Novo centro velho

Prédios antigos e abandonados do Centro de São Paulo passam por retrofit e atraem novos públicos à região

Lia Hama Colaboração para Nossa

Quem passa nos finais de semana pela rua Amaral Gurgel, na região central de São Paulo, percebe uma intensa movimentação na altura do número 344, próximo à esquina com a rua General Jardim.

Pessoas entram e saem da livraria Gato Sem Rabo, especializada em livros escritos por mulheres; comem e bebem na pizzaria vizinha, Divina Encrenca; e sobem as escadas em direção à galeria de arte contemporânea HOA ou ao restaurante Cora, na cobertura com vista para o Minhocão.

Em comum, os quatro estabelecimentos estão localizados no FSMJ, edifício dos anos 1970 que pertenceu à Santa Casa, ficou abandonado durante décadas até ser vendido, recuperado e colocado para locação.

Trata-se de um exemplo vibrante de retrofit, reforma de prédio antigo com preservação da estrutura e modernização das instalações, no Centro de São Paulo.

Se alguns apontam que a prática traz o risco de gentrificação — quando áreas antes desvalorizadas têm o custo de vida elevado, expulsando antigos moradores —, outros a veem com bons olhos pelo potencial de revitalização.

O FSMJ foi o primeiro edifício reformado pela Planta Inc., gestora imobiliária especializada em retrofits no centro expandido da capital. A empresa mapeou cerca de 150 prédios abandonados da região, um quarto deles com potencial para retrofit.

Segundo o fundador Guil Blanche, a empresa busca prolongar a vida útil desses imóveis antigos, dando novos usos e adequando-os ao modo de vida contemporâneo.

É um desperdício essa quantidade de edifícios abandonados, muitos deles com valor histórico e arquitetônico, em uma das áreas com maior oferta de infraestrutura, transporte e serviços da cidade" Guil Blanche

Com capital de um fundo de investimento imobiliário, a Planta encontra os imóveis, contrata escritórios de arquitetura para realizar a reforma e depois os aluga para a startup Tabas, que faz a sublocação dos apartamentos.

No total, a gestora imobiliária possui um portfólio de oito empreendimentos de retrofit no Centro. Além do FSMJ, outros dois edifícios foram requalificados: o Magdalena Laura e o União Continental, ambos na rua Rêgo Freitas.

Construído em 1957, o Magdalena Laura ganhou jardins e hortas nos terraços, trazendo verde para a paisagem cinza. O antigo prédio comercial teve seu uso convertido para residencial, com contratos de locação para períodos de cinco meses, em média.

"Existe um mercado enorme formado por pessoas que vêm para São Paulo fazer um curso ou um tratamento médico, gente que acabou de se separar e precisa de um lugar provisório ou profissionais que passam uma temporada na cidade", relata Blanche.

A conversão de edifícios de uso comercial para residencial faz sentido numa região que foi esvaziada, ao longo das décadas, pelo deslocamento do centro financeiro da cidade para a avenida Paulista e, mais tarde, para a avenida Faria Lima.

"Muitos prédios antigos de escritórios ficaram vazios. Convertê-los em moradia é uma ótima saída", aponta o arquiteto Marcos Gavião. Ele é responsável pelos projetos de 18 edifícios (15 construídos a partir do zero e três que passaram por retrofit) no centro paulistano, com quase 3 mil unidades habitacionais.

O retrofit mais celebrado de Gavião é do edifício Irradiação, projetado na década de 1940 pelo arquiteto francês Jacques Pilon (1905-1962), um dos responsáveis por propagar os princípios do modernismo na arquitetura brasileira.

Antigo prédio comercial de oito andares na avenida Senador Queirós, próximo à Estação da Luz, o Irradiação pertenceu a uma família que o vendeu à construtora e incorporadora TPA.

Era um edifício decadente, com poucos escritórios, cartório, loja de materiais de festa e uma agência da Caixa Econômica no térreo, que foi mantida" Marcos Gavião

O projeto de retrofit incluiu a revitalização da fachada, a modernização das instalações elétricas e hidráulicas e a reforma das estruturas internas para abrigar residências. "Trocamos os caixilhos antigos das janelas por outros com isolamento acústico porque a região tem muito ruído. Criamos uma área de lazer na cobertura", diz o arquiteto.

