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Recuperação do Parque Nacional de Garajonay, nas Ilhas Canárias, inspira passeio

Elizabeth Zach

New York Times Syndicate

02/11/2013 08h00

O Parque Nacional de Garajonay, em La Gomera, nas Ilhas Canárias, oferece dezenas de trilhas de vários graus de dificuldade, além de vistas maravilhosas dos cânions, das plantações de banana e das matas cobertas pela névoa.

Só que eu estava à procura de outra coisa. Tinha lido e visto fotos das florestas queimadas no ano passado. Os incêndios criminosos aconteceram em várias partes da ilha, destruindo quase vinte por cento da área do parque e causando um prejuízo de quase US$90 milhões ao local, considerado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. No Centro de Visitantes, perguntei a uma das guias se havia uma trilha que me levasse até lá.

"Ninguém morreu nos incêndios, o que é um verdadeiro milagre", começou ela. "É muito triste, mas já tem muita coisa crescendo. Só que demora". E, com isso, me mostrou a direção a tomar.

Não lhe disse por que queria ver as encostas enegrecidas e as árvores descarnadas. Na verdade, cheguei ao centro meio sem querer, seguindo uma rota semelhante àquela que percorri depois, em meio a hectares e mais hectares de destruição. Apesar do caos, vi ali uma beleza única, pequenas manchas verdes que eram o anúncio inegável - e encorajador - de que a renovação e a recuperação eram possíveis.

Dois meses antes, estava sentada com meu médico, que descrevia as setes semanas de tratamento que eu teria que fazer para o câncer de mama, em estágio inicial. Ele me avisou dos possíveis efeitos colaterais e perguntou se eu não queria que escrevesse uma carta para a sociedade de pesquisa médica onde trabalhava para conseguir uma licença.

Como norte-americana que vive e trabalha na Alemanha desde 2000, conheço os amplos benefícios de que a saúde pública do país dispõe, mas a oferta de passar sete semanas sem trabalhar - em cima das seis que me foram oferecidas depois da lumpectomia para retirada do tumor - me pareceu generosa demais. Não aceitei. Já tinha me recuperado com rapidez da cirurgia, voltado ao trabalho logo em seguida e embora sofresse com um pouco de inchaço e vermelhidão da radiação, não enfrentei a fatiga horrorosa da qual os médicos me haviam me avisado.

Depois da terapia, porém, meu radiologista sugeriu um afastamento mais longo para ajudar na recuperação, que poderia ser de até um mês e meio: o Kur, como os alemães o chamam. Traduzido como "cura" ou "tratamento", esse período pode ser passado nos Alpes ou no Mar Báltico, pago tanto pela saúde pública como pelos planos de saúde. Tradição alemã, o Kur vem da época de Otto von Bismark, que o estabeleceu como parte das amplas reformas de bem-estar social promovidas nos idos de 1880. Empregados e empregadores têm orgulho dele, reconhecendo-o como essencial para a recuperação da pessoa que sofre de doença grave.

A única referência que eu tinha do Kur era a que aparecia em "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, livro que descreve os personagens isolados em um sanatório suíço reclamando o tempo todo da doença, da morte e de sua (falta de) sorte enquanto se recuperam da tuberculose. Nada disso me atraía, mas o meu tratamento estava no fim, era inverno - o mais sombrio na Alemanha desde 1951 - e a meteorologia tinha anunciado que tínhamos tido apenas seis minutos de sol no mês inteiro. Consegui evitar o Kur, mas ainda assim precisava me afastar, passar um tempo em um lugar que tivesse sol, longe do gelo, da neve e de toda aquela conversa deprimente sobre destino.

Eu queria férias. Uma amiga agente de viagem sugeriu La Gomera, que parecia satisfazer a minha necessidade de sossego e calor. Comecei a pesquisar mais na internet e foi aí que me deparei com a história dos incêndios e as fotos terríveis da destruição nas ravinas.

