Fez, no Marrocos, joga turista no meio de caos, barulho e diversão
O sexagenário Umar Ahmed não pensa duas vezes ao ver um grupo de turistas invadir sua apertada viela na cidade de Fez, no Marrocos. Levanta-se de seu banquinho e, de braços abertos, começa a cantar, em hebraico, a antiga música judaica “Ivdu et Hashem B'Simcha” (Sirva Deus com Alegria) para dar as boas-vindas aos visitantes.
Ahmed é árabe e, desde a adolescência, trabalha como porteiro do cemitério judeu de Fez, que abriga túmulos com mais de 400 anos de história. “Muitos turistas chegam aqui certos de que vão encontrar um ambiente de ódio entre árabes e israelenses. Mas somos uma nação tolerante, que recebe todos de maneira amigável”.
O bairro judaico costuma ser um dos primeiros passeios que o forasteiro realiza em Fez, uma cidade que, nos últimos 12 séculos, tem sido um frenético ponto de convergência para civilizações do mundo inteiro. Conhecido com “Mellah” (do árabe “melh”, ou sal, produto que os judeus comercializavam), o local é uma introdução perfeita para o caos fascinante que irá envolver os turistas em suas andanças pelas “medinas” (centros históricos) do Marrocos.
Localização de Fez e Marrakech no Marrocos
O “Mellah” de Fez serviu de refúgio para milhares de judeus sefarditas que, no final do século 15, foram expulsos da Península Ibérica pelo casal real católico Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela. Tal comunidade (que abandonou o Marrocos após a criação de Israel em 1948) deixou na área enormes contribuições artísticas.
Após passar pelo cemitério judaico, que abriga o túmulo do venerado rabino Vidal Hasserfati, morto em 1600, chega-se à frente do Palácio Dar el-Makhzen, ainda usado pela família real marroquina e cuja fachada é decorada por coloridos mosaicos “zellij” (uma das mais belas expressões artísticas do Marrocos) e por portas de metal trabalhadas por artesãos judeus.
A Place des Alaouites, que cerca o palácio, é ampla e pontuada por imponentes tamareiras, e nela começam vielas que entram fundo na “Mellah” de Fez. As casas nessa área são tipicamente hebraicas, com sacadas viradas para a rua (as casas árabes são geralmente mais ensimesmadas, com suas sacadas e janelas viradas para um pátio interno), e, no local, o comércio começa a ficar mais barulhento: homens conduzem carroças carregadas de romãs e do fruto do cacto comestível conhecido como “bouzabol”, enquanto crianças oferecem doces árabes para os transeuntes. Motos passam com o motor roncando entre as pessoas.
Boa parte das construções da “Mellah” está abandonada (calcula-se que apenas 200 judeus vivam hoje em Fez) e, na rua, o que mais se vê são muçulmanos. Assim como acontece com o cemitério judaico, é um marroquino quem cuida da principal sinagoga da área, a Ibn Danan, aberta a visitas turísticas. “Esse local foi construído no século 17. Hoje é administrado por um comitê judeu-marroquino e é um belo espaço religioso para ser admirado”, diz Abdullah Hassine.
O terraço da sinagoga também é aberto a forasteiros e oferece visão para a mais caótica e divertida atração de Fez: a “medina”.
Medina
Após atravessar parte da história judaica na “Mellah”, chega-se ao imponente "Baab Boud Jeloud", um dos seis portões que dão acesso à “medina” (o centro murado) de Fez. Espalhada por uma área de 350 hectares, a "medina" abriga nada menos que 170 mil habitantes, 25 mil casas, 250 mesquitas e milhares de estabelecimentos comerciais, tudo amontoado em quase 10 mil apertadas vielas. É o centro nervoso de uma das principais cidades do Marrocos que ainda preserva suas características, adquiridas há mais de mil anos, de polo comercial, religioso e artístico do norte da África.
Viajante visita o interior de uma das escolas islâmicas de Fez. Com 1.200 anos de história, cidade ainda é considerada a capital artística, religiosa e intelectual da nação marroquina
“Fez é a capital espiritual do reino do Marrocos”, afirma Allal Amraoui, o principal mandatário político da cidade, apontado para o cargo diretamente pelo rei Mohammed 6º. “São 1.200 anos de história que deram origem a um centro de artes, do saber e da religião sem igual em nosso país. E tudo está muito preservado para o turista ver”.
De fato, ao dar o primeiro passo para dentro da “medina”, o visitante se sente transportado para o final do século 8 d.C., quando Idris 1º, fundador da primeira dinastia imperial do Marrocos, resolveu construir a cidade: nas apertadas vielas locais, milhares de homens barbudos, mulheres de véu, crianças hiperativas e burros carregados com especiarias circulam entre tendas que comercializam o supra-sumo da produção oriental.
