"Mataram uma geração": como quatro assassinatos interromperam a ascensão do funk paulista
O funk hoje produzido em São Paulo e os MCs paulistanos estão bem consolidados, mas a origem desse sucesso tem uma história que envolve a influência do batidão carioca, a crítica social do rap e também as mortes de quatro MCs que despontavam na Baixada Santista quando foram assassinados - todos em ocasiões diferentes, nos meses de abril de 2010, 2011 e 2012. "Não mataram apenas os MCs, mataram uma geração que nascia ali", resume o MC Neguinho do Kaxeta.
Os assassinatos aconteceram quando a Baixada se destacava como principal cenário do funk em São Paulo e ganhava força na capital. Entre os fãs declarados estava Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr. (leia mais abaixo). A primeira morte foi do MC Felipe Boladão (em 10 de abril de 2010, aos 21 anos), seguida pelo MC Duda do Marapé (em 12 de abril de 2011, aos 27 anos). Dois anos depois, mais duas mortes no mesmo mês: a de MC Primo (em 19 de abril de 2012, aos 28 anos) e MC Careca (28 de abril de 2012, aos 33 anos). Todos os crimes continuam sem solução mais de dez anos depois.
MC Primo, MC Careca e MC Duda do Marapé eram uma espécie de segunda geração de funkeiros da Baixada, que se consolidava após duplas como as dos MCs Danilo e Fabinho, Souza e Waldir e Renatinho e Alemão. Já o primeiro entre os quatro músicos assassinados, o MC Felipe Boladão, era um dos principais expoentes do funk da Baixada Santista. Considerado um dos mais talentosos da nova geração, foi um dos primeiros nomes do litoral paulista a chamar a atenção da capital.
Mas Felipe não teve chance de desfrutar do sucesso. "Eu digo que ele foi um 2Pac [rapper assassinado em 1996 em Las Vegas] brasileiro, ele morreu no auge", comenta DJ João, produtor de destaque na Baixada Santista.
As histórias dos músicos estão no documentário "Mortos em Abril: Quatro Assassinatos que Abalaram o Funk em SP", disponível no Youtube de MOV.doc. Os dois episódios foram produzidos por MOV, a produtora de vídeos do UOL, e têm entrevistas com produtores, DJs, familiares, especialistas em segurança pública, juristas e músicos - entre eles, Kondzilla, MC Hariel, MC Guimê e MC Neguinho do Kaxeta. A narração é de MC Barriga.
A origem do funk paulistano
A cultura do baile funk tem origem na cidade do Rio de Janeiro, onde o miami bass ganhou um toque brasileiro e passou a dominar os morros e o asfalto a partir dos anos 1980. Na década seguinte, o ritmo chegou a São Paulo, mais precisamente na Baixada Santista, litoral do estado. Inspirados no sucesso das coletâneas "Funk Brasil", do DJ Marlboro, os MCs paulistas participavam de bailes e cantavam músicas que já eram sucesso em terras cariocas.
Foi a partir da metade dos anos 1990 que o funk de São Paulo ganhou cara própria. E esse estilo foi uma mistura do funk do Rio de Janeiro com o rap, estilo musical que era destaque nas periferias da capital paulista com representantes como Racionais MCs e RZO.
MC Duda do Marapé era conhecido por fazer essa mescla de forma natural. "Duda do Marapé é uma das maiores referências que eu tenho no meu modo de compor, de enxergar o funk e a arte de uma maneira mais livre, sem tanto rótulo", diz MC Hariel, um dos principais MCs da atualidade, autor de sucesso como "Cracolândia" e "Maçã Verde", que acumula mais de 1 bilhão de visualizações no YouTube com suas músicas.
Essa mistura fez com que a Baixada Santista adquirisse uma estética única, reconhecida por grandes nomes do funk, como Mr. Catra, que fez suas reverências aos artistas paulistas em um depoimento no início dos anos 2000. "A maior escola de funk consciente do Brasil é a Baixada Santista. A rapaziada da Baixada Santista é neurótica", disse o cantor, morto em decorrência de um câncer em 2018.
