Há 2 anos na estrada: viajante conta como roda o país sem roteiro nem grana
"Turista é aquela pessoa que tem muito dinheiro e pouco tempo; já viajante tem muito tempo e pouco dinheiro", diz uma das frases guias do diário de bordo da cabo-friense Manoela Ramos, de 25 anos, que está há quase dois anos na estrada, sozinha. Ela já conheceu 18 estados brasileiros, passando de Minas Gerais ao Amazonas.
Ela é dona do perfil @viajante_semgrana no Instagram e autora do livro independente "Confissões de Viajante (sem grana)", onde conta suas experiências ao se aventurar a viver sem rumo definido e com pouco - ou quase nenhum - dinheiro pelo país.
Nos registros, Manoela aparece dentro de uma gruta cinematográfica na Amazônia (AM), contemplando uma cachoeira em Aiuruoca (MG), no embalo de um barco na ilha do Marajó (PA) e em outros destinos nacionais. É na rede social que ela também faz reflexões sobre a trajetória de descobrir Brasis dentro do Brasil -- e ainda sobre a viagem de autoconhecimento, segundo ela, inevitável de se deparar ao longo do caminho.
O ponto de partida
Foi em julho de 2017 que Manoela arrumou sua mochila para a viagem -- que dura até os dias de hoje. Ela conta que se decepcionou com o mercado de trabalho que seguiria após conquistar o diploma de publicidade. Então, transformou seus planos para o futuro em algo bem diferente do esperado para a carreira.
Nada de rotina fechada em escritório, baseada em reuniões e metas com clientes: "Eu vi que aquilo não tinha nada a ver comigo, era uma coisa de só querer saber vender e criar necessidade desnecessária. Aí eu entrei em conflito e passei a pensar em formas alternativas para viver", relembra a jovem. Foi aí que viajar, conhecer os cantos do país e estar imersa no povo virou seu projeto de vida.
Mas e o $?
A primeira renda de Manoela Ramos, que a fez sair do Rio para a Paraíba, foi paga com revenda de artefatos indígenas, que ela comprou com economias de uma amiga da mãe. Uma das ideias iniciais da jovem foi revender comércio de um local para outro, valorizando e espalhando a arte de pequenos produtores por onde ia.
"Sou muambeira... também já vendi várias peças de crochê de buriti, biquíni, hambúrguer de feijão fradinho", relembra.
Atualmente, Manoela está no Amazonas -- em uma temporada já dura cinco meses no Norte do país. Antes passou por Roraima e conta ter ficado hospedada na casa de um artista plástico, de etnia indígena, por indicação de uma amiga que fez na estrada no Rio de Janeiro. Ela está encerrando um ciclo pela região para voltar ao Sudeste para ir à Paraty na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).
Nas redes sociais ela conta os momentos inspiradores de sua jornada. "Passei o dia todo caminhando com um velho sábio daqui [de Roraima]. Ele me levou para o meio das montanhas, da mata, disse que encontrou uns lugares que nunca tinha ido, tipo esta lagoa que estou [foto acima]. No meio da mata tem água mineral geladinha. A floresta é muito rica, muito viva. As pernas estão cansadas que só, mas o espírito está fortão", compartilha a jovem.
Ao longo da trajetória de viajante, que é como a jovem se intitula, ela pediu caronas para o transporte, trabalhou como garçonete em restaurantes e hostels em troca de alimentação, conheceu nativos e conseguiu abrigos pagando muito pouco ou nada por isso. Manoela conta que encontra muitas pessoas hospitaleiras, que abrem a casa para ela ficar ao conhecerem sua história.
"Essa sensação do desconhecido é a mais legal, poder chegar em um lugar e criar amizade, afeto e tudo mais e, quando você vai para outro lugar novo, começar tudo do zero novamente".
"Eu digo que a minha viagem é também um autoconhecimento. Viajar é entrar muito para dentro de si. Sigo em busca do paraíso que sei que está dentro de mim, mas reconheço que ainda tem muito chão pela frente", conta.
