Revoluções no prato

Em livro, jornalista investiga as transformações da gastronomia e da alimentação

Rafael Tonon Colaboração para Nossa Getty Images

O que escolhemos colocar no prato tem impactos que vão muito além da nossa própria alimentação. Comer é um ato político com implicações sociais, culturais e morais.

Aquilo que comemos é determinante para criar movimentos, estabelecer hábitos, transformar realidades. Mas também para mudar os rumos da história: pense nas especiarias e as rotas dos descobrimentos, por exemplo.

Se não fosse o desejo (ou a necessidade, vá lá) dos portugueses por buscar temperos e condimentos nas Índias, nós talvez não estivéssemos aqui. Muito da nossa história pode ser contado pelo viés da alimentação.

Porque a comida nos permite uma das perspectivas mais interessantes de entendermos nossa trajetória: de onde viemos, como chegamos até aqui e para onde vamos. Comida é identidade, cultura, ciência, natureza.

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O livro

Nos últimos quatro anos, me debrucei para entender os principais movimentos que influenciaram nossa alimentação nas últimas décadas numa tentativa de enquadrar o novo status no qual vive a gastronomia: passamos a falar mais sobre o que comemos, os programas de culinária ganharam o horário nobre da TV e chefs foram parar nas capas de revista.

Dessa vasta pesquisa, escrevi o livro "As Revoluções da Comida", que acaba de ser publicado pela editora Todavia. Abordo o movimento pelo qual passa a comida na sociedade contemporânea: de reflexão, de transformações, de revoluções.

Sobre elas, selecionei algumas das mais importantes para nos ajudar a entender como nossas escolhas à mesa têm muito mais impacto do que podemos imaginar. Não está convencido? Então arrasta para baixo.

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White Castle, no bairro do Queens, em Nova York (1980)

O nascimento do fast food

Há quem torça o nariz e há quem seja viciado, mas é impossível desprezar o papel que as cadeias de fast food tiveram na nossa sociedade moderna.

A comida feita em padrão quase industrial (com máquinas controlando milimetricamente até a quantidade de molhos adicionados em cada etapa) mudou a maneira de sairmos para comer — gastando pouco e comendo rápido.

Muito antes do surgimento do McDonald's (nos anos 1940), ainda em 1921, dois amigos, um cozinheiro chamado Walter Anderson, e um ex-corretor imobiliário de nome Billy Ingram, abriram uma lanchonete no Kansas (EUA) que se assemelhava a um castelo.

Deram-lhe o nome de White Castle e começaram a produzir o hambúrguer mais barato que podiam (cinco centavos de dólar cada). Para isso, tiveram que criar padrões industriais de produção para otimizar os processos e para gerar mais lucros — o que fez da rede a primeira cadeia de fast food do mundo: em 1930, já tinham 116 restaurantes espalhados pelos Estados Unidos.

O que os sócios fizeram pelo sanduíche mais famoso do mundo foi exatamente transformá-lo em uma receita fácil (poucos ingredientes), altamente replicável e de consumo imediato. Dessa forma, criaram um novo segmento que deu origem a muitas marcas mundiais (do Burger King ao McDonald's) e influenciaram até a forma como pedimos comida em casa, em plena pandemia.

Não é exagero dizer que o que Henry Ford fez para o carro, Ingram e Anderson fizeram para o hambúrguer. A White Castle revolucionou todo o conceito.

David Michaels, autor de "The World is Your Burger" (sem edição no Brasil)

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Comer local

Em oposição ao sentido de globalização que tomou de assalto a alimentação mundial — com ingredientes viajando no bagageiro de enormes jatos transatlânticos —, muita gente começou a questionar se não fazia mais sentido olhar para o alimento que nascia ali, a poucos quilômetros de onde se está.

Em países como a Itália, surgiu o movimento do 0 KM, que queria mostrar que os alimentos que chegavam ao prato de um restaurante ou de uma mercearia tinham vindo mesmo da região, sem que fossem preciso se deslocar do lado oposto do planeta.

Disso, surgiu uma valorização para o que na gastronomia convencionou chamar nos cardápios de "produtores locais", aqueles que estão ali, a uma curta distância.

Ao mesmo tempo, a alta cozinha viu o advento do movimento farm-to-table, em que chefs passaram a investir em parcerias mais diretas com fazendeiros ou garantir seus próprios pedaços de terra para cultivar o máximo que poderiam utilizar em sua cozinha a apenas alguns passos (ou quilômetros).

Um dos precursores, nesse sentido, foi o chef americano Dan Barber, que com seu restaurante, Blue Hill at Stone Barns, liderou um modelo do-campo-à-mesa que ditou uma nova forma de relacionamento direto entre os cozinheiros e os agricultores locais.

Da cozinha dos restaurantes para a dispensa do consumidor, o foco na localidade dos produtos (que em inglês leva o nome de localvore) abriu uma nova perspectiva de olhar para a origem, o que nos leva a ter mais consciência daquilo que come, o que é ótimo.

