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Famílias conservadoras e público gay se misturam em parque country dos EUA

Kim Severson

New York Times Syndicate

12/09/2014 07h00

No Dollywood, parque temático da cantora country Dolly Parton, aquela área do diagrama de Venn que reúne tudo o que é gay e country, os pãezinhos de canela certamente são o grande fator equalizador.

Na verdade, ele está mais para pãozão. E é encontrado no Grist Mill, réplica dos antigos moinhos de água do interior do país dentro do parque superpopular. Os funcionários fazem talhos fundos nos pequenos pacotinhos de massa, que são jogados em uma mistura de açúcar e canela e depois assados -- e o resultado é uma casquinha crocante que dá espaço para sulcos macios e docinhos.

No sábado em que lá estive, não faz muito tempo, as mulheres atrás do balcão venderam cerca de 1.200 unidades -- incluindo a minha -- a US$5,99 cada. O copinho plástico com cobertura extra sai por um dólar, que paguei com prazer.

Os pães quentinhos do pecado não são para os que optaram por tirar o glúten da dieta, nem para aqueles que escolhem o que comem baseados na origem do alimento, mas a verdade é que não parecia haver muitos desses adeptos circulando por um dos restaurantes mais movimentados do parque.

Havia, entretanto, grupos enormes de evangélicos que, com camisetas iguais, proclamavam sua ligação com a Igreja Batista; havia famílias da Carolina do Norte, exaustas, tentando tirar a vovó do calor abrasador; havia universitários barulhentos de Ohio aproveitando o verão na estrada; havia uma mãe solteira da Geórgia preocupada em entreter o filho pequeno.

E também havia nós, um casal de lésbicas de meia-idade de sapatos caros, mas práticos, que saiu de Atlanta para ver se conseguia encontrar a corrente gay e espalhafatosa oculta de Dollywood, indiscutivelmente o parque de diversões mais conservador em termos culturais do país (difícil imaginar a Disney, por exemplo, vendendo uma bolsa com abertura secreta para esconder uma arma ou capas de couro para a Bíblia).

Sob vários aspectos, éramos exatamente como os quase três milhões de pessoas que, todos os anos, seguem para o sopé das Montanhas Smoky, a 48 km de Knoxville, no Tennessee -- afinal, queríamos cair de boca, sem remorso, no pão de milho, nas montanhas-russas e na celebridade que é a fantasia apalachiana mais lucrativa de Dolly Parton.

O Gem Tones é um grupo que canta à capela no Jukebox Junction, perto da Red's Drive-In, lanchonete com cara dos anos 50 do parque Dollywood - William Widmer/The New York Times - William Widmer/The New York Times
O Gem Tones é um grupo que canta à capela no parque Dollywood
Imagem: William Widmer/The New York Times

É difícil não gostar da loira que nasceu em uma família de doze filhos, a poucos quilômetros daqui, em condições tão miseráveis que seu pai pagou por seu parto com uma saca de grãos. Ela se mandou para Nashville um dia depois de ter se formado no ensino médio e, em 2014, comemora 50 anos de carreira. É uma mulher de negócios esperta e dedicada a ajudar a região pobre onde nasceu. Abrir o Dollywood foi só parte dessa missão, mas hoje ele já é o maior empregador do Condado de Sevier.

Ícone gay

O fato de que Dolly Parton, de 68 anos, também seja um ícone gay deve ser novidade para muitos dos visitantes de shorts cargo e tênis que esperam pacientemente na fila, todos os dias, até que o hino nacional seja cantado e o parque abra as portas -- mas para o resto do mundo, não é.

Para começar que todo mundo sabe que ela é a padroeira das drag queens. Conta que seu visual é inspirado no cabelo descolorido e no batom vermelho das prostitutas da cidade, a quem admirava -- ou seja, é uma homenagem e uma gozação ao melhor e ao pior do alto glamour country e das formas femininas.

Ela também gosta de brincar dizendo que, se não tivesse nascido mulher, teria se tornado drag queen. Até participou uma vez de um concurso em Santa Monica -- e perdeu de lavada.

Em termos gerais, Dolly é uma verdadeira sobrevivente, cultivando seu status entre os fãs gays -- e peitou os críticos, se manteve fiel aos seus princípios e transformou os estereótipos em poder.

Praticamente todos os cantos do parque refletem essa postura. Ali há uma réplica da casa em que morou durante a infância e o interior do seu ônibus de turnês, as roupas de menina, verdadeiros andrajos, e os vestidos caros e elegantes que usa nos shows. Ela assume suas raízes de uma forma que nunca parece manipulada, mas serve para tornar sua narrativa ainda mais forte.

