O pulo da onça

Eleita melhor chef do mundo, Janaína Torres quer tornar a gastronomia brasileira mais conhecida (e acessível)

Rafael Tonon Colunista de Nossa

"Eu fiquei muito embargada, me deu um negócio", diz a chef Janaína Torres sobre sua reação ao saber que foi eleita a Melhor Chef Mulher do Mundo pelo World's 50 Best, aquele que se tornou o mais influente prêmio da gastronomia atual.

No ano anterior, ela já tinha alcançado a mesma distinção pela versão latina da premiação. "Demorou para cair a ficha e entender que era outro", diz Janaína, que agora faz questão de assinar como Torres, seu nome de solteira, depois de ter se divorciado do chef Jefferson Rueda (que segue como seu sócio).

O reconhecimento, ela diz, é resultado de uma vida ligada à comida. "Eu vendi coxinha, lanche natural. Fazia iogurte em casa para ganhar meu dinheiro muito antes de pensar em ter restaurante", relembra.

De representante de marcas de vinho a sócia de um dos mais bem sucedidos grupos gastronómicos do Brasil — que contempla o Bar da Dona Onça e o famoso A Casa do Porco, eleito o 12º melhor restaurante do mundo —, ela agora se prepara para seu projeto mais ambicioso: abrir um restaurante só seu.

Em conversa com Nossa, a chef fala sobre fama e responsabilidade, a valorização da culinária brasileira e como sua separação a ajudou a se reencontrar com a sua vocação na cozinha.

Do iogurte caseiro ao Bar da Dona Onça

Estar na cozinha sempre foi muito natural para a chef nascida em um cortiço no Centro de São Paulo. "Lembro de ficar ao lado da minha avó enquanto ela preparava o almoço ou em cima do banquinho vendo os amigos da minha mãe cozinharem lá em casa", conta.

Era uma época em que cozinheiros não eram celebridades. "O Giancarlo Bolla, que era o mais conhecido, ia lá em casa e preparava pratos que eu achava chiques: risoto de acrafrão, camarão ao Champagne. Eu via aquilo como um espetáculo", relembra.

As primeiras vezes que foi para a cozinha era para preparar coxinhas e lanche natural que vendia pelos prédios do Centro. "Também fazia iogurte natural, que eu amava."

O sonho de ter um restaurante veio com o desejo de fazer comida brasileira cotidiana. "Queria um lugar meu para cozinhar as coisas que sempre amei fazer: rabada, galinhada, couve-flor empanada", diz.

Quando buscava um ponto no Centro — "nunca cogitei abrir em outro lugar", ressalta — viu uma placa em uma das lojas do Copan que parecia ser o lugar perfeito. "Vai ser aqui", pensou.

Coloquei ali todo o meu dinheiro, que na época eram 150 mil reais, e meu sócio entrou com o resto. Em poucos meses, inauguramos o Bar da Dona Onça, ganhamos como a melhor cozinha de bar por 8 anos e hoje, 15 anos depois, segue um sucesso"

Uma questão de técnica

"Minha relação mais duradoura sempre foi com a comida popular afetiva", afirma Janaína Torres. Ela defende a culinária feita pelas mulheres que, como diz, "alimentam o mundo": nas escolas, nos hospitais, nas casas.

"Hoje só se fala que a cozinha tem que ser técnica. E quanta técnica tem em cortar a couve na mão? Em fazer um arroz soltinho? Em saber usar a panela de pressão?", pergunta. "Como se técnica só fosse o que sai da alta gastronomia", indigna-se.

A chef diz que nunca se sentiu tão pronta em uma cozinha como hoje: nos últimos meses, chefiou a cozinha d'A Casa do Porco quando o sócio, Jefferson Rueda, precisou se afastar por um burnout.

Eu sou aquariana, por isso sou meio futurista. Eu amo aprender coisas novas. Tecnicamente, eu me sinto muito mais preparada hoje. Sei usar liofilizadora, desidratadora, sous vide. Mas agora me pergunta o que eu gosto de fazer mesmo? Feijoada! É o abre-alas da cozinha brasileira e onde eu me vejo brilhando, feliz"

Para ela, as pessoas estão carentes de afeto na gastronomia. "Quando cozinho fora [em outros países], termino o jantar e ponho a panela com a mesma comida que servi aos convidados no meio da cozinha para a equipe comer. As pessoas me abraçam e é aí que eu sinto o poder da comida".

