Por que Portillo é diferente?

Viajamos até o coração dos Andes descobrir o que há de especial nesta lendária estação de esqui do Chile


Por Eduardo Burckhardt, de Portillo

"Portillo é diferente das outras. Só indo para sentir"


Este depoimento que ouvi há mais de 20 anos de um viajante das antigas martela minha cabeça. Desde então, a imagem do edifício amarelo-canário solito entre as montanhas virou quase mítica para mim (e sempre voltava para atiçar o mistério).


Pois chegou a hora de desvendá-lo.

O carro luta contra as curvas escoltadas por montes da nevasca dos dias anteriores. Estamos na Ruta 60, que serpenteia a Cordilheira dos Andes para driblar os 168 km que separam a capital, Santiago, de Ski Portillo, a mais tradicional estação da América do Sul.

Nós já cumprimos quase 3 horas de viagem quando chegamos no ziguezague deste tramo da estrada chamado de Los Caracoles, cuja tradução, "caracóis", é autoexplicativa por essa imagem aérea.

No trajeto, trilhos e túneis esquecidos nas montanhas são resquícios do projeto colossal que "descobriu" Portillo. Explico: lá no final do século 19, disposto a fazer uma ferrovia cruzando os Andes, o governo chileno contratou engenheiros estrangeiros para a hercúlea tarefa.

Três noruegueses foram os incubidos de percorrer de esquis a região para traçar a linha férrea. Num belo dia, toparam com a cena: uma lagoa entre encostas perfeitas para deslizar pela neve. A fama do logo se espalhou.

Quase 140 anos depois, chegamos em Portillo neste fim de tarde alaranjado e compreendemos a surpresa dos "gringos". Estamos de frente (e provavelmente com a mesma cara boquiaberta) para a Laguna del Inca.

O imenso corpo de água azul-esmeralda que se deita a 2.880 metros de altura entre os Andes é considerado uma das paisagens mais lindas do Chile — e olha que a disputa é gigante neste país de extremos.

Dizem que é uma lagoa encantada. Segundo uma lenda pré-hispânica, no dia do seu casamento com o inca Illi Yupanqui, a bela Kora-llé morreu ao cair das montanhas. Deixado na laguna, ao tocar o fundo o corpo pintou as águas de esmeralda, a cor dos olhos da princesa.

Seria essa magia que torna Portillo diferente? Conta pontos, mas desconfio que a resposta-chave está no hotel amarelo logo atrás de mim. Assim como a paisagem, congelada no tempo pela altitude dos Andes, ele está praticamente imutável há 75 anos. De propósito.

Há uma aura de antigamente em Portillo. E talvez seja esse seu trunfo. Diferente de pirotecnias criadas por outros centros de esqui — de DJs ao pôr do sol a tours em moto de neve —, aqui tudo segue uma tradição. As instalações são as mesmas, horários e rotinas se mantém e não há televisores nos quartos.

Tentamos fazer de Portillo a estação de esqui que apreciamos: com bom esqui, boa comida e bons amigos"

Simples assim. A frase é deste senhor prestes a sair para esquiar (a saber: a foto foi feita ao acaso, ele realmente, aos 89 anos, ia enfrentar as pistas). Ele é Henry Purcell, o patriarca da família que, nos anos 1960, comprou do governo chileno o hotel e o administra até hoje com a filosofia de preservar seu charme nostálgico.

Henry trocou os EUA pelas montanhas chilenas aos 26 anos. Formado em hotelaria, veio ajudar o tio, Robert Purcell, na empreitada e começaram uma campanha para mostrar ao planeta que, sim, existe bom esqui abaixo da linha do Equador. A epopeia culminou no primeiro (e até hoje único) Mundial de Esqui Alpino no Hemisfério Sul, realizado em Portillo em 1966.

Ligue o som clicando no ícone no canto superior direito e ouça como a estação era divulgada aos norte-americanos na época.

Como você pôde ver, de fato pouco mudou na estrutura e na "alma" da estação. O perfil de quem visita também se mantém: gente que ama esquiar — ou, vá lá, praticar snowboard, uma das breves permissões à modernidade.