E há anos isso vem atraindo os viajantes gays. Outro dia jantei com uma amiga que descobriu a homossexualidade na adolescência, na Carolina do Norte, e me contou que ela e a amiga, que se identificavam como "punks afeminados" na época, iam a Dollywood só para bagunçar no estacionamento.

Vestidos da cantora Dolly Parton estão expostos em um museu dentro do parque Dollywood, no Tennessee - William Widmer/The New York Times - William Widmer/The New York Times
Vestidos da cantora Dolly Parton estão expostos em seu parque temático nos EUA
Imagem: William Widmer/The New York Times

Dolly Parton continua apoiando a comunidade gay. Em julho, anunciou que estava trabalhando em uma música nova, "Just a Wee Bit Gay", uma forma de reconhecimento positivo e divertido à cultura gay.

"Sempre fui a diferente, desde criança, uma aberração dentro da minha própria família; é por isso que sei muito bem o que passam aqueles que lutam para tentar encontrar uma identidade própria", disse ela uma vez em entrevista.

Preconceito existe

Apesar disso, nem ela, nem o parque assumiram de braços abertos os gays que frequentam o lugar. Seus fãs homossexuais organizaram um "gay day" em Dollywood, há mais ou menos dez anos, inspirado no evento anual da Disney World, no qual gays e lésbicas vão para o parque de camiseta vermelha. Durou cinco anos, mas nunca teve a benção da cantora. Os advogados da administração do parque enviaram uma carta aos organizadores pedindo que parassem de usar o nome Dollywood. Depois disso e das ameaças da Ku Klux Klan, o grupo desbaratou.

Em 2011, uma lésbica no Splash Country, o parque aquático do Dollywood, foi gentilmente convidada a virar a camiseta que usava do avesso porque nela se lia: "Marriage Is So Gay" ("Casamento É Tão Gay"). Na época, a gerência disse que qualquer pessoa que estiver usando uma camiseta com escritos ofensivos é convidado a escondê-la.

Dollywood também se tornou um ímã para gays e lésbicas que trabalham com entretenimento ou simplesmente adoram a cultura que cerca a estrela -- o que não deixa de ser uma existência estranha, na qual a vida pessoal do indivíduo é, muitas vezes, vivida nas sombras, mas que reflete a vida de muitos homossexuais do interior do sul dos EUA.

O Tennessee, como qualquer estado da região, não protege as pessoas de serem despejadas ou despedidas por causa de sua orientação sexual; assim, uma certa estratégia de sobrevivência tipo "don't ask, don't tell" ("Não pergunte, não conte") às vezes é necessária. Raymie Wolfe, cantor e compositor de 34 anos de Nova York, caiu de paraquedas nessa cultura quando voltou para East Tennessee, em 2003, para cuidar do pai moribundo. Ele e o parceiro, um escritor, assumiram a propriedade de 75 hectares da família, perto de White Pine, uma cidadezinha ao sopé das Montanhas Smoky.

Turistas curtem toboágua no parque da cantora Dolly Parton no Tennesse, nos Estados Unidos - Willi­am Widme­r/The New York ­Times­ - Willi­am Widme­r/The New York ­Times­
Turistas curtem toboágua no parque Dollywood, no Tennessee
Imagem: Willi­am Widme­r/The New York ­Times­

Wolfe começou a trabalhar se apresentando em Dollywood -- e este ano é um dos Gem Tones, grupo que canta à capela no Jukebox Junction, perto da Red's Drive-In, lanchonete com cara dos anos 50. "Interrompemos as famílias que estão tentando comer em paz com canções tipo 'doo wop' várias vezes por dia, no melhor estilo de 'Hedwig & The Angry Inch', versão familiar, é claro", escreveu ele em um e-mail.

Raymie e outros artistas gays de Dollywood formaram um tipo de aliança subentendida e muitos sentem que o parque é um tipo de oásis na região interiorana do sul; acontece que a declaração de missão da Herschend Family Entertainment, corporação que possui o parque em parceria com Dolly Parton, termina com a frase "Sempre seguindo à regra a ética e os valores cristãos" -- o que, para muitos, significa rejeitar a homossexualidade. Como muitos funcionários me confessaram, eles temem perder o emprego se não se mantiverem, de certa forma, enrustidos.

"Tenho certeza de que, se Dolly soubesse disso, ficaria horrorizada", comentou Fatima Mehdikarimi, porta-voz da empresa. "Tecnicamente somos uma empresa cristã, sim, mas ao mesmo tempo fazemos questão de tratar todo mundo em pé de igualdade".

