"Foi uma noite de pânico", relata brasileiro que vive em Veneza
Era pouco antes da meia-noite quando ouvimos o alarme. Nós, moradores de Veneza, estamos acostumados com ele. Sempre que há risco de inundar a cidade, o sinal sonoro dá o alerta. De acordo com a intensidade e a frequência dos toques, nós sabemos quantos centímetros a maré vai subir.
Na noite do dia 12 de novembro, porém, percebemos que algo mais grave estava por vir.
O alarme que ecoava pelas vielas, canais e ruas de Veneza aumentava cada vez mais e, pior, era contínuo. Cada toque indicava que o nível da maré havia subido mais 10 centímetros na cidade. Nesse dia, acompanhamos os 20, os 30, os 40 centímetros... até perdemos a conta em meio ao volume sonoro que aumentava mais e mais e não parava. Entramos em desespero.
Foi uma noite de pânico. Ao mesmo tempo que acompanhava ao vivo o nível da água se elevando na viela onde moro, mensagens dos amigos começaram a apitar no celular. Eram fotos, vídeos, relatos, pedidos de ajuda, perguntas sobre desligar ou não a chave geral de luz para evitar um desastre maior.
Boa parte deles estava vivendo a mesma situação do meu vizinho do térreo. Encontrei ele desesperado, com baldes nas mãos, tentando tirar à pulso a água que transbordava sobre a barreira de proteção do prédio.
Os edifícios e comércios de Veneza têm, na frente, placas que bloqueiam a maré nos períodos de cheia. Também é comum terem bombas que expulsam a água que, eventualmente, entra em térreos e galerias. Nesse dia, essas proteções foram em vão. A água subiu a níveis próximos da famosa cheia de 4 de novembro de 1966, lembrada pelos veneziamos por placas de "acqua alta" nas ruas. Elas indicam as zonas que podem ser afetadas pela inundação - e marcam com uma linha os 194 centímetros alcançados naquela época. Não havia bomba que desse conta da vazão que entrava nos edifícios.
Nos comércios, vimos os produtos boiando como num aquário. Nas ruas e prédios, todos se ajudavam. Mas sabíamos: quando a maré supera todas as barreiras, é uma luta sem resultados. Só nos resta levar para pontos mais altos o que pudermos carregar.
O sentimento que reinou nessa noite foi o de impotência. Máquinas de lavar, fogões, sofás e outros itens pesados já estavam perdidos. Depois de um tempo, não havia mais nada a fazer. Ficamos parados, atônitos, assistindo a inundação.
A maré baixou muito tarde. Cansados, recebemos os amigos e parentes que foram atingidos ou que não conseguiram voltar para casa, e dormimos. Só com a luz do dia tivemos claro o verdadeiro estrago que a inundação causou na cidade.
A cheia do dia 12 foi a mais aterradora. Depois dela, vieram outras, em proporções graves, mas menores. Porém, até hoje Veneza vive numa espécie de stand by.
Apenas na segunda, dia 18, os supermercados voltaram a abrir para vender alguns produtos. Em boa parte deles, as máquinas de cartão de crédito e de débito não funcionam, porque a rede elétrica entrou em curto. Nas filas, as pessoas contam os trocados em dinheiro vivo e selecionam o que levar. Eu tive que ir para Mestre, no continente, fazer minhas compras. Idosos e pessoas com dificuldade de locomoção dependem da ajuda de vizinhos e amigos.
As ruas de Veneza estão estranhas. As pessoas andam cabisbaixas, reinam o silêncio e o clima de desolação. Móveis, geladeiras e outros objetos estão amontoados nos cantos esperando serem recolhidos pelo sistema público de coleta de lixo, que não dá conta da demanda.
O turismo também está inerte. A cidade esvaziou. Os viajantes cancelaram as reservas em hotéis e os passeios agendados. Em contrapartida, muitas pessoas organizaram pelas plataformas sociais um mutirão e jovens de toda a Itália se mobilizaram e vieram ajudar na limpeza e recuperação.
Hoje, dia 21, a cidade ainda conta os prejuízos. Muitos negócios estão colocando à venda pela metade do preço as mercadorias danificadas ou até mesmo aceitando oferta livre.
Também há a extrema preocupação com relação aos prédios históricos, como a Basílica de São Marcos, ameaçados pela corrosão que a água do mar pode causar. O governo da Itália vai ressarcir moradores e comerciantes pelas perdas com a inundação, mas os danos a obras de arte, mosaicos e igrejas podem ser definitivos. Acho que essa é a principal questão que Veneza precisa afrontar agora.
Ninguém esperava que isso viesse a acontecer. Fomos pegos realmente de surpresa e vimos, da pior forma, como Veneza é frágil. E não apenas eu, que moro aqui há 14 anos. Há toda uma geração de venezianos que só conhecia histórias semelhantes por relatos de seus pais a avós.
De certa forma, acredito que essa cheia foi uma previsão do nosso futuro aqui em Veneza. Ela mostrou o quanto é preciso mudar na cidade para que as cenas que vivemos naquela noite e nos dias seguintes não voltem a se repetir.
* Leandro Anhold Zaffalon, 42 anos, é agente de uma empresa aérea e consultor de turismo na Veneza Para Brasileiros. Ele mora na cidade italiana há 14 anos.
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