Sobrevivendo em um "souk"
No mundo árabe, "souks" são os mercados de rua nos quais o pedestre pode encontrar de tudo: de especiarias a caríssimas roupas. Para fazer compras nos "souks" de Fez, o turista deve barganhar. Tente reduzir em pelo menos 30% o preço oferecido pelo vendedor (que provavelmente falará inglês, francês ou espanhol), e entre na loja com o dinheiro contado no bolso, para mostrar ao negociante que sua verba é limitada. Se a barganha não der certo, é uma boa ideia sair andando da loja: é comum que o vendedor saia correndo atrás do turista dizendo que aceita vender o produto por um preço mais baixo.
Sob um incessante burburinho de negociações em darija (o dialeto árabe falado no Marrocos) e francês, lojas vendem tapetes que se colocam entre os mais finos do mundo. Decorados com formas delicadas, eles chegam a ter 500 mil nós por metro quadrado. “Quanto mais nós, mais qualidade”, diz Chakib Bennani, diretor da Palais Quaraouiyine, que vende tapetes em um palácio do século 14 na “medina” de Fez. “São obras de arte únicas: é apenas uma pessoa que faz cada tapete e uma peça nunca fica igual à outra. Cada metro quadrado demora cerca de 50 dias para ser montado”.
Os preços para tanta exclusividade são salgados: na média, o metro quadrado custa 4.000 dirhams (cerca de R$ 1.100), mas, dependendo da sua qualidade, há tapetes que chegam a custar 6.000 dólares.
A boa notícia é que a maioria das lojas manda o produto diretamente para a casa do cliente, em seu país de origem: o envio para o Brasil dura em média quatro dias.
Na "medina", o turista também encontra belíssimos artesanatos feitos com madeira de cedro (cujo aroma é descrito pelos marroquinos como o “perfume da felicidade”), roupas árabes e até baldaquins usados para carregar as noivas nos casamentos marroquinos (alguns chegam a custar 100 mil dirhams, ou quase R$ 28 mil).
Em sua história, Fez prosperou como entreposto caravaneiro sob as diversas dinastias que governaram o Marrocos (como os Almorávides e os Almôades), e se tornou um dos principais centros intelectuais do norte da África. Os marroquinos afirmam que na cidade está a mais antiga universidade do mundo (a Al-Kairawiin), fundada em 859 d.C., além de diversos centros de estudos islâmicos. Entre elas, merece destaque a Madrassa Bou Inania, escola islâmica aberta a visitas situada em um impressionante edifício do século 14 cuja estrutura é feita com mosaicos e cedro talhado.
Dromedário e curtume
A “medina” de Fez também tem um concorrido setor gastronômico: em suas tendas são vendidos galinhas e galos vivos, caramujos (usados na culinária local) e especiarias das mais diversas colorações. É nessa área em que o turista pode encontrar o famoso óleo de argan, produto muito usado em tratamentos de beleza do cabelo, e carne de dromedário, cujo quilo custa apenas 35 dirhams (cerca de R$ 10).
Camelídeos, aliás, são a base de sustentação de uma das mais famosas atrações de Fez: o curtume de Shwara (alguém lembra da Jade?). Para ver o processamento do couro local, o turista deve subir no balcão de alguma das lojas que ficam ao redor do curtume e, de preferência, tapar o nariz: o cheiro que emana das dezenas de tanques lá embaixo é cadavérico e pode enjoar pessoas com estômagos mais sensíveis.
As cidades de Fez e Marrakech possuem as "medinas" mais tradicionais do Marrocos
O gerente de uma das lojas de produtos de couro que oferecem vista para o curtume é didático na hora de explicar o processo produtivo: “os trabalhadores usam peles de dromedário e vaca. Primeiro eles colocam as peles em uma solução líquida de cal por cinco dias. Com os pelos eliminados, a pele é coberta com fezes de pombo, cujo amoníaco ajuda a suavizar o material. O couro é então tingido, durante 20 dias, com tintas vegetais, como hena. Depois, o couro é vendido como sapatos, bolsas e outros produtos nos ‘souks’ (mercados) de Fez”.
LUXO EM FEZ
Há restaurantes e hotéis luxuosos no centro histórico de Fez. Caso você possa gastar alguns dirhams a mais, não deixe de jantar no "Palais Mnebhi", que ocupa o palácio onde, em 1912, foi assinado o acordo que fez do Marrocos um protetorado da França. No cardápio, versões deliciosas do cuscuz e do tagine de frango, saboreados ao som de música marroquina ao vivo e espetáculos de dança do ventre. Se quiser dormir como um rei, fique no hotel "Riad Fes", que tem quartos luxuosos a partir de 138 euros.
