Tratada com respeito pela 1ª vez em aeroporto, trans emociona a internet
Se viajar é estressante para você, que teme atrasos, bagagens extraviadas e turbulências, imagine pelo que passa uma pessoa transgênero ao tentar fazer o mesmo. Quem não se identifica com a identidade que lhe foi atribuída ao nascer sofre com o desconhecimento e o preconceito. Um simples passeio pode significar uma série de humilhações.
Habituada ao "tratamento padrão", em que predomina a discriminação, a ativista carioca Indianara Siqueira foi surpreendida quando, no momento do check-in no aeroporto, um funcionário perguntou de que forma ela gostaria de ser chamada. Como os bilhetes aéreos são emitidos com o nome que consta nos documentos oficiais de cada um, constrangimentos são comuns nesta hora. Ela contou o caso no começo do mês em sua página no Facebook e o depoimento gerou milhares de curtidas e centenas de compartilhamentos e comentários.
"Como você está acostumada com discriminações, fica tensa e espera que chegue aquele momento que te tratem por 'senhor' ou chamem pelo nome de registro", explicou Indianara em entrevista ao UOL.
Esta foi a primeira vez que, em uma viagem, lhe perguntaram sobre o nome social – aquele que a pessoa escolhe ser tratada. "O funcionário foi supereducado e me deixou confortável. Todas as vezes que me lembro fico realmente emocionada. É tão simples: ele apenas me tratou com respeito, é o que todas as pessoas merecem".
Para Amara Moira, doutoranda pela Unicamp, transgênero e ativista, o embarque leva sempre a uma decisão difícil. "Quando vou viajar, tenho que pensar por qual tipo de constrangimento eu vou querer passar. Prefiro colocar meu nome social e correr o risco de não conseguir voar ou uso o meu nome de registro e me exponho? No meu voo mais recente, ouvi meu nome da certidão sendo gritado no aeroporto. Era o último nome que eu gostaria que fosse dito ali, em voz alta. Isso é muito violento!"
Bianca Soares, professora, diretora de escola e transexual, acredita que é importante combater a discriminação usando a educação como arma. "Se uma transexual sofrer preconceito, se rebaixar ao nível do agressor e partir para a violência, infelizmente, vai perder, porque a corda arrebenta para o lado do mais fraco e a minoria sempre perde. Isso é a coisa mais verdadeira e cotidiana. Não deveria ser, mas é".
Desrespeito e acusação de falsidade ideológica
As estatísticas mostram que a transfobia é um grave problema no Brasil. A Associação Parada do Orgulho LGBT aponta que somos o país que mais mata travestis, transexuais e transgêneros no mundo. Segundo a ONG, de janeiro a 2008 a março de 2014 foram contabilizadas 604 mortes.
O combate à transfobia será tema da Parada do Orgulho Gay de São Paulo deste ano, que acontece em maio e é um dos maiores eventos do tipo no mundo. A festa também é responsável por movimentar o setor do turismo na cidade. O núcleo de pesquisas da SPTuris apontou que quase 40% do público da Parada LGBT de 2012 era composto por turistas.
Mas como o setor aéreo lida, oficialmente, com o tema? A reportagem do UOL entrou em contato com a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e com as quatro principais companhias aéreas do país e constatou que demandas sobre transgêneros nem sequer estão em pauta. A ANAC afirmou que não possui regulamentos sobre a questão. A Secretaria de Direitos Humanos, responsável por determinar que instituições de ensino adotem o nome social, informou à reportagem que na área do turismo "não há ação em curso nesse sentido".
Azul, Avianca, TAM e GOL preferiram não dar entrevistas e enviaram notas oficiais defendendo que zelam para que todos os clientes sejam respeitados e tratados de forma igualitária, mas sem especificar como, na prática, tratam a situação dos transgêneros. Questionadas, nenhuma respondeu se possui pessoas trans em seu quadro de funcionários.
"Muitas vezes nos dizem 'esse documento aqui não é seu, é do seu irmão, seu amigo, namorado', nos acusam de falsidade ideológica. E como é que você vai provar que é você? Vai tirar a roupa ali e mostrar o genital?", questiona Amara.
"Por enquanto ainda dependemos da boa vontade das pessoas e isso é a pior coisa que existe. Infelizmente, a gente vive à margem, esperando que as pessoas nos entendam, nos respeitem e nos incluam", desabafa Mel Gonçalves, vocalista da Banda Uó.
Indianara consegue enxergar alguma melhora nos aeroportos, embora ainda haja muito preconceito. "Quando vamos para o exterior, somos retiradas da fila da imigração e colocadas de lado, como criminosas. Muitas vezes ficamos retidas por horas e horas. Nos voos domésticos, sempre têm funcionários rindo ou fazendo comentários, mas disfarçam quando veem que a gente percebeu". Para evitar uma situação desagradável, algumas empresas, segundo a ativista, trocam o "senhor" ou "senhora" por "você".
"O que precisamos é de uma legislação mais flexível, para que seja mais fácil a mudança formal no documento. Isso é muito importante, traz um alívio grande, de que seremos tratadas da forma que nós somos de fato", opina a cantora Mel.
Hora do aperto
Quem nunca chegou de viagem e correu para o banheiro do aeroporto? Essa situação corriqueira é um dos momentos mais estressantes na vida de quem é transgênero. "Tenho caso de amigas retiradas de banheiros femininos e quando elas vão ao masculino são proibidas de entrar ou sofrem agressões", conta Indianara.
Para Mel, essa questão demonstra o que é estar excluído da sociedade. "O banheiro é a tradução de tudo o que a gente passa na vida. Deixa claro que a gente não tem lugar definido. A gente ocupa um 'não-lugar' na sociedade, é sempre o lugar onde dá. Tanto que é comum usar o banheiro para cadeirantes, porque normalmente é unissex e não tem tanta intransigência. Mas não é esse o lugar que a gente tem que ocupar", enfatiza a cantora.
"Não uso banheiro masculino há dois anos, desde que me assumi Amara. Mas muitas vezes a minha escolha é não usar banheiro nenhum. Dependendo de como eu estou vestida - com uma camiseta e não um vestido - fico com medo de como as pessoas irão reagir e, para evitar qualquer tipo de desgaste, evito, mas é muito doloroso", explica a doutoranda da Unicamp.
Barrada no hotel
Os obstáculos não acabam no aeroporto. "Há hotéis que não aceitam a hospedagem. Eles pegam a reserva com seu nome de registro e, quando você chega, te olham e falam que está lotado ou que foi erro de algum funcionário. Em seguida você vê uma pessoa chegar e conseguir um quarto. Teve um caso de um encontro regional de travestis e transexuais em Belo Horizonte em que todos os hotéis da cidade se recusaram a nos hospedar", conta Indianara.
"Este é o momento mais desgastante, porque você faz o cadastro com o nome da identidade e a maioria das pessoas não tem a sensibilidade de perguntar qual nome gostaria de usar", relata Mel.
Tanto desrespeito afeta até a vontade de viajar. "Eu raramente faço turismo sozinha. Você passa por tanto constrangimento que até evita, perde o prazer", desabafa Indianara, que aconselha quem é discriminado a procurar a polícia. "Cada vez que você faz um boletim de ocorrência, eles aprendem que não podem fazer isso e a pessoa depois de você talvez já não sofra".
Mel acredita em dias melhores. "É só as pessoas se informarem, serem menos ignorantes e mais empáticas com a nossa causa. Ao não aceitarem nosso nome social, simplesmente estão nos excluindo. Estão tirando a nossa legitimidade".
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