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Conheça as lendas mágicas de Laoshan, na China, explorando seus desfiladeiros

  • Jeffrey Lau/The New York Times

    Trilhas entre as montanhas na Área Panorâmica de Laoshan, em Qingdao, na China

Tienlon Ho

New York Times Syndicate

15/09/2013 08h05

O sol já se punha, mas o ar ainda estava quente quando engoli o restinho de água do meu cantil. Meu amigo e eu estávamos subindo o desfiladeiro sul de Laoshan, uma montanha de granito desbotado pelo sol, cheia de recantos escondidos que se ergue sobre o Mar Amarelo, na costa leste da China.

A trilha começa em Dahedong, vilarejo à sombra de uma grande barragem, e subia os terraços íngremes dos campos de chá antes de dar a volta ao redor do leito de um riacho seco e uma pilha de rochas que dava a impressão de estar suspensa no meio da encosta. Quando toquei uma delas para me equilibrar, tive a impressão de que sugou toda a umidade da minha pele. Não chovia há dois meses e até as pedras estavam sedentas.

Ao longo do caminho, os lírios se destacavam como pinceladas de cor laranja e os caminhantes que tinham passado ali antes de nós tinham amarrado fitas vermelhas nos galhos das árvores, como é comum nos templos chineses. A floresta nos guiava com o murmúrio suave de milhares de orações - e, mesmo assim, demos um jeito de nos perder.

É fácil chegar de carro à Área Panorâmica de Laoshan a partir de Qingdao, a pouco mais de trinta quilômetros a oeste. Dois milhões de pessoas passam por ali todo ano para subir os picos da montanha, espalhados em morainas de forma curiosa, lembrando mais pilhas de livros e chifres curvados. Entre as pedras pálidas, cedros, olmos e pinheiros crescem luxuriantes, alimentados pelos aquíferos subterrâneos. A água se filtra através dos estratos e corre pelas fendas para formar pequenas piscinas claras que se veem por toda a parte.

Essa beleza extraordinária não passou despercebida aos taoístas, que há três mil anos já afirmavam que o local abrigava os "imortais", seres elevados tão distantes das preocupações terrenas que sua pele não tinha uma única ruga de preocupação. Embora a maioria dos templos tenha se perdido para as revoluções e o tempo, monges em azul e branco ainda cuidam do Palácio Taiqing, templo taoísta situado no sopé da montanha há dois mil anos, desde a dinastia Han. Praticamente durante o mesmo tempo os monges acreditam que sua boa saúde se deve à água da Shenshui Quan, Fonte dos Imortais, que alimenta a fundação da estrutura.

Conta-se que houve um tempo em que a montanha não tinha água e os moradores estavam passando fome; então, um espírito bondoso deu a um dos camponeses um vaso mágico que multiplicava tudo o que se colocava ali e o vilarejo foi salvo, mas quando as autoridades, ambiciosas, chegaram para lhe tomar o tesouro, o homem pulou do topo da montanha e fontes de água fresca nasceram onde seu corpo e os estilhaços do vaso caíram.

A partir da era da dinastia Qin e nos séculos que se seguiram, os imperadores visitaram o lugar em peregrinação, na esperança de encontrar os seres que controlavam o vento e a chuva.

Volta e meia a montanha aparecia como pano de fundo das histórias e canções sobre acontecimentos inexplicáveis. No século 17, o escritor conhecido nos círculos literários como o Último dos Imortais, Pu Songling, vivia no Palácio Taiqing e escrevia histórias sobre seus eventos mágicos. Em uma delas, um poeta solitário conhece duas irmãs cujas vidas estão ligadas ao destino das flores; em outra, um monge taoísta dá a um discípulo presunçoso o dom de atravessar paredes - e o anula no pior momento possível.