A gastronomia popular no Centro

Janaína só deixou o Centro de São Paulo por pouco tempo, quando foi morar com o então marido, Jefferson Rueda, no Itaim Bibi, bairro nobre de São Paulo. "Mas não via a hora de voltar", diz ela, nascida no Bixiga e criada nos arredores.

Foi ali que ela estudou (até deixar a escola ainda adolescente), trabalhou e viveu a vida toda. "Nunca fez sentido pra mim sair daqui", diz. "Escolhi abrir o Bar [da Dona Onça] ali porque achava que menos gente iria, que teria menos pressão", ri.

Depois do Dona Onça, veio A Casa do Porco, o Hot Pork (de cachorro quente), a Sorveteria do Centro, todos a poucos metros um do outro.

Mais recentemente, ela encasquetou de abrir no mesmo quarteirão a Merenda da Cidade: fez do refeitório dos mais de uma centena de funcionários também um restaurante, onde serve pratos do dia a 40 reais.

Eu acredito que a gastronomia precisa ser popular, inclusiva. Eu adoro alta cozinha, comer bons ingredientes. Mas isso não tem valor pra mim se ao mesmo tempo eu não puder servir mais pessoas"

Em 2025 ela prevê abrir — também no Centro, claro — seu mais ambicioso projeto, A Brasileira, um restaurante que vai "pegar o Brasil de cabo a rabo para explicar a nossa cultura culinária", diz. "Precisamos conhecer o Brasil pela mesa."

Com a fama, vem a responsabilidade

Antes mesmo dos 50 Best, Janaína já estava habituada a ser capa de revistas, participar de programas de televisão, estar no palco para dar palestras e receber prêmios. "Eu nunca tive a pretensão de ser chef ou cozinheira famosa", desconversa.

Mas é inegável o protagonismo que conseguiu nos últimos anos na gastronomia brasileira: no ano passado, fez mais de 50 jantares em países como Colômbia, Panamá e Espanha.

Muitos deles, a convite das embaixadas brasileiras, representando a gastronomia nacional. "Faço questão de mostrar nossa cozinha pra todo mundo", diz.

A chef diz que, sempre que fala com jovens cozinheiros, explica que essa ideia midiática da gastronomia é "uma bobagem" e que ser reconhecido pelo trabalho que se faz é muito mais importante do que aparecer.

Mas concorda que alguma fama é boa para que muitos deles vejam que é possível chegar mais longe. "Mas com trabalho, não existem atalhos", ressalta.

Quando lhe perguntam se o prêmio de melhor chef do mundo a fez ser mais reconhecida ou mais famosa, não titubeia.

Mais reconhecida, claro. Famosa eu já era. [diz brincando] Mas, agora, as pessoas prestam mais atenção no que eu digo, o que me exige mais responsabilidade"

O futuro da gastronomia é feminino

O prêmio de Melhor Chef Mulher criado pelos 50 Best em 2017 causou polêmica no meio feminino. Algumas mulheres o criticaram ao dizer que não faz sentido separar uma premiação pelo gênero.

"Eu pensei muito nisso, gosto de ouvir opiniões. Mas acho que ainda faz sentido porque precisamos de representatividade", diz.

Quando ainda era representante de vinhos, Janaína diz que foi a um cliente e viu uma cozinheira muito bonita na capa de uma revista e perguntou quem era. Tratava-se de Helena Rizzo, chef do Maní e hoje no Masterchef.

Aquilo me impactou tanto que eu fui na semana seguinte conhecer o restaurante. Foi a primeira vez que eu comi atum em crosta de gergelim. Eu me encantei e lembro de pensar: 'Incrível, uma mulher!'"

A partir do episódio, Janaína disse que se sentiu ainda mais imbuída de estar na cozinha. "E a nossa gastronomia é muito de mulheres, né? Temos mais representatividade nas cozinhas do que muitos países da Europa", assinala.

Hoje, diz, cercou-se de "meninas muito esforçadas" que a ajudam a levar as casas para frente. "A força feminina é muito marcante na América Latina. Somos o continente que representa a maior joia da gastronomia mundial hoje, e muito disso pelas mulheres incríveis que temos".

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