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Na Sicília, turistas desafiam o vulcão mais ativo da Europa

Marcel Vincenti

Do UOL, em Catânia (Itália)

16/07/2014 12h26

"Mas por que você quer conhecer a África?", me pergunta, entre incrédulo e sarcástico, um garçom de Milão quando lhe conto que, dali a algumas horas, eu iria subir em um avião rumo à cidade de Catânia, na Sicília. "Lá é sujo e barulhento, e sua carteira estará sempre em perigo!"

A abordagem não surpreende. Para muitos habitantes do país da bota, principalmente do extremo norte, a ilha de don Corleone está mais para o coração das trevas do Congo conflagrado do que para as luzes do Renascimento. Desta avaliação, o único aspecto correto é o geográfico: a Sicília fica, de fato, mais perto da Tunísia do que de Roma, mas é só. A ilha, assim como seus habitantes, é uma paisagem única de ser observada e, se nada tem a ver com a África, também pouco se identifica com a própria Itália.

O cartão de visitas já aparece no avião, pouco antes do pouso em Catânia. Do alto, a visão começa nas ondas do mar Mediterrâneo, atravessa os edifícios baixos e cinzentos do centro urbano e termina no topo do Etna, o vulcão mais ativo da Europa, que, com seus 3.340 metros de altura, cospe fumaça como uma chaminé industrial. É final de tarde e, no céu, explode uma orquestra infinita de fogos de artíficio.

"A cidade vai estar um caos, mas você deu sorte", me avisa, ao me identificar como turista na saída ao aeroporto, a italiana Barbara dell´Orfano, estudante, habitante local e que esperava uma amiga que também chegava de Milão. "Hoje é dia de celebrar Santa Águeda, a padroeira de Catânia. As pessoas estão festejando que nem loucas por aí".

Protegida por um castelo medieval, praia de Aci Castello é feita de lava petrificada - Marcel Vincenti/UOL - Marcel Vincenti/UOL
Protegida por um castelo medieval, praia de Aci Castello é feita de lava petrificada
Imagem: Marcel Vincenti/UOL

Descubro mais tarde que Santa Águeda foi uma mulher siciliana do século 3 d.C. que, por causa de sua fé cristã, teve seus seios arrancados pelos romanos. A devoção e a festa dedicadas a ela são insanas: na praça principal da cidade, que, mochilão nas costas, preciso cruzar para chegar ao meu hotel, milhares de pessoas se reúnem para realizar procissões, beijar as paredes da catedral, gritar em dialeto siciliano (o italiano é raramente utilizado entre os nativos) e, lógico, enviar aos céus seus coloridos fogos de artifício.

As explosões iluminam todo o centro histórico, que reúne, em um espaço diminuto, edificações de diversas épocas e estilos: estão ali as ruínas de um anfiteatro romano, o prédio art nouveau do Teatro Massimo Bellini (ótimo para óperas e balé) e a catedral de Santa Águeda, feita com mármore e que abriga o que seriam os restos da mártir. A serenidade das estátuas sacras que adornam cada fachada local contrasta com a catarse coletiva que toma conta das ruas. 

Rumo ao vulcão

No meio da praça principal também se destaca uma fonte de mármore que sustenta um pequeno elefante feito com lava. O animal, reza a lenda, pertenceu, no século 8 d.C., a um bruxo chamado Eliodorus, e teria poderes para proteger Catânia das erupções do Etna, que chegam às dezenas todos os anos.

E motivos para traumas não faltam: em 1669, uma erupção do vulcão que durou 122 dias atingiu a cidade e matou cerca de 20 mil pessoas na região. O histórico assusta, mas não afasta os turistas. O Etna possui uma ampla infraestrutura para receber visitantes e milhares de forasteiros andam sobre ele todos os anos.

Imagem da Nasa mostra a fumaça do Etna saindo da Sicília durante uma erupção em 2001. Vulcão é atração turística na ilha  - AP/NASA - AP/NASA
Imagem da Nasa de 2001 mostra a fumaça do Etna saindo da Sicília e atravessando o mar Mediterrâneo. Turistas podem andar sobre o vulcão na ilha italiana
Imagem: AP/NASA

Talvez com medo de que eu me perdesse na multidão, Barbara e sua amiga recém-chegada, Ambra Montano, me guiam através da praça tomada pelos fiéis. Comento que quero subir o Etna, e as duas amigas mostram a grande hospitalidade siciliana que iria me acompanhar durante toda a viagem.

