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Passeio por Benin, na África, é um mergulho na cultura e na religião indígena Vodum

Joshua Hammer

New York Times Syndicate

17/03/2012 08h00

Estávamos andando de carro pelas vielas de Ouidah, o antigo porto de comercialização de escravos no Benin, quando o vimos: uma figura que usava túnica e luvas de couro, o rosto escondido sob um capuz enfeitado de miçangas e conchas. Um garoto com um cajado na mão o guiava, passando em frente às casas coloridas, sombreadas pelas mangueiras e palmeiras.

Meu motorista e guia, Ulrich Vitale Ahotondji, diminuiu a velocidade para podermos vê-lo melhor. "Melhor não sair", ele me avisou, mas eu já estava saltando do carro com a câmera na mão. A figura se encolheu contra a parede e começou a balbuciar numa voz metálica, assustadora; seu protetor levantou o pedaço de pau como se me ameaçasse e eu voltei para o carro.
 
 
Segundo Ulrich, o homem era uma aparição, figura importante na religião indígena animista conhecida como vodum. Também chamados de Egunguns no idioma Fon, acredita-se que esses homens encapuzados, cuja identidade é secreta até para seus vizinhos, sejam intermediários entre os vivos e os mortos; geralmente caminham pelos vilarejos evocando os espíritos de ancestrais mortos - e tocá-los quando estiverem em transe pode ser fatal. Mesmo Ulrich, que é católico, não queria pagar para ver se a crença era verdadeira. Quando passamos por uma praça onde havia pelo menos uma dúzia deles, dançando, Ulrich acelerou. "Desta vez não vou deixar você sair", disse ele.
 
Naquela manhã, Ulrich, o fotógrafo Jason Florio e eu tínhamos saído de Cotonou, a sede do governo do Benin, com destino a Ouidah, a 48 quilômetros de distância, para explorar os rituais do vodum. Apesar dos esforços dos missionários cristãos, esse credo secular ainda conta com milhões de seguidores ao longo da antiga Costa dos Escravos, que ia de Gana até parte da Nigéria, mas principalmente no Benin. Uma sucessão de ditadores suprimiu sua prática depois da independência, mas, em 1996, o governo democrático decretou o vodum religião oficial – e desde então milhares de pessoas a praticam abertamente.
 
Para os visitantes, sua ressurgência oferece a rara chance de conferir a prática espiritual das culturas indígenas. Há anos os turistas ocidentais estabeleceram um fluxo constante na região, na rota entre Benin e Togo, visitando templos e feiras de fetiches, às vezes até conseguindo entrar nas cerimônias presididas por sacerdotes que lideram a cantoria, a dança e o sacrifício de animais. Como Jason e eu, esses turistas se hospedam em Cotonou ou uma das poucas pousadas ao longo do Golfo da Guiné e comem nos restaurantes que servem tanto os pratos locais - como o peixe apimentando com mandioca - ou pratos ocidentais. Como nós, eles viajam com guias que os ajudam a entender as cerimônias e servem de intérpretes.
 
Há vários marcos históricos espalhados pelo litoral - como a Porta Sem Retorno em Ouidah, um memorial que identifica o ponto de partida dos escravos que iam para o Brasil ou para as Índias Ocidentais, no Caribe. Nos séculos 17 e 18, os rituais africanos se fundiram com o catolicismo para formar o vodu haitiano, a santeria cubana e o candomblé brasileiro; os escravos que retornaram, durante o século XVIII, levaram essa forma sincrética do vodum de volta para Ouidah e outras cidades da região.
 
Os praticantes do vodum idolatram inúmeros deuses e divindades menores que habitam objetos que variam desde pedras até cachoeiras. Acreditam que os espíritos de seus ancestrais vivem entre eles e usam talismãs (ou fetiches) - como partes secas de animais - para rejuvenescimento físico e espiritual, além de proteção contra os feitiços lançados por bruxas malévolas. "O vodum é a África. É a fé de nossos ancestrais", disse Dagbo Hounon Houna II, o chefe espiritual de Benin, onde vinte por cento da população, ou o equivalente a um milhão de pessoas, pratica o vodum puro e outros 40 por cento, uma forma que incorpora os símbolos cristãos. Funcionário público aposentado de 50 e poucos anos, Dagbo Hounon me recebeu num rondavel, uma choupana redonda, dentro de um complexo na periferia de Ouidah.
 
