Quilombo em alto-mar

Uma das ilhas mais povoadas do mundo, Santa Cruz del Islote, no Caribe colombiano, vive com sede

Munah Valek Colaboração para o UOL

R$ 3 o litro da água

A água que se bebe em uma das ilha mais densamente povoadas do mundo é vendida por R$ 3 o litro, em média. Chega por barco de Cartagena das Índias ou Tolú.

Cerca de 800 pessoas vivem em Santa Cruz del Islote, em 197 casas distribuídas numa área de 1 hectare (10 mil m²), um pouco menor que um campo de futebol padrão FIFA. A ilha faz parte do arquipélago de San Bernardo, que reúne nove outras ilhotas, entre elas Múcura, Maravilla, Ceycén e Boquerón.

Ao contrário das vizinhas, ela é artificial, foi construída em cima de um recife de corais — e os habitantes seguem ocupando cada vez mais pedaços do mar. O ditado local diz que, "se você quer terra, construa você mesmo".

Quase toda a população é negra e bem jovem. Não há fome, tampouco violência. Pesca e turismo são as principais atividades econômicas — pisar lá, aliás, custa R$ 13.

Segundo os locais, visitantes estrangeiros circulam pelos becos e vielas durante o ano todo. Por ali passam cerca de 300 turistas por dia; feriados e férias atraem o triplo de gente.

Ao que parece, a fama de "ilha mais povoada do mundo", a possibilidade de nadar com tubarões e tartarugas em um dos dois aquários e o estonteante mar azul têm feito bem a Islote.

Mito fundador

São várias as lendas sobre a fundação da comunidade, mas Guillermo Cardales, "El Mono", 52, autointitulado "historiador da ilha", assegura que os primeiros habitantes foram os indígenas zenú e só depois, no século 18, chegaram os negros, provenientes de Cartagena, fugindo dos espanhóis.

Gabino Júlio e Pedro Cortês teriam sido os primeiros a chegar. Outros vieram em canoa como escravizados fugitivos liderados por Domingo Benkos Biohó, herói reconhecido como fundador de Palenque de San Basílio, primeiro território livre das Américas.

Para o antropólogo Stanlei Heckadon-Moreno, que em 1969 passou meses em Santa Cruz del Islote para estudar a comunidade pesqueira, "a ilha ficou desabitada por anos", ainda nos anos 1500, mas, por estar em plena rota marítima dos navios colonizadores "servia de abrigo para enfrentar tempestades e ventos", como completa o pesquisador.

Boa parte dos nativos possui laços consanguíneos e teceu redes de solidariedade e ajuda mútua. Não há quem não conheça ou não saiba de cabeça os nomes, sobrenomes, endereços e histórias de seus vizinhos e vizinhas. A história de um é a história de todos.

Ilha das crianças

Em Santa Cruz del Islote a população mais jovem supera a de adultos: mais da metade de seus habitantes tem menos de 18 anos. A média é de quatro filhos por casal. Mães jovens desfilam com bebês nos braços e mulheres de pouco mais de 40 anos já são bisavós.

É segunda-feira de manhã e a única escola aberta é a do mar, onde crianças brincam de mergulho, pescam e competem na natação. As aulas só começam na terça-feira, mas vão até o sábado. Há 224 estudantes matriculados na única escola do arquipélago inteiro.

Faz pouco mais de um ano que eles conseguiram o direito de se formar no ensino médio, sem que para isso tenham de se deslocar para Tolú ou Cartagena. Agora, as crianças que frequentam a escola podem pensar em trilhar caminhos diferentes.

"Não queria sair da ilha, mas também queria um bom trabalho, então tive de ir para Cartagena fazer licenciatura. Quando saiu a convocatória, me inscrevi na lista de professores e me chamaram. A única questão que me entristece é que aqui não temos água como na cidade", afirma Susana Berrick, 27, mãe de uma menina de 5 anos e única professora nativa da ilha, entre os 12 docentes.

Jogos de azar

É impossível os viajantes que chegam à ilha estenderem o sono para além das 5h da manhã — os 300 galos não deixam. A atividade paralela mais forte e rentável é a briga de galos, todos os sábados.

Embora bastante controversa, a briga de galos, que é legalizada na Colômbia, segue parte da tradição de diversas regiões do país, com destaque para os treinadores de galo do Caribe.

"Durante uma briga em dias normais é possível ganhar entre R$ 300 e R$ 500 em apostas, mas em festividades e feiras, as apostas chegam a R$ 2.000", informa Guillermo Berrick, 65, pai de Susan, criador e treinador de galos desde a infância.

A economia paralela da ilha, de fato, é o jogo. Durante todo dia, em quase todas as partes é possível ver mulheres e homens jogando dominó ou cartas na base das apostas.