Segundo o que li, La Gomera não é a atração mais popular do arquipélago das Canárias que, no inverno, atrai hordas de europeus em busca do sol. Ali, as ondas são fortes demais e as praias, rochosas, mas o lugar é ideal para quem gosta de caminhadas. Os incêndios sobre os quais tinha lido não foram os primeiros; aliás, a ilha tem um poder quase místico de renovação e recuperação, levantando-se das cinzas com regularidade, desafiando as chamas sem se deixar abalar pela adversidade. A forma como aquele fogo se espalhou, porém, foi meio que um mistério, já que praticamente todo o parque nacional é constituído de mata fechada e muita folhagem - e, ainda assim, tinha acontecido, mas ou menos como a minha doença, já que eu não tinha nenhum fator de risco que a justificasse.

Aos poucos o destino foi tomando forma na minha cabeça e a viagem começou a ganhar importância conforme lia mais e mais sobre a ilhota que foi o último trecho do Velho Mundo que Cristóvão Colombo viu antes de sair navegando para descobrir o Novo. No dia que comprei as passagens vi, sem querer, um mapa topográfico de La Gomera e percebi que estava olhando para um vulcão. Thomas Mann teve sua montanha mágica, eu pensei, e agora eu torcia para ter uma também.

  • James Rajotte/The New York Times

    Fachadas da área portuária de San Sebastián, em La Gomera, nas Ilhas Canárias

Depois de chegarmos a Tenerife, Thomas e eu pegamos um ônibus para Los Cristanos, onde tomamos uma balsa para San Sebastián, em La Gomera. O percurso leva 45 minutos e ao chegarmos ao porto já era quase noite, mas ainda podíamos divisar os penhascos e montanhas. San Sebastián se espalha entre vários deles e, enquanto o táxi nos levava das docas para o hotel, tivemos uma bela visão do mar e das praias de areia escura em forma de meia-lua. Vimos também um caleidoscópio de pequenas casinhas e buganvílias cobrindo o penhasco onde o nosso hotel, o Parador de La Gomera, estava situado.

Passando a recepção, havia um pátio coberto de árvores-da-borracha e samambaias com um chafariz no meio, muito tranquilo. Já o quarto não era tão impressionante; era meio escuro, talvez por causa da mobília pesada de madeira (demos risada ao ver as duas camas de solteiro - lembrete de que, de fato, estávamos na Espanha católica).

Apesar disso, quando saímos para a sacada, na manhã seguinte, fomos brindados com a visão do sol brilhando sobre o mar. Lá embaixo, o jardim coberto de todos os tipos de cactos e suculentas estava totalmente deserto. Não duvidaria se me dissessem que estávamos no Jardim do Éden.

No primeiro dia fomos para o norte de carro, passando pelas belas cidadezinhas de Hermigua e Agulo, parando em vários "miradores", ou mirantes, com vista para o mar. Nosso destino era a Playa de la Caleta, aninhada entre os despenhadeiros, a qual só se podia chegar através de uma estradinha sinuosa que mal tinha espaço para um carro, mas, como logo descobrimos, era de duas mãos. Com Thomas fazendo as curvas com imenso cuidado e eu me segurando o tempo todo, acabamos chegando ao topo. Ao começar a descer do outro lado da montanha, vimos uma faixa isolada de areia escura, o mar azul turquesa, palmeiras e cactos.

A água estava gelada, mas nem ligamos. Brincamos e boiamos nas marolas. Eu, que tinha ficado várias semanas sem nadar durante a radioterapia, nem acreditava que estava no mar de novo. O primeiro mergulho foi simplesmente sublime. Em seguida, nós nos deitamos ao sol, lemos e tiramos um cochilo, para só depois irmos ao quiosque no fim da praia para devorar uma porção de peixe frito com molho de pimenta e batata frita.

No dia seguinte, em San Sebastián, caminhamos ao longo do calçadão na praia, a Calle Real. Nossa primeira parada foi na Casa de la Aguada, um pequeno museu que marca a estadia de Colombo na ilha antes de sair em expedição. Interessante que os ilhéus, que passaram séculos se defendendo de corsários holandeses, franceses e ingleses (incluindo Sir Francis Drake), receberam o filho favorito da Espanha de braços abertos. No pátio, uma placa próxima a um poço ensina que o explorador levou a água dali para abençoar as terras que por ventura descobrisse. Um pouco para cima, visitamos a Iglesia de la Virgen de la Asunción, onde Colombo e sua tripulação participaram de uma missa antes de seguirem para o oeste, em 1492.