Usando um chapéu branco, uma túnica branca e roxa, um lenço xadrez no pescoço e um cordão enfeitado de conchas, ele aceitou o meu presente (obrigatório) - que, no caso, era uma garrafa de gim Royal Stork - que pôs ao lado dos pés, entre o crânio de um elefante e várias cumbucas - e me ofereceu vinho de palmeira. "Sofremos com a perseguição dos missionários", ele disse em francês, enquanto eu engasgava com o líquido que mais parecia feito de fogo. Explicou também que os cristãos e praticantes de vodum tinham estabelecido uma trégua, mas considerou "deplorável" a esnobada que recebeu do Papa Bento XVI durante uma visita recente a Ouidah. Ele me convidou para voltar no sábado seguinte para testemunhar uma cerimônia que poucos ocidentais tinham visto.
 
Depois da visita, fui com Ulrich e Jason a Ganvie, um vilarejo no lago Nokoue, um estuário ao norte de Cotonou. Lá, alugamos um barco a motor e, acompanhados por um guia, Gilbert, deixamos para trás as pirogas e as armadilhas de pesca, feitas de madeira. Ali, como em todos os lugares durante a nossa viagem, encontramos um punhado de turistas ocidentais - incluindo um jovem casal de franceses que tinha acabado de desembarcar e falava das glórias da "pura experiência africana" de viajar pelo Benin, e um grupo de norte-americanos. "Oitenta por cento do povo de Ganvie pratica o vodum", disse o nosso guia enquanto seguíamos para o mercado flutuante. Mulheres em canoas remavam através dos jacintos d'água com os barcos lotados de bananas e outros produtos para vender.
 
Ganvie consiste basicamente de um conjunto de casas de palafitas. Passamos pela "ilha do sacrifício", um pequeno terreno onde cabritos e galinhas eram mortos para as divindades e incinerados na casa de Alako Hain Abumaja Tand, um dos principais sacerdotes.
Ele pediu licença e se retirou para colocar sua roupa cerimonial, uma túnica verde e um barrete que lembrava a mitra de um bispo, e depois nos levou a uma cabana. Os murais coloridos da fachada - nos quais se via uma divindade hindu com rabo de macaco e os anjos alados da Anunciação - mostravam que o vodum tinha realmente absorvido outras religiões.
 
Ulrich negociou o preço (o equivalente a US$ 20) e o sacerdote nos deixou entrar no templo, não sem antes cuspir três tragos de gim no limiar. "É para espantar os maus espíritos", ele explicou e se sentou sob uma imagem de Jesus crucificado, serviu copos de aguardente feita de mandioca e, enquanto dois homens tocavam tambores, colocou as mãos sobre a minha cabeça, declamando uma ladainha para a divindade padroeira de Ganvie.
  • Jason Florio/The New York Times

    Devotos do Vodum dançam, cantam e tocam instrumentos típicos da religião em cerimônia no templo Thron, em Ouidah

No dia seguinte, voltamos para Ouidah e sua principal atração, o Templo das Serpentes, que fica na modorrenta praça principal, na frente da basílica. Um casal de italianos e um de nigerianos se juntaram a nós num passeio guiado pelo sacerdote vodum, um jovem que nos levou também ao templo, um edifício de concreto com telhado de argila. Descemos cinco degraus e nos deparamos com um cercado onde havia pelo menos uma centena de cobras amontoadas. O tratador pegou um píton de 1,5 metro e entregou para mim. Fiquei nervoso quando ele começou a se enrolar no meu pescoço, embora parecesse superdelicado e o sacerdote me garantisse que não aconteceria nada.
 
Os praticantes do vodum veem os pítons como manifestações do deus serpente Dangbe. "Nós os deixamos sair do templo à noite para poderem passear pela cidade", contou o sacerdote. "Comem galinhas e ratos e depois voltam para cá."
 
