O REI DOS ATUNS

Como é a pesca do gigante bluefin, o peixe mais caro do mundo

Flávia G. Pinho Colaboração para Nossa

Acha caro pagar mais de R$ 60 por um único sashimi? Pois não falta gente disposta a desembolsar essa quantia por uma fatia de 25 gramas de bluefin — especialmente se for da barriga, o corte que mais concentra gordura e parece derreter na boca.

Considerado o wagyu dos mares, no posto de peixe mais caro do mundo, o atum Thunnus thynnus tornou-se a estrela dos restaurantes japoneses de alto padrão. Trata-se de uma iguaria para se degustar crua, em pequenos bocados, nos balcões mais exclusivos — sashimis e sushis são servidos sozinhos ou, no máximo, em duplas. O preço de um par chega fácil aos três dígitos.

No Japão, onde ainda se pratica a pesca selvagem em alto mar, restaurantes estrelados arrematam peixes imensos em leilões milionários — um exemplar de 278 quilos foi vendido por 3,1 milhões de dólares, em 2019. De tão disputada mundo afora, a espécie quase sumiu do mapa décadas atrás, mas o surgimento de fazendas marinhas, entre os anos 1980 e 1990, a salvou da extinção.

Os bluefins que chegam aos restaurantes brasileiros vêm de uma dessas fazendas — a espanhola Balfegó, instalada no Mar Mediterrâneo, que atua sob vigilância severa da Comissão Internacional para Conservação dos Tunídeos do Atlântico (ICCAT).

A operação, conhecida como pesca de cerco, parece coreografada. Os peixes são abatidos por encomenda e, em apenas três dias, chegam frescos aos aeroportos de São Paulo e Rio de Janeiro. Conheça cada etapa do processo, do mar ao prato.

Gigante com apetite de leão

O Thunnus thynnus do Atlântico, conhecido na Península Ibérica como atum rabilho, é um gigante dos mares — chega a medir 3 metros de comprimento e pesar 600 quilos. Carnívoro, se alimenta de peixes menores e moluscos, tudo em grandes quantidades.

Essa superalimentação garante o alto teor de gordura que os chefs e sushimen amam. Boa parte dela se acumula na barriga, onde a carne, de tão marmorizada, é cor-de-rosa bem claro. No restante do corpo, atinge um vermelho intenso.

O formato de torpedo permite que o bluefin se movimente em alta velocidade. É uma espécie que passa boa parte do ano em águas frias e profundas, mas o comportamento muda na primavera do Hemisfério Norte — entre maio e junho, os animais procuram a temperatura amena do Mar Mediterrâneo para se reproduzir. Nessa curta janela de tempo, acontece a temporada de captura.

Caiu na rede é peixe

Instalada na pequena L'Ametlla de Mar, na Espanha, cidadezinha a 100 quilômetros de Barcelona, a Balfegó é uma empresa familiar, já na quinta geração de pescadores especializados em atuns.

Assim que a temperatura começa a subir e os bluefins aparecem no Mediterrâneo, a empresa põe seus dois navios no mar — o La Frau II e o Tio Gel, embarcações ultratecnológicas capitaneadas pelos próprios donos da empresa, os irmãos Manel e Pere Vicent Balfegó.

Os barcos se aproximam lentamente dos cardumes, mas não com a intenção de pescá-los — o objetivo é somente cercar os peixes com uma grande rede submersa.

Depois que os animais menores são liberados por uma abertura, permanecem somente os maiores, com mais de 30 quilos e, pelo menos, 10 anos de idade — como a espécie atinge a maturidade reprodutiva aos 4 anos, esse cuidado garante que os bluefins viverão livres, e se reproduzindo, por pelo menos seis anos.

A quantidade de peixes que cada empresa pode capturar é definida e fiscalizada de perto pela ICCAT, com base nos estoques disponíveis ano a ano. Na temporada 2024, a Balfegó declarou ter capturado 3 toneladas de bluefins.



Mergulho na piscina

Assim que as redes são fechadas, os bluefins são transferidos para estruturas maiores, as chamadas piscinas de transporte, que serão rebocadas pelos navios — as embarcações se deslocam em baixa velocidade, para que os peixes não se machuquem nem sofram qualquer estresse.

O destino final são as piscinas marinhas fixas, onde os bluefins vão viver nos meses seguintes. Nestes cercados com grande profundidade, localizados a cerca de 4 quilômetros da costa, os atuns têm bastante espaço para nadar e recebem a mesma alimentação a que teriam acesso se estivessem em liberdade.

Enquanto estão na fase de engorda, os bluefins viram até atração turística — desde 2012, a Balfegó promove o Tuna Tour, passeio em catamarã que permite aos visitantes mergulhar nas piscinas com máscara e snorkel.

Diretor de comércio exterior da Frescatto, que importa para o Brasil até cinco bluefins por semana, Rafael Barata teve oportunidade de conhecer as piscinas de atuns por dentro.