Ainda na Calle Real, paramos no Restaurante Breñusca, uma casa colorida que acabou se tornando o nosso refúgio noturno diário graças ao peixe sempre fresco e o garbanzo delicioso - melhor que isso só sentando em uma das mesas na calçada para observar as idas e vindas dos moradores, de seus filhos, cachorros, bebês, idosos bom de prosa e adolescentes bagunceiros, em uma cena charmosa e envolvente, muito mais comovente que o meu trabalho, única distração que tive durante o diagnóstico e tratamento da minha doença.

Nossa primeira caminhada foi no Parque Nacional de Garajonay, que se estende sobre a área superior do vulcão da ilha, e se resumiu a duas horas de exploração do extremo sul. Deixamos o carro em Pajarito e seguimos pela trilha chamada Ajugal, úmida e coberta pelos galhos dos mognos e ramos de murta. Logo depois chegamos a uma clareira, de onde vi os troncos escuros se estendendo pelas colinas em direção ao mar.

A mulher do centro de turismo não tinha recomendado esse percurso; na verdade, nos outros que sugeriu vimos o verde voltando à paisagem. O contraste entre o brilho dos ramos das samambaias e o verde do musgo, lado a lado com as encostas enegrecidas, era gritante.

 

  • James Rajotte/The New York Times

    Vista da ilha de Tenerife a partir de área atingida pelo fogo no Parque Nacional de Garajonay, nas Ilhas Canárias

Nesse caminho, porém, a extensão da destruição nos fez parar. Eu não conseguia aceitar os incêndios. Ali, no topo da ilha, os ventos úmidos do Atlântico se misturam à brisa quente, resultando em uma névoa que nutre as florestas. As árvores absorvem essa umidade, que acaba encharcando o solo e alimentando os brotos que se espalham pela ilha. Conforme prosseguimos, eu me virei para admirar novamente a cena - e percebi que os meus pensamentos de "Isso não podia ter acontecido" se aplicava não só à tragédia natural, como também ao que senti ao ouvir o diagnóstico e ter que enfrentar a incerteza e a fragilidade da vida.

Mais ou menos no meio do caminho, já estávamos novamente cercados de beleza em abundância: pinheiros da Califórnia cercados por grama, dentes-de-leão, abacateiros, urze e pau-mulato, além da visão espetacular de Los Roques, uma série de pilares de rocha que parecem saltar da terra, além do Monte Teide, em Tenerife. Quando voltamos ao estacionamento, percebemos que estávamos bem perto do pico do Alto de Garajonay, e resolvemos esticar até lá. Dali, a vista era ainda mais impressionante - e alcançava até a ilha de La Palma e os vales, ravinas e reservatórios do Valle Gran Rey e a cidade de Vallehermoso.

Na véspera de nossa partida, Thomas queria descansar, mas eu preferi voltar ao parque. Na trilha de Montaña Quemada, um caminho de pedra me levou a um mundo subterrâneo de vinhas e musgo. Percorri quase toda a trilha sozinha, e podia ouvir os pássaros brincando e se agitando nas árvores. Ali tudo era escuro e úmido, mas, a certa altura, pude ver um pedaço do céu azul e fiquei surpresa ao ver como as nuvens estavam próximas - tão perto que quase podia tocá-las.

E foi aí que me perdi. Refiz o caminho duas vezes. Estudei o mapa de novo, frustrada, e continuei andando, devagar, até chegar a uma trilha vicinal que parecia me levar até a principal. Antes disso, porém, ela descia até uma área mais fechada da mata, mais escura e mais úmida, até que, de repente, vi uma capela em uma clareira, iluminada por um raio de sol: era a Ermita de Nuestra Señora de Lourdes, um dos vários templos espalhados pelo parque. Meu coração ficou mais leve ao descobrir aquele local simples no meio da escuridão, assim, por acaso, e a ele me dirigi. Sentei-me nos degraus, com o sol no rosto, feliz por ter encontrado um refúgio no topo dessa montanha mágica que descobri sozinha.