Eu passei os dias anteriores à minha caminhada explorando Qingdao, tão próxima de Laoshan que, nas manhãs mais claras os picos aparecem como se fossem miragens à distância. Para a grande maioria que vive ali, a montanha não é mais um lugar físico, mas o símbolo de tudo que não é urbano - o que a torna uma marca altamente vendável. Na parte velha da cidade, camelôs ao longo dos degraus do Huangdao vendem cogumelos cheirosos e cerejas cultivadas à sua volta; no bairro comercial, os garçons dos restaurantes mais exclusivos recomendam o tuji, galinhas criadas em liberdade também nas suas proximidades, pelo dobro do preço da ave comum. Nos hotéis cinco estrelas, a água é sempre da marca Laoshan.

O produto mais famoso da cidade, a cerveja Tsingtao, também capitaliza em cima dos laços com a montanha. Em 1903, a Nordic Brewery Company começou a fazer a bebida usando uma receita que levava malte da Morávia, lúpulo da Boêmia e Baviera e água mineral das fontes da Laoshan; mais tarde, uma tubulação passou a levar a água direto do lençol freático local para a cervejaria. Hoje a Tsingtao produz um volume tão grande nas filiais ao redor da China - 122 milhões de barris por ano - que a água da Laoshan é reservada para a variedade produzida apenas em Qingdao.

  • Jeffrey Lau/The New York Times

    Entre as pedras pálidas crescem pequenas piscinas claras que se veem por toda a parte na Área Panorâmica de Laoshan, em Qingdao, na China


Ainda existe o poço original - um pequeno buraco feito em uma pedra hexagonal atrás da área de carregamento da cervejaria-, mas ele não é mais utilizado e nem faz mais parte do passeio oficial. Uma guia tentou me convencer a não me aproximar. "Cuidado com os fantasmas", disse ela, enquanto se afastava.

Eu sabia que o medo de poços é comum na superstição chinesa, reforçado por avós medrosas e livros de histórias que descrevem o final infeliz de muitas concubinas,  mas enquanto eu espiava a abertura com ceticismo, uma brisa fresca subiu e pude senti-la no rosto. De repente, ouvi uma buzina barulhenta e chiado de freios; se havia outra coisa a não ser água descendo da montanha pelo tubo, com certeza já tinha voltado correndo lá para cima para escapar dos caminhões de entrega.

O sol se punha por trás da Laoshan quando fizemos uma curva no caminho, onde a terra se transformava em lama e cercava uma piscina natural, a "Prinzenbad" - a "Banheira do Príncipe" - segundo a inscrição na rocha ao lado, feita por empresários alemães que instalaram cervejarias e sanatórios na montanha no início do século 20. A água era clara, mas quente e parada, exceto pelos girinos que circulavam em grupos. Lavamos o rosto e seguimos em frente.

Passada outra curva, havia uma rocha com o ideograma chinês para a palavra "chá", o que significava que tínhamos encontrado um lugar para passar a noite. Ali nas montanhas, algumas famílias abrem suas casas como nongjiale, pensões informais onde é possível dormir em uma das camas temporariamente vagas.

A casa de Lao Huang era de pedra, de teto baixo, cercada de jardins e campos de chá que se estendiam pelas colinas de um vale em forma de "u". Ele não estava lá, mas sua mulher, He Fenghong, surgiu de trás de uma pilha de toras de madeira, o neto pequeno amarrado às costas.

"Vocês devem estar com sede", disse. Não demorou muito para que servisse o chá preparado com as folhas que pegou dos arbustos em volta da casa. Bebemos depressa e depois a ajudamos a pegar uma das galinhas que ciscavam no terreiro e que seria o nosso jantar.

Assim que nos sentamos em uma mesa baixa no kang da família (plataforma de pedra sobre o forno à lenha que também seria a nossa cama), Lao Huang voltou com os suprimentos que tinha ido buscar do outro lado da montanha.

Como a mulher, Lao Huang parecia bem mais jovem do que realmente era - e, segundo ele, "ainda não tinha chegado aos 50". Perguntei como tinha conseguido encontrar um lugar para morar tão bonito, mas em vez de responder, ele brincou dizendo que era porque ninguém gostava de ser burro de carga. Afinal, levava três dias, a cada dois ou três meses, para buscar provisões.

