Muros que dividem capital da Irlanda do Norte desde 1969 atraem turistas
Escolas exclusivas, universidades, lojas, bares e até mesmo empregos. Tudo dividido dentro de uma mesma cidade. Assim convivem ainda hoje os 1,8 milhões de habitantes* da Irlanda do Norte, país pertencente ao Reino Unido e que possui cerca de 100 muros separando católicos (45%) e protestantes (48%).
Chamados de “Peace Walls” (“Muros da Paz”, em português), mas também conhecidos como “muros da vergonha”, a primeira barreira para separar nacionalistas (maioria católica, de nacionalidade irlandesa ou que se identifica como) e unionistas (maioria protestante, de nacionalidade britânica ou que se considera) foi construída em 1969, com o objetivo de reduzir a violência de ambos os lados. Dessa época até 1999, cerca de 3.500 pessoas foram mortas por conta do conflito religioso e sociopolítico.
Uma das principais divisórias está localizada em Cupar Way, na capital Belfast, e virou atração turística nos últimos anos. Ela tem um portão monitorado e que é bloqueado às 22 horas, suspendendo o transporte público e provocando até desvio de rotas. De acordo com a página oficial da “atração” no Facebook, cerca de 500 mil visitantes costumam passar pelo local por ano.
A parede é composta por diversos grafites, mensagens políticas e faz referência ao separatismo entre palestinos e israelenses e à divisão dos alemães em Berlim, que durou 28 anos.
Homenagens aos combatentes do Exército Republicano Irlandês (IRA), como Bobby Sands, e ativistas político-sociais, como Nelson Madela e Martin Luther King, também estão presentes, todos no lado católico da parede. Já no lado protestante, homenagens à família real inglesa e bandeiras do Reino Unido predominam.
Uma das maneiras de visitar o espaço é por meio do serviço de táxis. O condutor (que pode ser protestante ou católico) faz uma breve introdução sobre o conflito (conhecido como "troubles") e o visitante pode assinar o mural de 13 metros, além de tentar compreender as razões pelas quais um pedaço de concreto ainda separa pessoas.
Acompanhado de dois amigos, o estudante brasileiro Gustavo Gothardo, 26, pegou um ônibus em Dublin, onde mora, e seguiu para Belfast -- apesar da divisão não há controle de fronteiras entre as Irlandas. Lá, ele optou pelo passeio de táxi e ouviu relatos pessoais do motorista, filho de ex-membros do IRA.
"Me senti mal ao ver como crenças distintas podem se digladiar entre si e provocar a desunião entre pessoas que possuem diferentes ideologias. Automaticamente excluem a possibilidade de uma boa convivência. Dá a impressão que a população vive uma Guerra Fria, precisam apenas de uma faísca para terem um conflito de fato", disse o intercambista em entrevista ao UOL. O tour custa em média 10 libras por pessoa (R$ 42,44, em valores convertidos em 16/09/2016).
Ainda que a tensão esteja enraizada na sociedade norte-irlandesa, visitar a cidade é seguro e os turistas não precisam se preocupar com bombas ou embates armados, por exemplo. Entretanto, é sempre de bom tom evitar o tema religião no país.
Qual o significado dos muros para os moradores?
De acordo com um estudo de 2015 da Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, a intenção do governo norte-irlandês é acabar com as divisões até 2023. Ainda segundo a pesquisa, 49% da população reconhece a importância turística que a divisão trouxe e 55% não enxerga como negativa a má impressão que os muros refletem à imagem do país.
"Para mim, os muros são apenas grandes paredes, não fico pensando neles. No entanto, concordo que eles precisam estar onde estão até que as duas comunidades concordem em destruí-los. O clima em Belfast ainda é tenso”, contou o jovem protestante Ross McBay, 24.
O conflito na Irlanda do Norte não é apenas religioso, está relacionado com a identidade e a nacionalidade. Enquanto 48% das pessoas se identificam como britânicas, 29% se apresentam norte-irlandesas e 28%, como irlandesas*. As comunidades são distantes umas das outras. Bandeiras da República da Irlanda e do Reino Unido são expostas por toda cidade, como uma espécie de marcação de território.
Por mais cruel que possa parecer aos olhos dos estrangeiros que visitam a cidade, a segregação é tida como parte da vida dos habitantes que decidiram entrar em uma espécie de acordo, como opção para evitar mais mortes. “Os muros são necessários para manter as pessoas de ambos os lados seguras. Não há nenhum sinal de que ele seja removido em breve e acho isso muito triste. Demonstra que parcelas da sociedade ainda não estão prontas para uma verdadeira paz e reconciliação”, reconhece a católica Eileen McCullough.
Zona neutra
Diante da divergência, apenas a região central é considerada neutra para ambos. “Tenho alguns amigos católicos e nós sempre nos encontramos no centro. Ir até uma área católica sendo protestante é perigoso, devido a ameaça de dissidentes do IRA (que aceitaram um cessar-fogo em 1990)”, contou Ross McBay, que foi criado em locais destinados somente à sua comunidade.
Assim como seu compatriota, Eileen aprendeu logo cedo a lidar com a pergunta “católica ou protestante?” e a evitar lugares aos quais católicos não são bem recebidos. "A dificuldade de se misturar socialmente sempre existiu. Cresci sabendo que era inferior. Quando os unionistas querem ser desagradáveis eles sugerem que a gente (católicos nacionalistas) se mude para República da Irlanda. Tenho ouvido isso por muitos anos, mas é irreal esperar um êxodo em massa para o sul”, disse ela, que já foi apedrejada por protestantes mais radicais.
Início do conflito
A Irlanda do Norte é uma região composta por seis condados e faz parte do Reino Unido (junto com Inglaterra, Escócia e País de Gales, mas é o único país que não fica na ilha da Grã-Bretanha). Ao sul está a República da Irlanda, independente dos ingleses desde 1916 e que possuiu 26 condados, além de concentrar a maioria dos católicos.
As diferenças sociais, étnicas, religiosas, econômicas e políticas surgiram no século 12, quando o rei Henrique 2º invadiu a Irlanda. No século 17, diversos britânicos (maioria protestante) migraram para o local, com o intuito de marcar território, e a disputa com os irlandeses, que continuaram seguindo o catolicismo, se intensificou.
Saída do Reino Unido da União Europeia: o que muda nas Irlandas?
Após o anúncio de saída do Reino Unido da União Europeia, alguns setores da sociedade começaram a questionar a possibilidade de união das Irlandas, já que a maioria da população na Irlanda do Norte votou por permanecer no bloco, assim como os escoceses.
O Brexit (“Britain Exit”, o novo bloco econômico) pode ajudar aqueles que brigam pela unificação, mas a decisão será tomada em um referendo que já foi iniciado, segundo explicou ao UOL uma especialista em conflitos europeus, que preferiu não se identificar.
O assunto, no entanto, ainda é complexo até mesmo para a nacionalista Eileen, já que a união poderia desencadear um novo “Bloody Sunday” (“Domingo Sangrento”, confronto de 1972 entre católicos, protestantes e soldados britânicos). “Não estou certa sobre a possibilidade de unificação. Acredito que a nossa situação é muito parecida com a da Escócia, mas, de qualquer forma, os unionistas nunca aceitariam isso. Gostaria de saber o que eles temem. Talvez tenham medo de serem tratados como cidadãos de segunda classe, como os católicos eram”, ironizou ela.
* Dados divulgados pelo Census 2011
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