Eles ficam lá no fundo, mas sobem à superfície para comer. Até assusta ver aquele monstro aparecendo rápido do seu lado"

Abate sem estresse

Nenhum bluefin morre de véspera. Os abates são feitos individualmente, sob demanda, de acordo com as encomendas de clientes localizados em mais de 30 países.

Na primeira etapa, mergulhadores lançam mão de pistolas que não chegam a machucar, mas deixam os atuns tontos. Os peixes são então levados para o barco, onde se aplica a técnica japonesa ikejime.

Sob a supervisão do mestre japonês Tajiri Nobuyuki, um objeto pontiagudo é inserido na cabeça do peixe, logo acima do olho, provocando a morte instantânea, sem sofrimento. Tal cuidado garante que a carne alcance alto padrão de qualidade, sem alteração de cor, textura e sabor.

Começa, então, uma corrida contra o relógio. Ainda no barco, cada peixe é eviscerado, o que impede que qualquer parasita se transfira para a carne, passa pelas primeiras análises e recebe uma etiqueta plástica.

Preso à cauda, esse código permite a rastreabilidade do mar até a mesa — é possível saber data e local exato da captura, peso e nível de gordura de cada indivíduo.



Portão de embarque

Transferidos rapidamente para a planta industrial da Balfegó, em L'Ametlla de Mar, os bluefins destinados aos países da Comunidade Europeia são porcionados, enquanto os demais são acondicionados inteiros, em enormes caixas de isopor cheias de gelo, e despachados para o aeroporto. A embalagem garante que a temperatura nunca ultrapasse os 4ºC.

Os clientes escolhem o tamanho do peixe e determinam como ele será entregue. Os bluefins importados pelas empresas brasileiras pesam 200 quilos, em média, e quase sempre vêm sem cabeça, o que barateia um pouquinho o transporte. "É um frete muito caro, porque ainda pagamos todo o peso do gelo", explica o diretor da Frescatto.

As exceções são os peixes encomendados para as cerimônias Kaitai, nas quais os sushimen abrem e cortam o peixe diante da clientela — esses vêm com cabeça e tudo.

Em solo brasileiro, os bluefins são porcionados conforme os pedidos dos clientes. A barriga, corte de maior teor de gordura e mais valorizado pelo mercado, é a primeira a se esgotar. Em segundo lugar vem o lombo, retirado das costas do peixe, que atrai pelo vermelho intenso.

Assim que o peixe sai da água, lá na Espanha, descubro que peso ele tem e posso começar a oferecer aos clientes. Quando ele chega à nossa planta, já tenho um mapa de como cortar, que indica qual corte vai para qual restaurante"

O mapa do bluefin

Os consumidores da Europa e da Ásia têm paladar menos restritivo — por lá, o peixe inteirinho recebe destino nobre nas cozinhas. Até dos olhos, pelo alto teor de colágeno e proteína, se aproveitam os tecidos muscular e conjuntivo. Também fazem sucesso, nos restaurantes de alta gastronomia no Japão, o topo da cabeça, chamado de noten, e a bochecha do atum.

Já os brasileiros são menos abertos aos cortes exóticos. Por aqui, a maior procura é pelo otoro (barriga), mais caro de todos e mais disputado pelos restaurantes japoneses, seguido do akami (lombo) e do chutoro (entre a barriga e o lombo), ambos bastante usados nos sushis.

Segundo Rafael Barata, a Frescatto anda empenhada em convencer a clientela a arrematar outros cortes. "Depois que tiramos os lombos, sobra uma carne muito saborosa presa à espinha. Raspamos com uma colher especial e embalamos para mandar aos clientes, que podem fazer tartar ou colocar batidinha, em cima de algum roll", sugere.

Veja de onde sai cada um dos cortes principais:

Para poucos

Nos mais elegantes restaurantes paulistanos de cozinha japonesa, a degustação de bluefin é um verdadeiro ritual. Escolhe-se (e paga-se) pelo corte. No Aima, localizado no térreo do Shopping Iguatemi, uma dupla de sushis de akami (lombo) custa R$ 66, mas a mesma dupla sai por R$ 136 se vier finalizada com finas fatias de otoro (barriga).

Quem vai ao Atsui, no Jardim Paulista, e pede sashimi de otoro recebe uma única fatia de peixe, em destaque no centro do prato. Preço da iguaria: R$ 63.

Aficionados pelo peixe mais caro do mundo não faltam por aqui. O Kitchin, rede com três endereços em São Paulo, já realizou duas cerimônias Kaitai na unidade do Itaim Bibi. A última aconteceu em agosto de 2024. Diante de 61 convidados, que pagaram R$ 590 por cabeça, o sushiman David Fonseca abriu e serviu um bluefin de 160 quilos.

"Ao longo de meia hora, vou apresentando os cortes e explicando as diferenças do teor de gordura, enquanto falo dessa tradição secular da pesca", explica o sushiman, que empunha uma faca Maguro Kiri, desenhada especialmente para cortar atuns com grande precisão.

É um ritual idealizado especialmente que celebrar a imponência do bluefin"

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