Quase uma nativa
O estilo despojado de Manoela de percorrer o país fez com que ela se sentisse como uma nativa de cada lugar. "Um turista economiza dinheiro, planeja roteiro, faz passeio com guia. O viajante costuma se hospedar em casa de moradores que, geralmente, são mais simples, faz comida naquela moradia e, de cara, já procura trabalhos temporários por onde passa", define.
Manoela viaja sem passagem de volta, com a tranquilidade dos cenários que posta nas redes sociais. "Os meus passeios surgem de amizades com os locais; tem um ou outro que é guia, que conhece muito onde vive e acaba me mostrando a região; tem quem tenha carro e dá para rachar a gasolina... aí você fica de boa e tem muito tempo para criar laços com os lugares e as pessoas, ir desbravando, diferente de um turista que fecha um pacote com uma agência", explica.
O trabalho também muda como os moradores locais a recebem: "Eles me veem lá trabalhando e entendem que não estou lá de férias, cheia de grana para gastar e existe uma abertura maior".
Paisagem bonita, beleza interior e perrengues
Manoela avalia que a espiritualidade está levantando voo nessa jornada. Em uma passagem de seus diários de bordo, ela cita uma reflexão: "Diz uma grande mestre sufi [do sufismo]: 'A vida exterior é o reflexo da vida interior'. Todas as paisagens bonitas do caminho refletem a beleza que estou descobrindo no meu ser".
Porém, os perrengues não ficam de fora. A jovem conta, por exemplo, que aceitou o convite para um abrigo e não havia outro lugar para dormir senão o chão frio. "Não tinha colchão nem rede e, logo no dia seguinte, eu já fui atrás de achar outro lugar para ficar".
A cabo-friense diz que aprendeu a se virar sozinha: "Viajando só eu não tenho condição de sentir medo. Eu nem penso nisso, porque se for 'noiar', aí já era. Também penso que o medo cria vibrações negativas, fui vendo que confiar faz toda a diferença em atrair os melhores lugares e as pessoas certas", pondera Manoela.
E ressalta que toma cuidados especiais para se proteger na estrada: "Eu nunca me coloquei em situação de risco. Pego caronas em trechos pequenos, só durante o dia e nunca durmo na cabine do caminhoneiro. Nunca passei por situação de assédio e uso muito minha intuição para saber onde devo e não devo ir".
Diários de bordo viraram livro
Há nove meses, Manoela Ramos lançou seu primeiro livro, "Confissões de Viajante (sem grana)", de maneira independente. Ela digitalizou seus diários de bordos escritos à mão, revisou, levou para a gráfica, pagou a impressão e hoje vende exemplares na areia das praias, na porta de teatros, em feiras literárias e também pela internet. Já vendeu mais de 600 livros até então.
Além da renda de 20 reais por cada exemplar, ela explica que está ficando mais conhecida no Instagram e que é na rede social que várias pessoas entram em contato e lhe oferecem hospedagem.
"Parece que eu fui promovida na estrada", brinca.
"Onde eu posso plantar meus amigos"
Manoela conta que já está escrevendo seu segundo livro, este apenas com relatos de sua temporada pelo Norte do Brasil, que já dura cinco meses.
Os próximos destinos ela ainda não sabe bem, mas espera concretizar o desejo de conhecer Moçambique em 2020 e ir para a Jamaica em alguma data futura.
Dar uma pausa a vida de viajante também está entre os intuitos de Manoela. "As despedidas são difíceis. É uma coisa que, às vezes, me faz querer parar. Parar de ficar me despedindo o tempo inteiro para não me apegar tanto na hora de ir embora", conta.
"A viajante sem grana" revela tem um grande sonho para quando fincar raiz depois das sementes que está plantando com tantas viagens. "Estou em busca de um lugar. Ainda não encontrei. Quero ter a minha própria casa para criar um ponto de retorno para receber essa galera que me recebeu com tanto amor e carinho".
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