Os turistas saem do curtume com folhas de menta nas mãos, cujo aroma lhes ajuda a esquecer o cheiro pestilento do local. A paisagem, por sua vez, mais uma vez ganha novas características: nas vielas começam a aparecer peregrinos da África Subsaariana, que vêm até Fez para visitar o túmulo de Sidi Ahmed Tijani, homem venerado por seguidores de um ramo do islamismo conhecido como "Tijaniyah", extremamente popular em países como Senegal e Gâmbia.
A procissão dos fiéis em direção à mesquita que abriga o corpo de Tijani é embalada indiretamente por dançarinos da gnaoua, a música trazida para o Marrocos do oeste africano que coloca seus praticantes em estado de transe.
O cenário é absolutamente confuso para o turista, mas tem a virtude de colocá-lo cara a cara com uma Babel que permanece intocada.
Marrakech
O Marrocos é visitado por cerca de cinco milhões de turistas estrangeiros anualmente, dos quais três milhões acabam passando por Marrakech, o destino mais famoso do país. E a cidade faz uma dobradinha perfeita com Fez: ambos os locais (que ficam a 380 km de distância um do outro) possuem os centros históricos (e os "souks") mais fascinantes do Marrocos. Marrakech foi fundada em 1062 d.C. pela dinastia dos Almorávides (que reinou do noroeste da África à Península Ibérica entre os séculos 11 e 12 d.C.) e se tornou um dos principais entrepostos caravaneiros do mundo conhecido.
Ainda hoje, Marrakech preserva sua característica de centro comercial agitado: seu principal "souk" abriga mais de 30 mil lojas, que vendem tapetes finos (alguns por 4.500 dirhams, ou R$ 1.200), bolsas de couro (220 dirhams, ou R$ 60), lindas caixas de cedro (150 dirhams, cerca de R$ 50) e óleo de argan (500 dirhams o litro, aproximadamente R$ 140).
É também comum ver homens negociando animais vivos em plena rua (um galo custa cerca de 150 dirhams, ou R$ 50) e serpentes sendo "encantadas" por músicos na praça Djama el-Fna, o centro nervoso de Marrakech (para tirar fotos, o turista precisa dar gorjeta).
A Djama el-Fna, em Marrakech, se ilumina à noite com música e tendas de comida
Em 2011, uma bomba explodiu em um dos restaurantes que cercam a Djama el-Fna, matando 17 pessoas. O ataque, porém, atribuído à Al Qaeda, não acabou com a vitalidade da praça. Quase todas as noites, o local abriga uma movimentada e fumacenta feira de comidas, onde são servidas deliciosas receitas de cordeiro e ao lado da qual marroquinos fazem shows de música berbere.
Marrakech também está recheada de monumentos históricos que exigem uma visita: entre eles, destaque para a mesquita Koutobia (finalizada no século 12 e com um minarete com mais de 70 metros de altura), o Mausoléu dos Saaditas (construção opulenta que abriga os corpos de 60 membros da dinastia que controlou o Marrocos entre os séculos 16 e 17) e o Palácio Bahia. A palavra "Bahia", aqui, significa belo, o que define bem o lugar: construído no século 19 pelos melhores artesãos do Marrocos, o palácio foi erguido como residência dos vizires Si Moussa e Abu Ahmed. Hoje atração turística, exibe lindos jardins e pátios decorados com os fascinantes mosaicos "zellij".
E para uma experiência literalmente cinematográfica, não deixe de almoçar ou jantar no restaurante Dar Es-Salaam, onde Alfred Hitchcock gravou cenas do filme "O Homem que Sabia Demais".
COMO CHEGAR
A partir do dia 9 de dezembro, a companhia aérea Royal Air Maroc começa a operar três voos semanais entre São Paulo e a cidade de Casablanca, no Marrocos. Com duração de quase nove horas, a rota será a maneira mais simples para o viajante chegar ao território marroquino (outra opção é tomar um voo com escala na Europa). Casablanca está a 248 km de Fez e a 220 km de Marrakech. Ambas as cidades são facilmente acessíveis de ônibus. Caso queira sair do Brasil com a viagem fechada, a operadora Schultz tem se especializado em montar pacotes para o Marrocos. Mais informações: www.royalairmaroc.com e www.schultz.com.br
*O repórter Marcel Vincenti viajou ao Marrocos a convite da Royal Air Maroc.
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