Salve simpatia

Com sorriso aberto e drinques elegantes, sem firulas, Laércio Zulu é o rockstar na coquetelaria nacional

Sérgio Crusco Colaboração para Nossa Fernando Moraes

Parece um rockstar. Laércio Zulu não consegue dar dois passos na muvuca do Bar Convent São Paulo, feira anual de coquetelaria e do mercado de bebidas. A cada minuto, um clique. Garotos que chegaram há pouco ao mundo do bar querem selfies com seu ídolo, dois dedos de prosa, um abraço, conselhos.

Vencedor de concursos de coquetelaria, referência de estilo (no bar e no look), homem viajado, exemplo de sucesso. Porte elegante, o sorrisão de sempre, Zulu atende com simpatia a todos os meninos e meninas que querem seu brilho emprestado na foto.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

'Só vim aqui servir o Campari'

Flashback para 2008. Naquela noite Zulu não quis ir para a balada. Recolheu-se cedo na pousada em que trabalhava, em Taipu de Fora, litoral da Bahia. Pelas tantas da madrugada, a dona do hotel bateu à sua porta, ele fingiu continuar dormindo, mas não houve jeito. Um cliente importante exigia um trago tardio.

"Era um sujeito rico, todos os anos comemorava seu aniversário na pousada, os amigos chegavam de helicóptero, ele oferecia cerca de R$ 3 mil de gorjeta por dia aos funcionários. Devia ser político", presumia Zulu, cuja função de ajudante geral o mantinha distante do bar da pousada.

"Naquela noite ele chegou loucão de uma rave, vermelhão de sol e com aquele cheiro de protetor solar que se sentia a 20 metros. Sobrou pra mim: lá estava ele no balcão, querendo Campari. Perguntou onde eu havia estudado e respondi: no Colégio Modelo."

O cliente o olhou de cima a baixo, bebeu um gole do bitter rubro, estalou os lábios e desfez o mal entendido: "Quero saber onde você estudou coquetelaria. Tem pinta de bartender, ganharia uma boa grana nos bares de São Paulo".

"Não sou bartender, não. Só vim aqui servir o Campari pro senhor", respondeu Zulu. Mal voltou a pegar no sono, imaginando o quanto de verdade poderia haver na profecia do hóspede rico e vermelhão. Poucos dias depois, arrumou o que tinha e mudou-se para a capital paulista.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Bingo clandestino

Aos 21 anos, Laércio Silva, nascido em Tapirama, interior da Bahia, já amargava alguns sonhos frustrados, como o de ingressar na faculdade de Biologia. Ir para o litoral e fazer algum trabalho esporádico no verão era o destino de muitos jovens de sua região. Zulu renegou-o por algum tempo, até bater na pousada onde seu irmão mais velho, Lindomar, já havia trabalhado.

Mudar-se para São Paulo, outra rota comum, estava fora de questão, até que o momento profético do "rico do Campari" lhe sacudiu a cama.

Ao chegar na capital, arranjou morada no bairro de Piraporinha, Diadema, e fez seu primeiro curso de bartender, com duração de quatro dias. "Eu ainda não tinha noção de qual era a formação de bartender, mas sabia que um curso de quatro dias não me faria um profissional", conta Zulu, que se inscrevia em todas as grades que encontrava.

Trabalhou como segurança ("porque todo mundo acha que negão alto tem de ser segurança") até encontrar colocação no primeiro bar, num bingo clandestino da Vila Leopoldina. "Eles pagavam direitinho, com a gorjeta em dia. Eu quase não fazia nada, porque as pessoas iam lá jogar, não beber. O bar era de fachada. Mas cheguei a preparar uns Old Fashioneds e uns Mojitos."

Na roça, o cara que vem pra São Paulo tem aquele status. Está ferrado, mas manda tênis pra família, pra dizer que está numa boa. Eu era do contra: não queria nada disso pra mim. Preferia viver bem na roça do que pagar aquele pau.