Naquela noite ficamos num hotel por onde só se chegava através de uma estrada de terra que cortava plantações de palmeiras e de onde se viam os pescadores cantando e jogando as redes no mar. O Casa del Papa consistia em uma dúzia de bangalôs esparramados por uma praia praticamente deserta e um restaurante ao ar livre que servia um peixe excelente.
 
Voltamos à casa de Dagbo Hounon na manhã seguinte e seguimos seu Mazda por outra estrada de terra vermelha para a cerimônia do sábado. O templo era um complexo espalhado numa área grande; pinturas de divindades - incluindo a do deus padroeiro da região, Thron -cobriam as paredes. Centenas de fiéis cercavam Dagbo Hounon, vestido com uma túnica branca e preta, que entrou no templo, depositou uma oferenda (bebida alcoólica) no altar e falou à multidão: "Esses brancos vieram para participar e ver vocês; podem recebê-los". Seu comentário gerou vários murmúrios e muitos sorrisos.
 
Então, a cerimônia começou: mulheres e crianças fizeram fila, jogaram a água barrenta de uma tigela de porcelana no rosto, comeram lascas de noz-de-cola cortadas pela machadinha do sacerdote e finalmente abaixaram as cabeças, untadas com uma substância clara e pegajosa. "Só os iniciados sabem o que é", foi o que me disseram. No pátio do prédio seguinte, um jovem segurava seis cabritos que tinham sido polvilhados com talco. Os fiéis depositaram dinheiro numa tigela e cada oferta gerava uma explosão de alegria e música do coral feminino.
 
Enquanto isso, um grupo de fiéis em frenesi se reuniu perto da área do sacrifício; um homem com o peito encharcado de suor batia num tambor enquanto várias pessoas levantavam um cabrito branco, aterrorizado, para depois quase deixá-lo cair. O sacerdote se aproximou com a machadinha e, com a multidão apertando o cerco, cortou a garganta do bicho. O sangue jorrou no chão e fez uma pequena poça. Aí, foi a vez das galinhas, cujas gargantas forma cortadas com uma navalha, seu sangue salpicando o chão. O sacrifício terminou com o sacerdote dançando no pátio, ao lado de seis seguidores, que brandiam os facões ensanguentados.
 
Naquele momento, percebi que tínhamos testemunhado uma versão bem diferente do vodum "maquiado" do Tempo das Serpentes. Saí dali impressionado com a demonstração de tamanha devoção, mas abalado com sua brutalidade.
 

Se você for

 
Em Cotonou, o Benin Marina Hotel (Boulevard de la Marina; 229-21-30-01-00; benin-marina.com) é um antigo Hotel Sheraton com 250 quartos confortáveis, quadras de tênis e um restaurante que serve pratos da cozinha regional e uma pizza bem decente. Diárias a partir de 111 euros, ou cerca de US$ 150 (com o euro a US$ 1,27). Para provar a melhor cozinha regional da capital, vá ao Maquis Chez Amy, uma portinha que fica lotada na hora do almoço (229-90-93-07-53), ao lado da igreja Notre Dame. Peça o peixe do dia com molho apimentado e um acompanhamento, que pode ser atieke (mandioca) ou foufou (banana). O almoço, sem vinho, custa cinco mil francos CFA.
 
Em Ouidah, ficamos no Casa Del Papa (229-95-95-39 -04; casadelpapa.com), um resort de praia confortável com 60 quartos, incluindo chalés e quartos de frente para o lago, a partir de 52 mil francos CFA para duas pessoas. O restaurante é excelente e o jantar para dois, com peixe, sai por 20 mil francos CFA.
 
No lago, perto de  Ganvie, há barcos para alugar com guia. Uma viagem de três a quatro horas (ida e volta) a Ganvie custa 30 mil francos CFA.
Agências de viagem em Cotonou, incluindo a no Hotel Benin Marina, podem organizar visitas a Ganvie, ao Templo das Serpentes de Ouidah e outros locais sagrados do vodum - ou tente entrar em contato com Dagbo Hounon Houna II, o chefe espiritual supremo do vodum em Benin, que pode ser contatado por e-mail (vodunhwendo@yahoo.fr) ou celular (229-97-25-83-93). Leve uma garrafa de gim ou uma pequena quantia de dinheiro vivo.