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De Viena a Budapeste, a pé

MATT GROSS

New York Times Syndicate *

14/10/2010 17h36

Era uma vez um jovem que saiu para caminhar. Era dezembro de 1933, e o inglês de 18 anos chamado Patrick Leigh Fermor calçou um par de botas cardadas, vestiu um sobretudo de segunda mão, fez sua mochila e partiu de Londres em um navio com destino a Roterdã, de onde planejava viajar mais de 2.200 quilômetros até Istambul - a pé. Ele virtualmente não tinha dinheiro; na melhor das hipóteses, ele chegaria em, digamos, Munique, para descobrir que sua mãe lhe enviou cinco libras. Mas o que ele tinha era uma natureza expansiva, um senso de aventura, uma afinidade por línguas e uma ampla rede de amigos de amigos.

Os livros que ele produziu a partir da jornada de um ano - 'A Time of Gifts' e 'Between the Woods and the Water' – levaram muitos a chamar Leigh Fermor, atualmente com 95 anos, de o maior escritor de viagem vivo do Reino Unido. Mas para mim, ele sempre teve outro título: o Viajante Frugal original - a personificação dessa ideia de que, apesar de um viajante poder não ter um centavo, ele não precisa sofrer.

Será que uma pessoa jovem (35 anos ainda é jovem?), com pernas fortes e pouco dinheiro encontraria o mesmo espírito de hospitalidade que Leigh Fermor encontrou? No final de março, eu parti para encontrar a resposta. Dispondo apenas de duas semanas livres, meu plano era caminhar de Viena a Budapeste, uma rota de 290 quilômetros que seguiria a trilha de Leigh Fermor o mais proximamente possível, me levando ao longo do Danúbio até Bratislava, a capital da Eslováquia, e atravessando as planícies do sul da Eslováquia até a Hungria.

  • Matt Gross/The New York Times

    Leigh Fermor caminhou pelas planícies da Eslováquia quando completou 18 anos


Foi tentador, no dia em que cheguei a Viena, simplesmente sair andando na direção leste do aeroporto, mas eu não podia ignorar completamente a capital austríaca, onde Leigh Fermor passou três semanas entre as 'as ruas tortuosas' e 'fachadas de frontões quebrados e venezianas enfileiradas'.

Mas após duas noites, eu estava inquieto. Eu cruzei o Danúbio, coloquei minha mochila de 20 quilos e desci a Donauradweg, uma trilha de bicicletas bem mantida que vai da nascente do rio até sua foz no Mar Negro. À minha direita, o Danúbio, mais verde do que azul, cintilava ao sol agradável.

Neste primeiro dia, eu imaginei, pegaria leve e caminharia apenas 24 quilômetros. O ideal seria percorrer 29 quilômetros por dia - cerca de seis horas de caminhada - para atingir minha meta. Parecia razoável, especialmente com o terreno tão uniformemente plano.

Mas mesmo em um terreno tão fácil havia empecilhos. Uma tentativa de atalho por um depósito de combustível me deixou com alguns arranhões e cinco quilômetros adicionais. Mas se tivesse permanecido na trilha, meu caminho nunca teria cruzado com os de Jean-Marc e Marie, dois ciclistas franceses recém-casados que pararam para dizer oi quando viram um caminhante solitário no meio do nada.

Eles estavam realizando uma lua-de-mel prolongada: uma jornada de bicicleta de dois anos, da casa deles em Paris até... o Japão!

'Vocês sabem onde vão se hospedar nesta noite?' eu perguntei. Eles não sabiam. Eu disse para me encontrarem em Orth an der Donau, uma pequena cidade austríaca a uns três quilômetros à frente, onde reservei um lugar para ficar via CouchSurfing.org. Quem sabe, eu disse, meu anfitrião poderia encontrar um lugar para eles armarem sua barraca.

O anfitrião, Roland Hauser, que encontramos diante do impressionante castelo de Orth, fez melhor do que isso. Ele os convidou a ficarem na sua casa de sonho, de camas macias e chuveiro quente. Naquela noite, nós preparamos um espaguete a bolonhesa, comemos presunto do Alto Ádige e bebemos grandes garrafas de cerveja. Eu fui dormir maravilhado com nossa extraordinária sorte.

Na manhã seguinte, a caminhada começou bem. Meus pés estavam sensíveis, mas a planície da Marchfelddamm, uma berma elevada que servia tanto como trilha de bicicletas quanto contenção de enchentes, assegurou que eu não tivesse dificuldades. Este era o coração do Parque Nacional Donau-Auen: florestas de árvores finas interrompidas por riachos ocasionais fluindo para o Danúbio. Inicialmente, eu apreciei a luz refletindo na água e passando por entre os troncos, mas hora após hora de cenário imutável logo se tornou cansativo e eu simplesmente marchava. Foram necessários 21 quilômetros até eu conseguir parar para almoçar, outros 16 até chegar à minha meta do dia: Bratislava.

Após fazer o check-in no Hotel Kyjev - uma torre dos anos 70 transformada em hotel butique barato - eu chequei meu estado: não estava dolorido, sem fôlego e nem mesmo cansado. Mas tinha bolhas nos meus pés, que foram fáceis de tratar: furar, secar, limpar e aplicar um curativo. E meus tornozelos estavam terrivelmente inchados. Tomei ibuprofeno, um banho e então saí mancando para jantar.