Laércio Zulu

Fernando Moraes/UOL

Régua e compasso

A amizade com o bartender Rodolfo Bob, então mestre na escola O Bar Virtual, e o emprego no primeiro bar de verdade — o Madeleine, na Vila Madalena — mudaram o rumo de sua carreira.

Minha principal formação com ele foi mais na base de abrir uma garrafa de rum, acender um charuto e ele vomitar informação sobre bebida. Eu precisava absorver todo aquele conteúdo."

Foi quando Zulu cismou de criar seus próprios bitters, gotinhas mágicas que temperam coquetéis. Apaixonado pelos aromas e sabores da Angostura, único produto da categoria então disponível no Brasil, entrou na internet, pesquisou receitas e passou a reproduzi-las o mais fielmente que conseguia.

Bob deu-lhe um tranco, régua e compasso. "Mano, para com esse negócio de ficar repetindo receita de gringo. Faz o teu e não abre muito essa história. Espera ficar bom pra mostrar", disse o professor.

Zulu encontrou seu norte na pesquisa de ingredientes brasileiros. Jurubeba, paratudo, amburana, castanha-do-pará, barbatimão, guaraná, casca de cajueiro, cacau — muitos dos botânicos que conhecia da infância na roça - foram parar em seus pequenos frascos.

Além de lançar sua marca, a Zulu Bitters, foi natural que ele levasse esse conhecimento aos coquetéis, criando um estilo que o distinguiu da tendência de simplesmente copiar o que a coquetelaria do Hemisfério Norte apresentava.

No início, eu colocava o bitter num conta-gotas e levava pros eventos da indústria de bebidas, pro pessoal provar. Numa dessas, um maluco subiu na cadeira do restaurante e falou alto pra todo mundo: 'Olha o rinosoro que o cara prepara e diz que é bitter!' Eu quis sumir, mas teve uma galera que me apoiou.

Laércio Zulu

Fernando Moraes/UOL

Pavão emocionado

"Como diz uma velha expressão baiana, eu parecia cachorro de fateiro", ri Zulu, ao lembrar de sua ânsia por reconhecimento nas rodas profissionais nos primeiros tempos paulistanos. Como um cão que espera ver sobrar um naco do fato (as vísceras) do boi, estava atento a todas as oportunidades de aprender e de inscrever-se em competições.

Naqueles idos, grandes marcas já começavam a incluir o Brasil no circuito de grandes concursos globais. Zulu participou de vários, até concentrar-se na batalha que considerava mais importante: o World Class, promovida pela gigante do setor de bebidas Diageo.

Não teve sorte na edição de 2013, ficou em sexto lugar na final, mas trabalhou com afinco para o World Class do ano seguinte, em que saiu campeão brasileiro, para nos representar em Londres. Antes da final, participou de um intensivão promovido pela marca no Panamá, para os bartenders da América Latina.

O treinamento foi tão insano que nem vi o mar. Eu era bastante competitivo e emocionado na época, coloquei todas as forças naquilo, foquei totalmente no concurso."

Voltou de Londres sem o troféu de campeão mundial, mas choveram oportunidades de trabalho como consultor de bares e novos convites de viagens. Além da Inglaterra, rodou Escócia, Estados Unidos, Irlanda e outras paragens.

Eu era muito jovem, tinha 26 pra 27 anos, me sentia o centro do universo. Hoje vejo as coisas de forma mais leve, dei uma acalmada nesse pavãozão aqui.

