Mochilão através dos tempos: três gerações contam o que mudou
Viajar com bagagem compacta e pouco dinheiro, aberto a trocas, encontros, aprendizados e mudanças de rumo. A ideia de mochilão parece pouco combinar com a precisão da tecnologia, no entanto não dá para negar que as facilidades da internet no celular, aliadas a implantação de serviços mais voltados ao viajante aventureiro vêm dando uma boa força para quem põe o pé na estrada hoje em dia.
Mas o que mudou e o que se manteve nesta forma de viajar, com o surgimento de aplicativos de mapas e caronas, com a maior variedade de hostels, hospedagens gratuitas em sofás alheios e passagens de avião mais baratas?
Para saber como os mochilões vêm evoluindo ao longo dos anos, conversamos com viajantes que fizeram roteiros em diferentes décadas: desde os anos 70, quando o conceito mal existia no Brasil, até os tempos em que se pode escolher ler e saber tudo sobre o local a ser visitado -- ou desencanar e se deixar levar, viajando “às cegas”.
Conheça abaixo algumas histórias destes mochilões e, com base nos depoimentos dos entrevistados, veja um comparativo do que mudou em termos em planejamento, hospedagem, transporte, comunicação e economia do mochileiro nas últimas décadas.
Uma viagem política pelo Brasil dos anos 70Imagine rodar o Brasil pedindo carona, em tempos de ditadura militar, carregando exemplares de um jornal de esquerda e se hospedando na casa de amigos de amigos, contatos de movimentos políticos. Foi o que fizeram os mineiros Sérgio Aspahan, 58, e Márcio Godinho, 59, então estudantes de jornalismo, em 1976.
O mochilão de quatro meses pelo Nordeste e Norte brasileiros nasceu da vontade de descobrir o mundo após uma temporada que os dois passaram nos EUA com bolsa de estudos. Ao retornar, vendo o plano de ir para a Europa frustrado por uma medida do governo Geisel que estipulava altas taxas para sair do país, eles decidiram rodar o Brasil, interior e capitais. A solução casou com o momento engajado da dupla, recém-ingressa na universidade. “A viagem foi a grande aula de politização. Contato com miséria, trabalho escravo, a gente descobre um Brasil que era quase a Idade Média. Vamos ficando chocado com aquelas distorções, e aí começamos a escrever sobre", conta Sérgio.
Os diários, que serviam como comunicação via carta com os familiares na época, deram origem ao livro “Mochileiros nos Anos de Chumbo”, que Sérgio e Márcio lançaram em 2013.
Outra aula que a viagem deu para a dupla foi de economia. “Nós fizemos um fundo comum e tínhamos um controle financeiro rigorosíssimo, um fluxo de caixa diário. Isso foi pra nós uma experiência tão importante que organizou minha vida financeira hoje em dia”, diz Sérgio.
Europa na década de 90: dividindo quartos de hotel Uma das lembranças que a paranaense Patrícia de Camargo, 44, tem de seu mochilão pela Europa em 1995 é que os viajantes carregavam livros e uma fitinha com as músicas do roteiro no walkman, marca da época. Além desta recordação comportamental, Patrícia, que escreve o blog Turomaquia e vive hoje na Espanha, lembra que planejou sua viagem lendo guias impressos e que usava trem para se locomover de um país a outro.
“Não tinha companhia aérea low cost. Quando se comprava o Eurail Pass te davam um mapa enorme, e um livro bem gordinho com todos os horários de trens possíveis e imagináveis, e a partir desta informação criei meu roteiro”, explica.
Patrícia conta que se hospedou a maior parte da viagem em albergues, mas que em duas ocasiões dividiu quartos de hotel com viajantes que conheceu pelo caminho, o que hoje em dia é uma prática mais rara diante de outras facilidades de hospedagem.
Bolívia por terra, quinze anos atrás Nessa mesma década de 1990, o webmaster paulista Silnei Andrade, 42, dava início a um projeto que ajudaria muito os viajantes aventureiros. Por conta de sua experiência fazendo trilhas na serra do mar e no litoral de São Paulo, criou os sites Mochileiros.com, primeiro fórum dedicado ao assunto no país, e Mochila Brasil, ao lado da mulher, a jornalista Claudia Severo.
“Essa era pré-internet foi uma época complicada para encontrar informações sobre esse tipo de viagem. Um dos ex-editores do Mochileiros.com contou que, antes do fórum, ele precisou entrar em contato com o consulado do Peru pra conseguir informações de como ir pra Machu Picchu e teve de fazer isso via Correios. Esse é só um exemplo de como era uma coisa totalmente diferente do que é hoje na era dos smartphones”, diz Silnei.
Como primeira experiência de mochilão no exterior, Silnei e Claudia foram para a Bolívia em 2001 em uma viagem por terra. As postagens no site chamaram a atenção do jornal de Santa Cruz de la Sierra, o El Deber, que fez uma reportagem sobre o modo “curioso” como viajava a dupla brasileira. Depois disso, Silnei e Claudia fizeram uma road trip de dois anos e meio pelo Brasil. Já em 2008, foram de São Paulo até a Guatemala, também por terra, e mais recentemente viajaram de carro ao Uruguai. “Todas as viagens foram ótimas e os perrengues foram a cereja do bolo”, garante o webmaster.
Os tempos atuais e o excesso de informação A turismóloga brasiliense Cris Marques, 30, se reconhece desde sempre como mochileira, por conta da referência familiar: os pais sempre viajaram bastante e nunca foram de se planejar muito. Na adolescência ela praticava trekking, e dessa forma fez caminhadas longas que incluíam trechos da Estrada Real e o Caminho da Luz, em Minas Gerais.
Ao se formar na faculdade, decidiu fazer uma rota alternativa por Bolívia, Peru e Chile como trabalho de conclusão do curso de turismo. Isso foi em 2009, o que pode parecer ontem, mas em termos tecnológicos Cris já nota mudanças: o peso do laptop dificultava as atualizações do blog que já mantinha, o Dentro do Mochilão, e no fim ela acabou escrevendo mais num caderninho do que online.
De lá pra cá, Cris vem viajando bastante -- desde 2013 está vivendo de forma nômade, com suas coisas guardadas em poucas caixas na casa dos pais, em Minas Gerais. Enquanto conversa com a reportagem via Skype no celular, ela acompanha uma procissão em Salamanca, na Espanha. Apesar de contar com ajuda da tecnologia em seus roteiros, a blogueira se diz resistente a excessos. Prefere planejar menos e sentir mais.
“Eu sempre digo que o importante não é o destino, é o caminho. Pra você chegar naquela atração que todo mundo fala, no caminho com certeza tem outras coisas tão interessantes quanto, mas se você só fica focado em chegar naquele ponto, não consegue enxergar o que está em volta. E limita, porque só conseguimos enxergar aquilo que conhecemos, mas quando viajamos não conhecemos nada, então por que eu vou querer enxergar só o que me falaram?”, questiona, recordando os pais da cultura mochileira: “essa galera que viajava nos anos 60, os beatniks, eles iam pros lugares pra se descobrir e descobrir novas culturas, e hoje com tudo mastigado como você consegue descobrir se você já vê o outro lugar pelo [olhar do] outro?”.
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