Rebatizada de Residence Jacques Pilon, a torre com estúdios de 20 a 41 metros quadrados foi inaugurada em 2019 e ganhou o prêmio Master Imobiliário 2020, na categoria retrofit.

O arquiteto Marcos Gavião aponta que uma lei regulamentada pela prefeitura de São Paulo em maio de 2022 tem potencial para atrair mais investimentos privados a projetos de retrofit para moradia no centro expandido.

A lei cria o Programa Requalifica Centro, que prevê uma série de incentivos fiscais (leia box abaixo) para estimular a revitalização de edificações construídas ou licenciadas até 23 de setembro de 1992.

Apesar de enxergar boa vontade da prefeitura em avançar na agenda de reocupar o Centro, Gavião aponta que a regulamentação da "lei do retrofit", como foi apelidada, deixou uma série de dúvidas.

"Estamos com uma baita insegurança jurídica porque a lei fala em incentivos para prédios exclusivamente residenciais, mas todo mundo sabe que a tipologia de prédio no Centro é de loja no térreo e apartamentos na parte de cima. A forma como o decreto foi redigido deixa a dúvida: se eu mantiver o comércio no térreo, vou perder os incentivos fiscais?", questiona o arquiteto.

Guil Blanche, da Planta, aponta a urgência de trazer previsibilidade para o processo de aprovação dos projetos de retrofit:

Hoje, para construir um prédio do zero em São Paulo, você consegue aprovar o projeto em 90 dias. Já para um retrofit, é imprevisível. Pode demorar mais de dois anos e meio, como é o caso de um dos nossos empreendimentos"

"Se a ideia é estimular o retrofit, a prefeitura deveria contratar um técnico para analisar e dar agilidade a esses processos", acrescenta Blanche.

Reprodução

Incentivos fiscais previstos na 'Lei do Retrofit'

  • Remissão de créditos de IPTU do prédio a ser reformado
  • Isenção de IPTU nos 3 primeiros anos a partir da emissão do certificado de conclusão de obra
  • Aplicação de alíquotas progressivas para o IPTU pelo prazo de 5 anos após a isenção
  • Redução para 2% da alíquota de ISS para os serviços relativos à obra de requalificação
  • Isenção de ITBI aos imóveis objetos de requalificação
  • Isenção de taxas municipais para instalação e funcionamento por 5 anos

Um dos principais obstáculos para a atração de novos moradores ao Centro é a sensação de insegurança provocada pela dispersão da cracolândia e pelos furtos e roubos frequentes de celulares por gangues organizadas.

"É urgente mapear e combater o crime organizado que atua na região. O cara que vem de bike, pega o celular, passa para o morador de rua, que passa para um receptador, que revende o aparelho. É uma rede complexa que precisa ser combatida", diz Marcos Gavião.

O arquiteto chama a atenção para a falta de zeladoria do Centro, cuja degradação foi acentuada durante a pandemia, com lixo acumulado pelas calçadas e abandono de praças e monumentos. Houve um aumento do número de famílias morando em barracas na região e multiplicaram-se as placas de aluga-se com o fechamento de lojas e restaurantes da região.

Especialistas lembram que há décadas se fala em revitalização do Centro, mas pouco se avança nessa direção. "Estamos muito atrasados em termos de recuperação da área central. Esse foi um movimento urbanístico que ocorreu em vários lugares do mundo, inclusive com exemplos próximos, como a revitalização da região de Puerto Madero, em Buenos Aires. Mas, aqui, tudo é mais lento e mais complexo", diz Gavião.

Segundo Blanche, o retrofit de edifícios abandonados é uma ferramenta poderosa de requalificação urbana. "Cada prédio recuperado tem um potencial de efeito multiplicador, trazendo novos moradores e aquecendo o comércio ao redor: o bar vizinho volta a ter movimento, um restaurante abre as portas de olho nessa nova clientela, a casa noturna renova a fachada. Todo o entorno muda", diz o empreendedor.

Gavião lembra que, além de incentivar o investimento privado em empreendimentos para classe média, o poder público precisa investir na construção de habitação para a população de baixa renda, na criação de equipamentos culturais que atraiam públicos de outras regiões, além das ações de policiamento e zeladoria.

Tem que ter todos esses vetores juntos. É a soma desses esforços que vai revitalizar essa região que já foi tão rica no passado e precisa ser recuperada"

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