Laércio Zulu

Elvis Fernandes

Drinque-assinatura

O Banzeiro, mistura de cachaça com limão e açúcar, float de vinho tinto com espuma de gengibre no topo, é uma das criações que mais representa Zulu. Está em todas as cartas que assina e já perdeu a conta dos bares que reproduzem a receita. Veja como fazer:

Ingredientes

  • 50 ml de cachaça envelhecida em amburana
  • 20 ml de suco de limão
  • 10 ml de xarope de açúcar
  • 20 ml de vinho tinto seco
  • 50 ml de espuma de gengibre
  • Quanto baste de gelo

Modo de preparo

  • Encha um copo médio com gelo e reserve
  • Em uma coqueteleira com gelo, bata a cachaça com limão e açúcar.
  • Coe no copo médio com gelo e acrescente o vinho lentamente, sem deixar misturar.
  • Finalize com a espuma de gengibre
Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Pé no chão

Ver as coisas de forma mais leve, ele acredita, significa enxergar a coquetelaria de maneira minimalista e elegante, sem tantas firulas. Zulu acredita que simplicidade e técnica bem empregadas são capazes de superar a pirotecnia dos coquetéis extravagantes.

Já vi coquetel que você precisava perguntar por onde beber, de tão complicada que era a apresentação. Outro era um minialambique que chegava à mesa. No final das contas, o que o cliente quer é uma Margarita, um Old Fashioned ou uma Caipirinha bem feitos."

"Somos mais pé no chão, não temos uma coisa tão esquizofrênica por aqui", diz Zulu em relação ao estilo brasileiro de fazer coquetéis, que identifica em bares paulistanos com esteio na coquetelaria clássica: Boca de Ouro, Regô, Picco, Koya88 e o novo Cascasse Il Mondo.

Um mundo mais leve, para Zulu, também quer dizer não estar na barra até cinco da manhã, sem que isso resulte em uma rotina pouco frenética. Como consultor do Grupo Saints, ele cuida da operação de bar de dez estabelecimentos, que incluem os botecos São Bento e São Conrado, o espanhol Tuy Cocina, o italiano San Paolo Tartuferia e o japonês Yu.

Aqui em São Paulo, os bares Tan Tan e SubAstor têm coquetéis com maior apelo visual, porém bem estruturados, sem querer reinventar a roda. Todos têm uma base sólida de mistura.

Laércio Zulu

Fernando Moraes/UOL

Pulo do gato

Seu dia a dia inclui criar coquetéis para todas as casas, rodar todos os endereços, cuidar do estoque, otimizar recursos, treinar funcionários e inspecionar a execução das tarefas, entre outros afazeres. O pulo do gato, diz, está em dominar os percalços dos bastidores.

Se você sai da bitola e começa a entender de administração de bares e restaurantes, o empresário saca que você não é só um fazedor de coquetéis. É preciso organizar o estoque, reduzir custos. O mercado cobra isso cada vez mais do profissional de bar."

Generoso, Zulu entrega o ouro e a sabedoria para a nova geração de bartenders. Criou, no Grupo Saints, um curso de formação profissional para os funcionários, em que convida outros mestres da coquetelaria e do mercado de bebidas para ministrar aulas e workshops, do fazer o drinque à gestão de bar.

No mais, consegue um tempo para visitar a terra natal, curtir o filho, treinar capoeira, viajar. "Quero poder ir à Bahia de três em três meses, viver bem, comer bem. Já passei da fase da egotrip."

Deixar as vaidades de lado não impede que Zulu abra mais uma vez o sorriso e os braços para os garotos que o procuram, pedindo selfies e um pouco de papo. O rockstar do bar contemporiza seu estrelato:

Não consigo me ver como ídolo, acho que rola uma troca muito massa com a garotada. Eles olham pra mim e veem um figura com uma certa semelhança, um cara muito mais próximo. Não só pela questão da cor, mas de ver ali um profissional bem sucedido, longe do cara louro, de olho azul e de smoking, o que era de se esperar de um bartender famoso.

Laércio Zulu

Mais histórias de bar

Fernando Moraes/UOL

Ao mestre com carinho

Os 50 anos de balcão do veterano Derivan de Souza

Ler mais
Divulgação

Vai ter boldo no drinque

Néli Pereira desvenda coquetelaria do Brasil

Ler mais
Fernando Moraes/UOL

Mago do Moscow Mule

Marcelo Serrano criou a espuminha do drinque da moda

Ler mais
Topo