De fato, Dollywood pode parecer supergay ou supercountry, dependendo de quem o frequenta. Como o Museu Chasing Rainbows ("Perseguindo Arco-Íris"), que levamos algumas horas explorando: a bandeira do orgulho gay, com as cores do arco-íris, foi criada em San Francisco nos anos 70; Dolly Parton gosta de dizer "Se você gosta do arco-íris, tem que tolerar a chuva". A conexão está apenas no olho de quem quer ver, mas, mesmo assim.

O museu é uma história interativa de triunfo sobre as adversidades, cheio de monitores elaborados à volta de artefatos de sua infância (cartas de amor de antigos colegas de escola, por exemplo), letras de músicas escritas à mão, sapatos e roupas brilhantes, incluindo o famoso casaco patchwork colorido.

As paredes são forradas de fotos de Dolly com uma miríade de astros, incluindo uma notinha apaixonada de Lily Tomlin (ícone lésbico que se casou com a namorada este ano) e várias referências a Judy Ogle, amiga desde sempre da cantora. Já houve boatos de que as duas teriam um romance, mas Dolly garantiu em inúmeras entrevistas que as duas só são mesmo amigas (Ela está casada com Carl Dean há 48 anos).

Teatro para apresentações musicais é uma das atrações do parque da cantora Dolly Parton nos Estados Unidos - William Widmer/The New York Times - William Widmer/The New York Times
Teatro para apresentações musicais é um dos destaques do parque Dollywood
Imagem: William Widmer/The New York Times

Mais sinais de "gayzice" aparecem quando entramos em um auditório grande e quase vazio para ver "My People", show de Dolly de 50 minutos com direito a um quinteto e a aparição de vários irmãos, sobrinhos e sobrinhas da estrela.

Ela, aliás, aparece em um telão gigantesco sobre o palco e interage com os músicos em uma combinação bem sincronizada, mas meio estranha de magia tecnológica, cantoria, habilidade no banjo e muitas histórias.

Um verso da música "Family", verdadeiro estudo sobre a dedicação familiar, me chamou a atenção: "Alguns são pastores, outros, são gays/Alguns são viciados, bêbados, perdidos/Mas ninguém é rejeitado dentro da família".

Símbolo liberal

Na saída, sob o sol forte do Tennessee, encontrei Jada Star Andersen, sobrinha de Dolly que se apresenta no show e que se considera "o símbolo liberal" da família. Ela me contou que vários parentes e funcionários de Dolly são gays, acrescentando que a tia adora o fato de que Dollywood é considerada uma meca homossexual, embora esse sentimento não seja unânime no clã.

"O lance é que ela é superentusiasmada, mas a verdade é que tem muita gente na família que não gosta nem um pouco. Ela tem que equilibrar os dois lados".

Em entrevista recente em Atlanta, perguntei à cantora se os gays e Dollywood se misturavam; ela estava na cidade para promover o DreamMore Resort, um hotel de 300 quartos com spa e piscinas que deve ser inaugurado ao lado do hotel em 2015. As suítes foram projetadas para famílias inteiras de modo que os pais podem ter um espaço privado, mas ainda assim dormir perto dos filhos. Todos os andares têm quartos conjugados, perfeitos para reuniões grandes -- mas para que tipo de família?

"Estamos aqui para servir a todos. Família é família, heterossexual ou gay, e deve ser tratada com o máximo respeito; é o que fazemos, aconteça o que acontecer. Eu costumo dizer que um bom cristão não julga ninguém. Devemos amar e aceitar os outros como são", disse ela.Apesar de tudo isso, enquanto estávamos na fila do novo FireChaser Express, uma montanha-russa que homenageia os bombeiros apalaches, tive a nítida sensação de que ficar de mãos dadas não seria uma boa ideia. Dolly Parton, porém, deve ter encontrado um jeitinho de sempre apelar para os anjos bons da natureza sulista, tanto pela gentileza e civilidade como pela fé.

Foi o que senti enquanto subíamos as escadas e nos preparávamos para encarar o Wild Eagle, outra montanha-russa que pode chegar a uma velocidade de 96 km/h. Com os pés pendurados no ar, a intenção é fazer com que você se sinta uma águia sobrevoando as montanhas.

Conforme fomos entrando, troquei olhares com um homem de cavanhaque e uma camisa vermelha em que se lia: "Meu salva-vidas caminha sobre as águas". Ele segurava um pacotinho com os pãezinhos de canela. Sorrimos um para o outro, nos acomodamos e partimos.

No fim das contas, todo mundo ama uma montanha-russa.