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Em Austin, opções gastronômicas vão além do peito bovino e do burrito

Robert Draper

New York Times Syndicate

06/03/2014 19h27

Quem diz que Austin não se parece em nada com o resto do Texas devia pensar melhor. A capital do estado pode até mascarar a bravata típica com uma ironia mais refinada, trocar o cabelão pela boa forma de quem pratica ciclismo e expressar seu individualismo rústico com a guitarra em vez de um revólver... mas, cá entre nós, estamos falando da mesma psicodinâmica orgulhosa, faladora e estranhamente contagiante. Nem para aqueles que odeiam o governador Rick Perry de morte abandonar o estado é opção: afinal, todos adoram ser texanos e gostam do fato de que a denominação os diferencia do resto do país.

Eu vivi em Austin a maior parte da minha vida adulta e, se um dia voltar para lá, não vai ser pela comida mexicana nem pelo churrasco. Não que eu não sofra, vivendo em Washington, nem sonhe de vez em quando com os molhos do Polvos ou as bistecas do La Barbecue; é que Austin hoje oferece uma nova experiência gastronômica, do tipo que você pode sair cinco ou seis dias, direto, sem ter que se limitar a pedir tacos ou peito bovino.

A compulsão natural da cidade de se reinventar finalmente chegou ao cenário culinário. Seus jovens chefs não se sentem mais na obrigação de seguir o exemplo do Sudoeste como seus músicos não se sentem na obrigação de copiar o riff de Stevie Ray Vaughn. Não é à toa que a turma que quer manter a fama de esquisita da cidade teme que essa nova paixão pela cozinha sofisticada seja apenas mais uma "modinha odiosa". Um amigo meu lamenta: "Austin anda tão cheia de si que está perdendo sua essência. A diversão está sendo corrompida pelo dinheiro e isso é muito triste."

Muito justo, mas que tal discutirmos isso sobre um prato de enguias?

Qui
Sabendo de antemão das longas esperas e (na época) da irritante política de não fazer reservas na nova casa de Paul Qui, vencedor do prêmio James Beard e do reality show "Top Chef", cheguei para jantar em uma quarta faltando dez minutos para as seis da tarde e fui informado de que teria 45 minutos para fazer hora. O restaurante, no melhor estilo "casa de fazenda japonesa", discreto e elegante, fica na região leste (e exclusiva) de Austin. Sua presença ali - ao lado do Contigo, Salty Sow e outros estabelecimentos atraentes para os hipsters endinheirados - é outro lembrete do crescimento turbulento da cidade. Preferi esperar ao lado do bar, pequeno e lotado, embora outros famintos tenham optado por sentar com seus drinques no pátio. Um amigo meu apareceu depois de uns vinte minutos, depois que o próprio Paul Qui graciosamente nos guiou até a nossa mesa.

Qui tem 31 anos e nasceu em Manila, mas aperfeiçoou sua técnica no primeiro grande restaurante não texano de Austin, o Uchi. Sua presença calma e atenta na cozinha e no salão resulta em um serviço excelente. De sua carta de vinhos excêntrica, escolhi um rioja espanhol de 2001, mas só depois de o sommelier garantir que ele não tinha "um gosto de coco muito acentuado". Começamos com um "presente da cozinha": bolachinhas caseiras com um tostão de queijo cheddar de Vermont por cima. Elas se esfarelaram na minha mão, mas o sabor compensou. Minutos depois, outro garçom nos trouxe o mesmo "presente". Reclamar de quê?

