Foi bom pra mim
Participei da Feira da Foda, em Portugal,
um evento que celebra tradições gastronômicas
(e mantém viva a alma do trocadilho)
Lucas Lima, em Monção, Portugal
Participei da Feira da Foda, em Portugal,
um evento que celebra tradições gastronômicas
(e mantém viva a alma do trocadilho)
Lucas Lima, em Monção, Portugal
"Uma boa foda a todos!", anuncia o sistema de som na última tarde da Feira da Foda 2023. Mas no lugar da libertinagem — certamente imaginada pelo brasileiro sem maturidade para viver em Portugal — o que acontece no evento é uma celebração, em ambiente familiar, do cordeiro assado e dos costumes locais.
Embora a palavra foda tenha o mesmo sentido literal do português brasileiro, a feira portuguesa leva o trocadilho às últimas consequências.
A quarta edição da Feira da Foda ocorreu entre 17 e 19 de março. O evento já é uma tradição em Pias, uma aldeia no município de Monção, extremo norte de Portugal. O nome da festa fez com que o evento regional de tradições do campo ganhasse fama além das fronteiras portuguesas.
A foda de Monção nasce da lenda da chamada "feira do engano". Vendedores de ovelhas colocavam sal na forragem para que os animais bebessem muita água e aparentassem estar fortes. Passados uns dias, a ovelha desidratava e ficava completamente diferente", conta Gaspar Magno, presidente da junta de Freguesia de Pias e um dos organizadores da feira.
Os compradores diziam, em um desabafo natural, 'Ah, que grande foda!'. As pessoas da Freguesia começaram a brincar com o termo"
Gaspar Magno
"Ó Maria, já meteste a foda no forno?" Assim Gaspar conta como brincavam os portugueses de Monção para falar da complexidade de preparo do cordeiro assado, o homenageado da festa.
"É um prato trabalhoso. Primeiro se faz o cozido à portuguesa com carne, legumes e temperos. Depois, esse caldo entra tanto no preparo do arroz quanto no do carneiro ao forno. Como envolve muito trabalho, começaram a brincar dizendo: 'Esse prato é uma grande foda!''.
A receita foi eleita, em 2018, uma das "7 maravilhas à mesa" de um popular concurso gastronômico português. Isso aumentou a fama do prato e consolidou a foda no imaginário do país.
Em Monção, a foda é preparada em ocasiões especiais. As casas, especialmente as antigas, são equipadas com fornos para os preparos da iguaria. Também há fornos comunitários nas proximidades de onde é realizada a feira.
"Foda é tradição da nossa terra, é a comida que reúne toda a gente. Eu agora vou fazer aniversário e, com certeza, farei uma foda para comemorar", conta a taxista Adriana Ribeiro, 24 anos, que nasceu e cresceu na região de Pias.
Ninguém faz foda para comer só. É um prato que convida a estarmos todos juntos e a conviver"
Adriana Ribeiro
A Feira da Foda surgiu para revitalizar um antigo evento pecuário que estava em declínio. "Rebatizá-la foi uma ideia feliz. Sabíamos que o novo nome faria barulho", conta Gaspar Magno. "Tínhamos consciência que havia risco, mas as pessoas tomaram tudo com muito bom humor".
O sucesso de público era visível na noite de sábado, 19 de março. Famílias inteiras e grupos de amigos de todas as idades ocupavam as mesas e espaços para shows em duas grandes tendas de lona branca. A organização estima mais de 20 mil visitantes.
Será que as amigas Sônia Domingues, de 44 anos, Joana Silva, 40, e Tânia Domingues, 39, pela segunda vez juntas na Feira da Foda, acham o nome do evento estranho? Elas me respondem em uníssono: "De jeito nenhum! Somos de Monção, já conhecíamos o prato!".
Já as brasileiras Janaína Curado, 43, e Larissa Ribeiro, 23, provaram a foda pela primeira vez. Moradora de Monção há 5 anos, Janaína fez questão de que a família que vive no Brasil conhecesse a festa. "Sugeri que agendassem a viagem incluindo o final de semana da Feira da Foda!".
Larissa, uma das parentes que viajou para visita, achou o convite "muito estranho", mas se rendeu aos encantos da foda. "Foi muita comida boa, vinho bom e muito agito! Achei que ia ser calmo, mas o povo aqui é animado".
No palco, o cantor Hélder Baptista, da banda Motard da Concertina, não deixa o festival de trocadilhos perder o ritmo. "Quem veio pela música? Quem veio pelo vinho?". Depois das respostas mornas, pergunta, para catarse do público: "Quem veio pela foda?"
Domingo pela hora do almoço, último dia de evento, a animação dos shows já dá sinais de fim de festa. Ainda assim, famílias inteiras formam grandes filas e mostram que, de fato, estavam lá pela foda. No auge da lotação, a fila dura até uma hora entre comprar a ficha e ter a foda servida.
O principal kit de refeição custava 26 euros e, além da iguaria gastronômica, incluía um prato feito de barro e uma taça de vinho como lembrança do evento.
No fundo da tenda, os cordeiros previamente assados eram porcionados e montados nos pratos com arroz. O vinho Alvarinho, típico da região, era a bebida escolhida em quase todas as mesas comunitárias.
A Feira da Foda ganhou fama viral pelo nome polêmico, sim, mas oferece mais para o turista. Distante 400 quilômetros da cosmopolita Lisboa, o evento nos leva a um Portugal mais simples e inocente. Celebra suas tradições gastronômicas e mantém viva a alma do trocadilho.
Reportagem, fotos e edição de imagem: Lucas Lima
Edição: Eduardo Burckhardt
Publicado em 30 de março de 2023.