Nós vamos cada vez mais querer saber de onde vêm as coisas que comemos: a nova geração é muito mais conectada à procedência daquilo que consome, à importância da terra

Dan Barber, dono do restaurante Blue Hill at Stone Barn

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Andoni Aduriz
Prato do do chef Andoni Aduriz, do Mugaritz

Restaurantes como experiência

Nos últimos anos, a sociedade foi acometida pelo foodismo, um comportamento que representa a obsessão que algumas pessoas passaram a ter com a comida e com os restaurantes.

A comida ganhou um status social inédito: está nas letras dos artistas pop, nos filmes de Hollywood, na moda. E, claro, cada vez mais viva nos restaurantes, que deixaram de ser lugares para refeições de confraternização para se tornarem espaços "de experiência".

Como diria o teórico da alimentação Brillat-Savarin, o restaurante se tornou o luxo possível para uma parte das pessoas.

Para atender a esse novo público, os chefs tiveram que investir em criatividade. Muitos restaurantes passaram a ter departamentos de inovação, com cozinheiros dedicados a criar pratos arrojados, transgressores até.

Os pratos precisam causar alguma sensação nos comensais: estranhamento, reflexão, emoção, não importa. É preciso que seja mais do que "só" comer, pagar a conta e ir embora. No novo panteão onde foram inseridos, os restaurantes de alta gastronomia passaram da ideia de "servir" para o objetivo de "impressionar".

No mundo dos foodies (os tais fanáticos por comida), há quem colecione visitas a restaurantes premiados no mundo todo como quem coleciona carros ou joias.

Rafael Tonon, jornalista e autor de "As Revoluções da Comida"

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Juntos, mas separados

A internet e as redes sociais transformaram nossas relações com a comida: não apenas no acesso, mas sobretudo na forma como a compartilhamos. De frente para uma tela, podemos jantar com familiares e amigos que estão até do outro lado do mundo.

A pandemia — ela, de novo! — intensificou a ideia do que o food designer Diego Bolson chama de "solo is the new social" (sozinho é o novo social, em português), ao defender que, com um celular na mão, transformamos momentos de solidão em pura partilha. Especialmente se houver likes envolvidos, é claro,

Prova disso é o advento recente do mukbang, um movimento que se originou na Coreia do Sul há mais de uma década e que consiste em pessoas que têm prazer em ver e ouvir outras comendo na frente da tela.

A tendência une as palavras muk-ja (que significa "vamos comer") e bang-song ("transmitir") e designa a atividade em que criadores de vídeos filmam-se ingerindo grandes quantidades de comida enquanto interagem (de preferência em tempo real) com um público espantosamente numeroso.

Centenas de milhares de pessoas se sintonizam a cada semana para assistir a essas transmissões. Elas alegam que os vídeos de comida provocam verdadeiros "orgasmos" no cérebro (a tal Resposta Sensorial Autônoma do Meridian, ou ASMR, na sigla em inglês).

Fato é que com um dispositivo na mão ninguém fica sozinha nem na hora de comer. Uma curiosidade e tanto em uma sociedade em que cada vez mais pessoas preferem comer (especialmente durante o trabalho) sem companhia. Deve ser para ter mais tempo para ficar no celular, imagino.

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O planeta no prato

Cada vez mais pessoas estão dispostas a abdicar de alguns alimentos em prol de algo maior: no caso dos climatarianos, esse "algo" é a Terra. Eles optaram por adotar uma dieta que reduza os impactos dos recursos naturais do planeta, sobretudo em relação à crise climática.

A dieta climatariana foi citada pela primeira vez em uma reportagem do "The New York Times" em 2015, mas entrou no dicionário de Cambridge no ano seguinte e tem ganhado mais projeção com o número de adeptos a crescer.

Trata-se de uma dieta saudável, mas que seja amiga da natureza principalmente no que envolve reduzir a emissão de carbono dos alimentos. Isso significa priorizar aqueles produzidos a partir de fontes eficientes, diminuir (ou eliminar) o consumo de animais criados em fazendas intensivas e dar preferência aos orgânicos.

De olho no crescimento deste grupo, até mesmo restaurantes e cadeias de casual food, como a americana Chipotle, têm se posicionado como espaços climatarianos, em que os menus seguem preceitos de salvar o planeta — e isso está muito além do uso de embalagens recicláveis.

Muitos focam em receitas quase sempre plant-based (à base de alimentos vegetais integrais) — já que a pecuária usa mais de dois terços do solo agricultável do mundo e é a maior fonte de poluição da água, de acordo com dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) — e calculam a pegada de carbono que cada alimento emite.

Ao colocarem o meio ambiente em primeiro lugar, preferem deixar de comer coisas que gostam para garantirem um planeta mais habitável para as próximas gerações. Aquela história que dissemos lá no início de que comer é um ato político, lembra?

O futuro da comida

Leo Martins/Folhapress

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