O funk consciente, mencionado por Catra, é um gênero em que as letras falam de questões sociais. Assim como no Rio de Janeiro, a Baixada também ficaria conhecida pelo funk proibidão, um gênero que abordava crimes e descrevia facções.
Esses dois modos de fazer funk chegam a se confundir, explica o criminólogo Danilo Cymrot, autor do livro "O Funk na Batida: Baile, Rua e Parlamento". "A divisão entre funk consciente, esse funk crítico, e o funk proibidão não é muito clara. Uma música que faça crítica à ação policial pode ser vista como discurso de ódio, mas pode ser vista pelos MCs e pelo público apenas como transbordamento do sentimento geral de incômodo com relação à atuação das polícias nas periferias", explicou.
Uma das linhas de investigação em relação às mortes dos MCs está ligada às letras críticas ao trabalho da polícia. Um dos grandes nomes desse gênero era MC Careca, que chegou a ganhar o apelido de "porta-voz" por suas músicas.
A disputa com o Rio de Janeiro
Nos anos 2000, artistas do Rio de Janeiro e Baixada Santista passaram a fazer uma espécie de intercâmbio entre os dois locais, sendo comum artistas viajarem para fazer shows e gravar músicas. No entanto, nem sempre isso acontecia da melhor forma.
Uma das músicas que marcou época do funk na Baixada Santista foi "Diretoria", do MC Primo. No entanto, antes da canção ficar conhecida em todo o país e levar o MC paulista ao programa "Caldeirão do Huck", da TV Globo, o carioca MC Sapão gravou uma versão própria.
Como forma de se retratar, Sapão auxiliou Primo em contatos com o DJ Marlboro, que produziu uma nova versão para Primo e acrescentou a música nas suas coletâneas de funk.
"Quando o funk da Baixada se consolidou, muitas letras começaram a ser copiadas. O MC Galo mesmo cantou uma música com o Barriga. Ele começou a cantar no Rio e ninguém sabia que era do Barriga. A mesma coisa aconteceu com o Primo", explica o DJ João, produtor musical de diversos MCs da Baixada Santista.
A popularização da internet e do formato de música em .mp3 fizeram com que os MCs e os sucessos produzidos por funkeiros paulistas se tornassem conhecidos em todo o Brasil. Isso, aliado a uma "entressafra" de funkeiros cariocas, permitiu que a Baixada Santista conseguisse disputar a atenção da produção de funk com o Rio de Janeiro.
Chorão e o funk da Baixada
Nem só de funk vivia a cena musical do litoral de São Paulo. Nos anos 2000, o rock também era destaque, principalmente com a banda Charlie Brown Jr., que tinha como líder e vocalista Alexandre Magno Abraão, o Chorão, morto em 2013.
O cantor sempre se mostrou fã dos MCs e dos sucessos da cultura local. No YouTube, um fã registrou Chorão cantando as músicas "Diretoria", do MC Primo, e "Compasso", do MC Barriga.
Primo, aliás, era o artista preferido do vocalista do Charlie Brown. Segundo Konrad Dantas, o KondZilla, responsável por gravar o último DVD dessa banda e que nasceu no Guarujá, cidade da Baixada Santista, o cantor revelou em conversas que tinha vontade de gravar uma música em parceria com o MC.
"Lembro que uma vez estávamos conversando sobre música e o Chorão comentou que era fã do funk da Baixada, cantou várias músicas. Eu já tinha feito um videoclipe para Primo [da música "Espada no Dragão"] e tinha proximidade. Eu peguei o telefone, coloquei os dois em contato, eles ficaram conversando e marcaram de ir para um estúdio. Mas, pouco depois, o Primo foi assassinado", lembra o empresário.