De vez em quando um prato anuncia seu brilhantismo ao primeiro contato - e no instante em que o gazpacho de amêndoa marcona do meu amigo tocou minha língua, soube que era um campeão. A sopa fria devia sua riqueza impossível ao foie gras, às trufas negras e ao favo de mel e foi com pesar que não pedi o resto da tigela. Resolvi pedir a bisteca de porco à Slayer (homenagem à banda favorita do chef), que veio guarnecida com um molho de pêssego e framboesa que era um sonho -, mas não chegou aos pés da codorna do meu amigo, servida com berinjela tailandesa e purê de batata doce japonesa. Ao final da refeição, perguntei ao chef como ele conseguia deixar a codorna tão suculenta.
Modesto, Qui foi sucinto: "Só dou uma sapecada nela na chapa bem quente." Detalhe: no Texas, todo mundo grelha a codorna. Talvez fosse bom mudar de ideia.

Serviço: Qui, 1600 East Sixth Street; quiaustin.com

Barley Swine
Esse restaurante pequeno na região sul de Austin abriu em dezembro de 2010 e desde então vinha evitando conhecê-lo, apesar de toda a sua boa fama. Por quê? Simplesmente porque: (a) o Barley Swine não aceita reservas depois das 18h30; (b) oferece apenas mesas comunais. Dessa vez, porém, resolvi mudar de ideia e peguei uma mesa para mim e um amigo. Olhamos o cardápio e percebemos que no rodapé estava escrito: "Feito por Bryce, Carlos, Sam, Kyle, Jon, Kevin, Mark, Bradley, Parker, Charles". Uma observação discreta à cultura da celebridade só para reforçar a esquisitice de Austin.

O mesmo vale para a sua localização, em um shopping center decrépito na parte mais decadente do centro. Com seu visual capenga, os garçons tatuados, o rock indie da trilha sonora e a lista de bebidas com ênfase nas cervejas e não nos vinhos, eu já previa que o jantar seria tudo, menos esnobe. Ao mesmo tempo, o fato de o cardápio degustação de US$60/pessoa ser compulsório me colocava na mãos dos chefs.

Como o nome sugere, o Barley Swine celebra a união da ale com o porco; assim, começamos o nosso pedido com algumas IPAs, que enxugamos com o mousse de bacon com pimenta verde. O que me impressionou não só nesse prato, mas em vários outros, foram os sabores distintos, mas não agressivos, um verdadeiro canto gregoriano, nunca uma disputa entre divas. A presença de sabores secundários, mais fortes, se mostrou mais criativa do que obrigatória dentro do repertório tradicional das raízes sulistas. Só achei meio forçado os nachos de coelho, coloridos e defumados, combinados com chorizo, como se ele não tivesse a capacidade de ser gostoso sozinho e precisasse de reforço.

Durante toda a nossa refeição comunal, meu amigo e eu falamos de nossa vida pessoal, despreocupados com a presença do casal ao nosso lado. Só quando a sobremesa chegou - queijo blue e rolinhos de figo - é que eles também pararam de falar e olharam para nós. "Ei, peçam a de vocês!", eu disse. Eles riram e aceitaram a sugestão.

Serviço: Barley Swine, 2024 South Lamar Boulevard; barleyswine.com

Uchi
Você sabe que está em Austin quando para perto dos manobristas do restaurante para deixar o carro e o funcionário diz: "Cara, tem uma vaga grátis bem ali na frente!" Foi assim que começou a minha noite de sábado na famosa casa especializada em sushi da cidade, o Uchi.

Foi exatamente há uma década que Tyson Cole virou a audácia texana de cabeça para baixo ao abrir a primeira casa dedicada ao peixe cru em um chalezinho despojado na região sul. Às sete, o Uchi já estava lotado de gente da região bebericando saquê. A dependência de ingredientes requintados é regra (23 tipos de peixe quando lá estive) e o serviço é atencioso sem ser exibido. Estive duas vezes no seu irmão caçula, o Uchiko, mas a experiência de ter sete ou oito garçons explicando, apresentando e retirando os pratos me fez sentir um pouco como se estivesse de pé no meio do palco de um balé. Outro sinal de maturidade: o Uchi aceita reservas a qualquer hora porque sabe que só um idiota não apareceria na hora marcada para pegar uma de suas mesas tão disputadas.

