, Belém, onde acontece o Arraial do Pavulagem — um arrastão de pessoas, com música da região amazônica, muito batuque e a presença de um boi, sacode o centro da cidade.

Não seria diferente na cozinha, onde a mandioca (ou macaxeira, como preferem os paraenses) e seus muitos derivados invadem o território do milho sem fazer cerimônia. Tem espaço para as raízes cozidas, assadas, misturadas com queijo coalho, transformadas em farinha, na forma de tapioca e até para suas folhas.

Um dos quitutes preferidos de Thiago e seu irmão, Felipe, o pãozinho de tapioca da família Castanho, você aprende a preparar no final desta reportagem.

Era uma vez uma vila

Com apenas dois anos de diferença, os irmãos Thiago e Felipe Castanho cresceram coladinhos, aprontaram juntos e, agora adultos, trabalham na mesma área.

Thiago é chef de cozinha premiado, já foi capa do jornal New York Times e publicou alguns livros, entre eles " Cozinha de origem - Pratos brasileiros tradicionais revisitados" (Publifolha). Hoje, é sócio do bar Sororoca, em São Paulo, e apresenta os programas " Sabores da Floresta" (GNT) e "Fome de Luta" (Globoplay).

Felipe, o caçula, é dono da Nauta Pães e Doces Artesanais, inaugurada há 1 ano e meio, em Belém.

A unir a história dos dois está o Remanso do Peixe, restaurante que os pais deles, Francisco e Carmem, abriram em 2000. O salão ocupa a casa onde a família morava. O sobrado fica no fundo de uma vila de três dezenas de imóveis, no Bairro do Marco, na capital, e guarda a história inteirinha dos Castanho.

"Foi aqui que nascemos e fomos criados. Minha padaria fica duas casas depois da entrada da vila", conta Felipe, que preferiu ficar bem perto das origens.

Arquivo pessoal
Felipe Castanho em festa junina da infância: mescla de tradições

Eles lembram que, sempre que o mês de junho ia chegando, a vila começava a se transformar. Com os trocados arrecadados entre os moradores, os fios se enchiam de bandeirolas coloridas — os vizinhos se revezavam na tarefa de comandar a criançada, que fazia questão de ajudar na decoração.

Nos dias de arraial, os perfumes dos quitutes, cada família preparando sua contribuição, iam se misturando. "Era bom, porque a gente podia provar um monte de temperos diferentes", lembra Felipe. Tudo pronto, era só interditar a entrada da vila para os automóveis, levar para fora as cadeiras da sala e começar a brincar.

Arquivo pessoal
Felipe Castanho: 'Gostava das danças [juninas] pela bagunça'

Tinha tudo o que uma festa junina de respeito precisa ter: pescaria com prêmios, estalinhos para as crianças, concurso de Miss Caipira e quadrilha. Nas noites quentes do Pará, não há precisão de fogueira, mas sempre havia uma, nem que fosse pequenina, para dar o clima.

De camisa quadriculada, jeans remendado e chapéu de palha, os irmãos Castanho desenhavam barba e bigode com carvão.

As meninas caprichavam nos vestidos rodados, nas trancinhas e no rosto salpicado de pintinhas. As duplas que dançavam bem ganhavam prendas, mas o arrasta-pé não era o forte da dupla. "Sempre tive o quadril muito duro. Só gostava das danças pela bagunça", lembra Felipe.

Reinado da macaxeira

Na festa junina paraense tem milho, sim senhor. O mungunzá, que o Sudeste conhece como canjica, sempre foi receita obrigatória na casa dos Castanho, preparada pessoalmente por Seu Francisco — espécie de mingau doce feito com milho branco, leva leite condensado, leite de coco, canela e uma folha de louro.

Mas quem olha bem direitinho para as bandejas de quitutes logo percebe que a macaxeira é a tal. A raiz aparece como ingrediente principal do bolo de macaxeira com coco, que fica no meio do caminho entre um bolo e um pudim, com textura puxa-puxa.

A tapioca vira creme à base de leite, leite de coco e leite condensado, servido na cuia indígena típica de tacacá. Tem também um bolo de macaxeira salgado, com textura de pão de queijo, que leva três tipos de queijo — curado, coalho e parmesão — e, volta e meia, aparece na padaria do Felipe.

Ele também cuida para manter a tradição do pãozinho de tapioca, que os paraenses amam tomar com café e tem ingresso garantido em tudo que é festa, inclusive as juninas.

É uma grande referência daqui. Toda padaria faz em formato de rosquinhas ou bolinhas e pode levar queijo, açúcar, coco, queijo... Lembra o pão de queijo com caroço do Nordeste, feito com tapioca" Thiago Castanho

Para a Nauta, Felipe criou uma versão meio doce, meio salgada, que leva queijo coalho. "Come-se com manteiga, mas também fica ótimo com toffee de cumaru", diz o padeiro.

Festa com sustança

Enquanto as festas juninas do Sudeste privilegiam os quitutes, os beliscos e os docinhos, o paraense prefere garantir a janta entre uma dança e outra. E, nesse quesito, as receitas amazônicas imperam.

O tacacá, caldo fumegante de tucupi, camarão e jambu, rola solto nas cuias, competindo com o vatapá paraense que, segundo Thiago, é mais levinho do que o baiano. "O nosso não leva gengibre, amendoim nem castanhas. É basicamente um refogado de camarão com um pouquinho de dendê, em caldo engrossado com farinha de trigo."

Outro hit é a torta de maionese, feita com pão de forma, que pode ser recheada com frango desfiado ou com camarão seco. O pirarucu de casaca, preparado com o peixe seco e salgado, ganha a companhia de farofa de banana da terra e pode ser servido em temperatura ambiente, para facilitar. Já o camusquim, macarrão com molho cremoso de camarão seco e coentro, fica mais gostoso se estiver bem quente.

Nas festas, as pessoas levam suas receitas em pirex e elas acabam esfriando logo. O mais comum é a gente comer tudo meio morno, mesmo" Thiago Castanho

"Dependendo da festa, a gente encontra até maniçoba", emenda Felipe, lembrando do cozido de folhas de mandioca e carnes típico da cozinha amazônica, que precisa ferver por uma semana antes de ir à mesa — imagine dançar uma quadrilha depois dessa comilança.



Pãozinho de tapioca

Ingredientes

  • 250 g de farinha de tapioca flocada
  • 60 g de açúcar
  • 1 pitada de sal
  • 30 g de parmesão ralado
  • 250 ml de leite (ou leite de coco fresco)
  • 2 ovos
  • 10 castanhas-do-pará picadas
  • 30 g de manteiga
  • 1 colher (sopa) de erva doce

Observação: se usar a tapioca granulada acrescentar mais 200 ml de leite à receita

Modo de fazer

Em uma tigela grande, coloque a tapioca, o açúcar, o sal e o queijo. Aqueça o leite, sem deixar ferver, e derrame na tigela. Misture bem e espere esfriar por cerca de 5 minutos.

Acrescente os ovos, um a um, mexendo bem para que o calor não cozinhe os ovos. Junte as castanhas em seguida e incorpore bem.

Unte as mãos com a manteiga e forme bolinhas do tamanho desejado. Arrume-as em uma fôrma untada com manteiga, com um espaçamento de 2 cm, e asse em forno preaquecido, a 200ºC, por 20 a 30 minutos, até dourar.

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