  • Matt Gross/The New York Times

    Monumento em King Matyas, na Hungria


Era a sexta-feira da Páscoa Judaica, e como qualquer judeu viajante, eu queria uma refeição do shabat. E graças à Chabad, uma organização de judeus hassídicos, eu tive uma, na casa do rabino vindo dos Estados Unidos, Baruch Myers. Ele me acolheu de bom grado para compartilhar sua refeição, sua amizade e sua família, incluindo um batalhão de crianças adoráveis que alegremente me conduziram pela história da Páscoa.

No sábado, em parte inspirado pelo rabino, em parte devido aos meus pés, eu descansei e contemplei o futuro. Eu já tinha caminhado 65 quilômetros e, considerando o estado dos meus tornozelos, eu não conseguiria percorrer os 225 restantes. A menos que.... eu cortasse caminho de trem - digamos, 24 quilômetros na direção nordeste - certamente conseguiria caminhar mais 16 quilômetros. Eu quebraria minhas regras, mas elas eram arbitrárias.

Assim eu tomei um táxi por oito euros até a estação central, paguei 1,18 euro por uma passagem e embarquei em um trem que percorreu sem pressa os arredores de Bratislava. Francamente, eu fiquei feliz por não ter precisado caminhar por aquele espaço urbano, e quando cheguei a Senec, uma cidade resort de verão à margem de um lago, eu comi um almoço magnífico de terrine de porco, perna de cordeiro, batatas assadas e vinho branco por nove euros, no restaurante rústico do Hotel Koliba.

As margens ventosas do Lago Slnecne deram lugar a uma estrada solitária ao lado de um muro pichado cercando terras agrícolas, que foi dar em Reca, um vilarejo tão pequeno que não tenho lembrança dele.

Era fim de tarde e meus tornozelos estavam me matando. O mapa que salvei no meu iPhone apontava a próxima cidade a 24 quilômetros ao leste. Eu precisava descansar - mas onde? Enquanto marchava pela calçada, eu avistei um homem e uma mulher mais ou menos da minha idade, passeando com seu cachorrinho. No meu melhor eslovaco, perguntei: 'Onde fica a área de camping?' Eles olharam para mim, confusos, então a mulher - Katarina Synakova, eu tomei conhecimento posteriormente - disse em inglês: 'De onde você é?'

Quinze minutos depois, eu estava sentado em uma mesa de cozinha em frente ao avô de Katarina, bebendo o vinho branco feito por ele mesmo e comendo doces recém assados pela cunhada de Katarina. Os primos de Katarina se juntaram a nós. Logo a cozinha tinha virado uma baderna de inglês, italiano, eslovaco e húngaro, com uma pitada de francês, alemão e árabe. Eu fui dormir cedo - em parte para dar um pouco de privacidade à família. Pela manhã, o pai de Katarina me deu uma garrafa de conhaque vintage 1978 e parti caminhando na chuva fria.

De Velky Grob, eu marchei 24 quilômetros por estradas cheias de lixo e cruzando terras agrícolas desoladas, chegando a Sered, uma cidade cinzenta que odiei instantaneamente. Era segunda-feira de Páscoa e tudo em Sered e em todo o país, me pareceu, estava fechado exceto por um café, onde um cliente me levou de carro por três quilômetros até uma pensão. Por que? Um americano o ajudou a encontrar um hotel no Rio de Janeiro e agora ele podia retribuir a gentileza.

No dia seguinte, o dono da pensão me deu uma carona por alguns poucos quilômetros até Strkovec, uma propriedade onde Leigh Fermor ficou hospedado com o barão Philip Schey, um dos personagens mais interessantes de seus livros.

Por que, eu me perguntava com frequência enquanto caminhava, alguém faria isso? Eu obtive uma resposta parcial no dia seguinte, quando, após tomar um trem a 32 quilômetros ao sul de Nove Zamky a Gbelce, a paisagem mudou. O tédio plano desapareceu. Em vez dele, estradas tranquilas subiam e contornavam colinas baixas repletas de árvores frutíferas que ainda não tinham florescido. Após duas horas de caminhada, eu descansei perto de charcos onde aves aquáticas espreitavam, então caminhei mais duas horas, passando pela cidade de Kamenny Most, até Nana, uma cidade suburbana onde comprei um vinho tinto caseiro e três maçãs que me deram energia para caminhar mais uma hora ao longo do Danúbio e atravessar uma ponte até Esztergom.

Eu finalmente tinha chegado à Hungria e Budapeste estava a apenas 64 quilômetros de distância. Dois dias de caminhada, se meus tornozelos não se rebelassem.

 

  • Dave Yoder/The New York Times

    A imponente basílica de Esztergom, na Hungria


Primeiro, eu precisava me libertar de Esztergom, a mais bela cidade desde Viena. Eu precisei de um dia inteiro para absorver a atmosfera (e descansar) antes de me sentir pronto para partir.

Quando parti pela trilha de bicicleta às margens do rio naquela manhã, eu tive a dolorosa suspeita de que o dia de caminhada - 24 quilômetros até Visegrad - poderia ser meu último. Meus tornozelos estavam inchados, mas não doloridos demais. Mas após três horas, eu notei, meus tornozelos tinham se transformado em pára-raios de agonia. Eu cheguei a Visegrad no meio da tarde e montei minha barraca (pela primeira vez) em um camping à beira da estrada, ciente de que no dia seguinte, após visitar o castelo no topo da montanha de Visegrad, eu tomaria um ônibus para Budapeste.

Assim minha caminhada chegou a um fim prematuro. Eu fiquei decepcionado por não ter feito todo o percurso? Realmente não. Eu percorri 177 quilômetros a pé e vi coisas que nenhum viajante de ônibus ou trem veria.

 


* Matéria publicada originalmente em maio de 2010.