Cole deve ter concluído no início que, se ia se anunciar como um mestre do sushi no centro do Texas, deveria continuar se arriscando permanentemente - só assim para explicar a heresia mágica do sashimi de maguro e queijo de cabra com óleo de semente de abóbora e maçã Fuji ou o sorlha (peixe) defumado com chips de iúca. A minha acompanhante era uma jornalista política que não tem medo nenhum de criticar os legisladores, mas a coisa muda de figura quando teve que experimentar as pernas de rã com tomatillo e pepino. Por sorte ou coincidência, ela foi esperta ao se recusar, pois foi a única exceção sem graça entre os onze pratos excepcionais que provamos.

Não guardamos espaço para a sobremesa, o que não nos impediu de prová-las.  A escolha do semifreddo de pasta de amendoim foi automática. Por insistência do pessoal da casa, decidimos provar também o pudim de leite com sorbet de manteiga escura e gengibre -, mas até agora não sei dizer se foi o saquê que o fez ferver na língua; só sei que acordei na manhã seguinte lamentando o fato de não ter reservado outro jantar no Uchi.

Serviço: Uchi, 801 South Lamar Boulevard; uchiaustin.com

Arro
Não parecia muito animador: um restaurante novo e badalado que (na época) só permitia reservas para grupos de cinco a oito pessoas. Apesar disso, eu queria ir ao Arro, não só porque era uma das últimas (boas) novidades do cenário gastronômico de Austin, mas também porque era francês e ficava entre o centro e o oeste e não no leste, a região mais "mauricinha". Assim, consegui reunir um grupo de amigos ali em um domingo, pontualmente à hora de abertura, cinco da tarde, e ficamos felizes de ver que a casa arejada e ampla estava quase vazia.

O Arro tem um clima retrô agradável onde (ao contrário do Qui, Barley Swine e Uchi) a cozinha fica fora do campo de visão e as mesas, bem longe uma das outras. Para melhorar a acústica, sacos usados pelos correios para separar a correspondência (de verdade) foram pregados no teto. Algumas banquetas são feitas de tubos de bicicleta, um detalhe que pode - ou não - emplacar em outros lugares. Apesar disso tudo, foi um prazer poder comer em um restaurante em que é possível se espreguiçar e ouvir o som de meus próprios pensamentos.

Começamos com uma simples tábua de frios com rillette de pato, queijo chabrin, linguiça de pato e o pão feito na padaria da esquina. Percebi que havia rã no cardápio e relembrando a decepção que o prato representou no Uchi, resolvi arriscar de novo. Dessa vez, servido com alho, tomate cereja, ervas e beldroega dourada, parecia uma bomba de sabores. O estilo do chef e dono Andrew Curren é impecável e suas receitas, advindas da cozinha do interior francês, combinam perfeitamente com uma carta pequena, mas sensata de vinhos. O prato mais exótico que provamos foi a carne de antílope grelhada com groselha, vinagre balsâmico, cerejas, faro e pistache - que, mesmo assim, dava dicas de sua origem, que certamente não era o sudoeste dos EUA.

Ao fim da refeição, Curren veio à nossa mesa. Quando disse que estávamos aliviados de ver mesas vagas, ele deu um sorriso amarelo e confessou que andava pensando em mudar a (falta de) política de reservas. "Acho que vamos mudar isso aí, ou pelo menos oferecer algumas para quem quiser reservar."

E foi exatamente o que o Arro fez há pouco tempo, assim como o Qui. Eu vejo isso como um bom sinal de que Austin está aprendendo a se comportar como uma cidade desenvolvida. Mesmo assim, ainda há várias casas que, muito elogiadas e sempre lotadas, não aceitam reservas de jeito nenhum. Para elas eu tenho um recado, como diria um bom texano amigo meu: "Qual é pessoal? Serviço é técnica, mas hospitalidade é tradição. Não se esqueçam de quem lhes encheu a bola."

Serviço: Arro, 601 West Sixth Street.