Na manhã seguinte, elas alugam um carro, me pegam no hotel e dirigimos até a cidade de Nicolosi, a 30 km de Catânia e situada aos pés do vulcão. 

Apesar das erupções constantes, o Etna pode ser desbravado com relativa segurança por qualquer turista com nível razoável de condicionameno físico. A primeira metade do trajeto é feita com um bondinho parecido com o do Pão de Açúcar, que leva os turistas até um centro de visitantes a 2.500 metros de altura.

IGUARIAS DE CATÂNIA

Arancini: Bolas fritas de arroz com recheio de queijo, carne e tomate. Saborosas e valem uma refeição.
Carne de cavalo: Servida em diversos restaurantes, na forma de pequenos hambúrgueres. Sabor forte, mas bom.
Granita: O equivalente à nossa raspadinha, deliciosa no sabor limão. Perfeita para o calor siciliano.
Pistache: A Sicília é a terra do pistache. Empanturre-se comendo-o salgado e na saborosa versão "gelato" (sorvete).
Vinho Tenute delle Terre Nere: Produzido com uvas cultivadas nas margens do vulcão Etna. Qualidade garantida.

No segundo trecho, é necessário caminhar por pelo menos quatro horas, em uma sinuosa trilha de magma petrificado, para chegar às crateras mais altas do vulcão, a cerca de 3 mil metros de altitude. À medida que se sobe, o solo fica mais quente e o ar, mais rarefeito. O forte vento ganha aroma de enxofre, placas de "área de risco de erupção vulcânica" começam a aparecer no caminho e Catânia, lá embaixo, mesmo com seu elefante da sorte, parece mais frágil do que nunca.

Ao chegarmos na cratera mais alta aberta ao público, vemos apenas uma fraca fumacinha saindo do solo. Contrariando qualquer instinto de sobrevivência, sinto-me frustrado. Inconscientemente, acho que eu desejava presenciar uma erupção de proporções dantescas durante o passeio.

Mas o sentimento dura pouco: o dia voou, já é outro final de tarde, e uma outra emanação de luz e calor surge atrás de nós, descendo entre as nuvens e se pondo sobre o mar Mediterrâneo.

"Dolce far niente"

"Os habitantes de Catânia se preocupam com o Etna, mas, no seu dia a dia, eles são as pessoas mais tranquilas do mundo", me conta Barbara, quando lhe indago sobre a sensação de viver praticamente embaixo do feroz vulcão. "Poucas coisas nos abalam nessa vida".

A avaliação se comprova em um passeio diurno por Catânia e arredores. Na praia de Aci Castello -- banhada por um mar verde-esmeralda, protegida por um castelo medieval e feita de lava petrificada -- famílias se reúnem no meio da semana para uma verdadeira sessão de "dolce far niente" (ou "doce fazer nada"), o estado de ócio feliz e despreocupado tão prezado pelos sicilianos.

Do alto do Etna, é possível ver a cidade de Catânia e as águas do mar Mediterrâneo - Marcel Vincenti/UOL - Marcel Vincenti/UOL
Do alto do Etna, é possível ver a cidade de Catânia e as águas do mar Mediterrâneo
Imagem: Marcel Vincenti/UOL

No centro histórico, o mercado de rua "La Pescheria" reúne, entre igrejas e prédios com centenas de anos, barracas que vendem frutas, carne de peixe espada, azeitonas, queijos e tomates, muitos tomates -- e tudo perscrutado com calma por falantes vovós italianas.  

No meio do passeio, um vendedor baixinho puxa meu braço e me leva para dentro de sua loja. Com o sotaque siciliano arrastado que Marlon Brando reproduziu tão bem em "O Poderoso Chefão" (a cidade de Corleone fica a apenas 240 km de distância), o homem tenta vender seu produto: "este é o pistache de Bronte. É um ouro verde, o melhor do mundo. É cultivado na Sicília, perto do Etna. Compre! Compre!".

Meio contrariado, provo o pistache e, em menos de cinco segundos, estou pedindo meio quilo -- os 30 euros mais bem gastos da minha vida. "Vocês têm uma linda cidade, lindas praias e um vulcão que, além de proporcionar grandes passeios, gera um solo perfeito para os ingredientes mais deliciosos do mundo. E ainda tem gente em Milão que desaconselha turistas a visitar Catânia", digo a Barbara.

"Pois é. Vou te contar uma coisa: eu nasci em Milão, mas não troco Catânia por lá por nada neste mundo".