E Portillo é uma festa para eles. São 500 hectares esquiáveis onde se distribuem 34 pistas e 14 meios de elevações — as tais "cadeirinhas" para subir as montanhas.

A segurança de todos nas pistas depende deste senhor. Michael Rogan coordena os "caçadores de avalanche". Um vídeo que viralizou mostra como fazem: identificam áreas com risco de deslizamento, sobem no helicóptero e jogam artefatos explosivos. Sim, eles provocam uma avalanche. "Tudo controlado, por supuesto, para evitar acidentes futuros", acalma Rogan.

O "mestre das avalanches" é o norte-americano Frank Coffay. Além jogar as bombas do helicóptero, ele também vai a pé ou de esqui aos locais que irão morro abaixo. Uma vez, no Alasca, chegou a ser soterrado pela neve, mas jura que não ficou traumatizado. "Faz parte da emoção de viver nas alturas", disse a Nossa.

Atletas olímpicos norte-americanos e europeus escolhem Portillo para treinar quando o verão no Hemisfério Norte os deixa sem pistas. Mas, sim, há espaço para nós, novatos, em classes coletivas ou privadas de esqui ou snowboard.

No pool de professores experientes, há brasileiros como a paulistana Isabella F. da Silva. Entre um tombo e outro (meus, claro) ela explicou porque a neve de Portillo atrai tantos amantes do esqui:

Aqui há uma neve seca que proporciona dias incríveis de powder [neve fresca, recém-caída nas montanhas]. Quanto mais seca a neve, mais leve e fofinha ela fica — e é disso que a gente gosta!"

Nem de longe cheguei às pistas pretas, preferidas dos experts, mas tive a chance de chegar aonde só eles podem ir a hora que quiserem: o Tio Bob's. Trata-se de um restaurante a 3.200 metro acima do mar, com mesinhas com vista panorâmica para o combo completo: pistas, montanhas e a Laguna del Inca.

Você chega até lá nas cadeirinhas e desce... esquiando. Calma. Por um breve período do dia, permite-se também baixar pelo teleférico. É a chance de "perebas" como eu também chegarem ao "bar mais alto dos Andes" — e voltarem ilesos, invejando o ziguezague dos experts sob nós.

Na descida do Tio Bob's, outro ângulo do hotel rememora a conversa da noite anterior com Alejandro Goich, o animado gerente do resort. "Ski Portillo é como um navio de cruzeiro encravado no meio das montanhas", dizia ele. O formato até lembra, mas ele se referia ao fato de a estação ser o destino em si.

Como num cruzeiro, tudo acontece no mesmo lugar. Tem aula de ioga na academia, basquete da quadra, música ao vivo no animado bar e, a cereja do bolo, mergulho quente em piscinas cercadas pela neve.

Além disso, como Portillo trabalha só com pacotes fechados de 3 a 7 noites e pensão completa, durante a estadia você convive um bocado com as mesmas pessoas — tal qual nos navios. "Vira uma família", bem-resume o gerente.

"Tentamos manter aqui o espírito de refúgio de montanha", resume Miguel Purcell, que divide com o pai, Henry, o comando do hotel. Depois de uns dias, começo a achar que é isso, valorizar o essencial (ainda que a preço de luxo, vale dizer), que torna Portillo diferente.


No voo de volta, uma frase na brochura da estação praticamente crava a resposta que eu buscava:

Aqui a vida é simples: esquie, coma, curta, compartilhe, durma e comece de novo"

Serviço


Hospedagem
Além do hotel principal, há lodges para 4 pessoas e chalés para 8. Todos permitem acesso aos serviços e instalações do hotel principal. Há ainda um 'lodge-hostel' com acomodações compartilhadas. Na temporada 2024, que já está no fim, os pacotes no hotel principal partiam de US$ 1.136 por pessoa (3 noites).


Passeios
Desde Santiago, empresas de turismo têm tours de um dia até Portillo. No inverno, os visitantes podem observar a vista de um mirante ao lado do hotel ou do café-restaurante aberto ao público. Os tours também ocorrem no verão, quando a paisagem, sem neve na base, muda bastante.

Reportagem e fotos: Eduardo Burckhardt
Design: Yasmin Ayumi
Imagens adicionais: Getty Images, acervo e divulgação