"Vivemos felizes. Os conflitos que temos é porque adoramos rinha de galo e porque fazemos muitos jogos de azar, então ninguém quer perder, mas temos que resolver logo porque somos uma família", afirma Guillermo.

Quem tem terra é rei

Além de criar galos há mais de meio século, Guillermo Berrick é dono de boa parte dos terrenos da ilha e também de um dos aquários, de um albergue, da mais movimentada das lojas e tem negócios nas ilhas vizinhas, além de seis apartamentos em Cartagena.

Em um espaço como Santa Cruz, quem tem terra é rei. Guillermo Berrick é um deles. São dele o terreno onde estão a escola, o hospital, os painéis solares que abastecem de luz a ilha, a única igreja local, uma congregação evangélica e o tanque de armazenamento de água.

Invisto e construo coisas na ilha há mais de 40 anos. Ainda não terminei o trabalho. Fiz tudo juntando pedras, conchas, lixo e areia"

São 22h e as ruas estão cheias de gente. O clima noturno de Santa Cruz del Islote é sempre de festa. Uns assistem à televisão dentro ou fora de casa.

As crianças arrastam os dedos nas telas dos celulares ou brincam de polícia e ladrão. Bebês pulam de colo em colo, o bar está cheio de homens, de rum e de cerveja.

Até 10 anos atrás, a ilha vivia com apenas 4 a 5 horas diárias de energia elétrica. A instalação dos painéis solares garante o abastecimento de energia entre as 11h e as 17h, quando é feito um pequeno recesso. Depois, o motor a diesel trabalha das 18h às 6h.

Uma senhora se aproxima da praça central levando um cartaz nas mãos e o cola no muro da escola. Uma multidão se forma em torno do papel e a praça começa a vibrar. Ali estão os nomes dos devedores da conta de luz do mês. O aviso diz que a luz será cortada no dia seguinte, caso não haja pagamento.

Uma pequena procissão alcança a entrada da ilha, residência e escritório de Rocío de Hoyos, líder comunitária e responsável pelo controle das contas de luz.

"Faz mais de quinze anos que administro a luz da ilha, nunca recebi pelo serviço. Quando voltei de Cartagena e me dei conta do tanto de gente que estava sem luz, me reuni com a comunidade e comecei a organizar a questão. Comprei os filtros, o óleo."

Os painéis solares mudaram tudo. Atualmente Islote tem 20h de luz todos os dias. "As pessoas se alimentam melhor porque têm geladeira, aumentam o conhecimento de mundo pela televisão, pelo celular, computador. Tudo mudou para melhor."

A conta mensal gira em torno de R$ 50.

Sem uma gota

"O Islote é o centro do oceano, mas nós somos o oceano." A frase de autoria de um dos jovens líderes ambientais, Adrian Caraballo de Hoyos, 25, enfeita uma das paredes de um beco. Se é verdade que o sustento da ilha vem da beleza e riqueza do mar, o mesmo não se pode dizer do bem mais precioso do lugar: água potável.

Na ilha não há nenhuma fonte de água doce, canos ou sistema de abastecimento. Seus habitantes vivem longos períodos de escassez. O tanque de 310 toneladas de água vai sendo dividido pelas famílias.

Supostamente a prefeitura de Cartagena deveria nos abastecer cada vez que entramos em seca e pedimos socorro, mas infelizmente não somos atendidos. Também temos um sistema de coleta de água de chuva, mas aqui chove muito pouco" Rocío de Royos

Há galões de água por todos os lados. É comum ver pessoas com pequenas sacolas tomando água sempre em pequenos goles. Um galão de água custa em média R$ 5 e dura cerca de 4 dias para uma família de 6 pessoas. Já uma bolsa com 15 sacolinhas de gelo chega a custar 40 reais.

"O que a gente faz é pular no mar para se lavar e depois só retirar a água salgada do corpo, para economizar água", afirma Guillermo, "El Mono" e, por isso, nos finais de tarde o mar está cheio de gente.

Enquanto der

A questão da água parece estar longe de ser resolvida. No albergue mais caro da região, a estadia dá direito a uma única ducha ao dia — as outras custam R$ 15.

"Uma fundação canadense chamada Cavalinhos do Mar nos doou uma planta dessalinizadora de água que está em Bogotá estragando porque o Parque Nacional, órgão federal que administra os ecossistemas colombianos, não deixa instalar. Segundo eles, iria danificar os corais do Parque", alerta Guillermo.

Apesar da questão da água, turistas e habitantes sabem que experimentam dias num paraíso — pelo menos, enquanto é possível aproveitá-lo.

Impactos da crise climática já são sentidos. Em 2023, segundo Susana, pesquisadores analisaram o solo das ilhas do arquipélago e atestaram que, caso o nível da água continue subindo, a ilha deixará de existir em 30 anos.

Apesar dos alertas, a verticalização e a expansão dos terrenos da ilha seguem a todo vapor.

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