 


A única coisa que tinham em casa era água. Lao Huang tinha instalado "encanamento" - uma mangueira que se estendia por 1,2 km até o topo de um despenhadeiro, onde havia uma piscina de água pura e cristalina.

"Você pode ter o que quiser na cidade", afirmou Lao Huang, "mas na montanha você tem aquilo de que precisa". E riu. Ele tinha um jeito especial de resumir seus pensamentos em frases curtas, de efeito, quase sempre seguidas de uma gargalhada.

Perguntei se ele estava preocupado com a seca.

"Quando chover, os riachos enchem. O nível da água sobe e desce, mas ela está sempre aí. O negócio é confiar na montanha". E riu de novo.

De manhã, acordamos ao som do galo - e depois uma cacofonia de pardais, rolinhas e os dois cachorros da casa que vinham para receber o sol. Vimos a neblina cobrir os vales de branco enquanto comíamos ovos, mingau de arroz e bebíamos chá. Depois, satisfeitos, seguimos para o desfiladeiro.

Quando chegamos à Área Panorâmica de Beijiushui, do outro lado, tivemos que passar pelos turistas amontoados nas calçadas para ver as inscrições e placas nas paredes do cânion com os nomes das fontes. Passamos por uma sequência de pequenas piscinas, a água cada vez mais azul conforme nos aproximávamos da fonte - Chaoyin Pubu, a cachoeira cujo nome era o som das marés.

No final da trilha, olhamos para cima: um fio de água saía do meio das rochas a seis metros de altura para cair em uma piscina azul safira.

Agachadas à margem do riacho, as pessoas, maravilhadas com a água límpida, sorviam pequenos goles com as mãos em concha. Eu fiz o mesmo, e aproveitei para encher o cantil, que esvaziei no carro, a caminho de Qingdao, quando começou a chover.

É muito radical? A classificação varia de 1 (inexistente) a 4 (demasiada).

Isolamento: 2
Grande parte das regiões mais belas de Laoshan são pavimentadas e movimentadas, mas basta se afastar um pouco do movimento que começam a surgir trilhas não marcadas.

Falta de conforto: 3
A estadia nos nongjiales é sempre rústica. Os de Lao Huang tem latrinas e a água corrente é uma mangueira adaptada a uma fonte.

Desgaste físico: 2
Se quiser fazer caminhadas, vai precisar apenas de sapatos apropriados e confortáveis e sentido de direção. Uma garrafa d'água (principalmente na estação da seca) é sempre uma boa ideia.
 

Se você for

A estação das águas vai de julho a setembro. Ônibus urbanos e de turismo fazem o percurso de Qingdao a Laoshan ao longo do dia. No parque é proibido transitar de carro. A tarifa dos ônibus que param nos arredores está incluída no ingresso (na Área Panorâmica de Taiqing, 130 renminbi ou US$ 22, US$1 = 6 CNY de abril a outubro; 100 renminbi de novembro a março).

O Tsingtao Beer Museum (56 Dengzhou Lu, 86-532-8383-3437) oferece passeios na cervejaria original diariamente (60 renminbi). A marca patrocina o Festival Internacional da Cerveja em agosto em Qingdao.

Também em Qingdao, o restaurante do China Community Art & Culture (8 Minjiang Sanlu, 86-532-8077-6776) usa ingredientes locais e água de Laoshan, e o cardápio inclui frango orgânico frito com cogumelos de Laoshan (78 renminbi) e chá verde de Laoshan (48 renminbi o bule). A diária dos quartos do hotel (86-532-8576-8776) ao lado a 288 renminbi, com suítes a partir de 688 renminbi.

Hospede-se na montanha com Lao Huang e He Fenghong em seu nongjiale (nos mapas aparece próximo do Templo Chajian, a pouco mais de três quilômetros ao norte de Dahedong, 86-133-3503-1673) por 20 renminbi/noite, sem gorjeta incluída.

 

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