'Antigamente era coisa do diabo': como a política subiu ao púlpito
Na Marcha Para Jesus de 9 de julho, em São Paulo, a primeira depois da pandemia, ficou visível a mistura entre política e religião — tanto que alguns cristãos deixaram de ir ao evento por causa da presença do presidente Jair Bolsonaro. O candidato à reeleição apareceu nos trios e no principal palco do evento. Foi saudado por pastores e lideranças religiosas.
Política no púlpito é um dos temas do documentário sobre evangélicos no Brasil produzido pelo UOL e lançado nesta segunda-feira (26). O material trata dos muitos entendimentos, contradições, desafios e visões políticas do grupo, até então minoritário, que passou a ocupar o centro do debate público, inclusive no âmbito da política institucional. Você pode assistir ao lançamento acima ou no Youtube de MOV.doc.
Todos os entrevistados para o documentário — uma produção de TAB e MOV, a produtora de vídeos do UOL — se identificam como evangélicos. Com o título "Ser Evangélico no Brasil", o primeiro episódio traz o entendimento dessas pessoas sobre a religião, os motivos que levam à conversão, as razões para o crescimento da fé evangélica no País, o preconceito (que sofrem e praticam). Já o segundo, "A Política Sobe ao Púlpito", mostra como política e religião se misturam, fazendo com que a fé determine o voto. O material tem consultoria do antropólogo Juliano Spyer, autor do livro "Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam".
Aos evangélicos mais antigos, essa intersecção nunca foi muito clara no passado. "Política antigamente era coisa do diabo. Se o pastor fizesse um negócio desses, ele era reprovado por toda a igreja. [Hoje] o bom é que não é verdade que ser político é coisa do diabo. Meu açúcar, meu arroz, meu feijão, tudo é política", resume a cozinheira Cremilda Falcão, conhecida como Guinha, fiel da Assembleia de Deus da Missão, em Barra de Pojuca (BA).
A produção do documentário escolheu a localidade porque suas características socioeconômicas são quase um microcosmo do Brasil. Periférico, majoritariamente negro e de baixa renda, Barra de Pojuca é distrito-dormitório de uma população que trabalha com turismo e serviços. Ali, a quantidade de igrejas evangélicas — cerca de 80 templos, num raio de 2 km — nem se compara a de paróquias (apenas uma) e terreiros (nove), reproduzindo uma tendência nacional. Pesquisadores apontam que, em 10 anos, o número de brasileiros que se declaram evangélicos deve superar o de católicos.
Nação cristã
Em São Paulo, cidade mais populosa do Brasil, a administradora Daiane Paiffer, da Igreja do Evangelho Quadrangular, acompanhou a Marcha Para Jesus atenta se os discursos políticos iam se sobrepor à festa. Queria ir para louvar — volta todo ano ao evento porque conta ter conhecido seu marido em uma Marcha Para Jesus, e revisitá-la é uma forma de agradecer pelo lar que conquistou —, mas sabia da presença de Bolsonaro, confirmada dias antes do evento.
Ela reconhece que os evangélicos vivem um despertar para a política. "Foi-se o tempo que o povo cristão era bitolado. Era aquele povo, assim, que não tinha conhecimento, que acreditava só no que um homem pregava. Cada vez mais está acontecendo esse despertar", afirmou na manhã de 9 de julho, saindo da van e indo direto para a concentração dos carros da marcha com amigos e família. "A igreja trouxe esse olhar para a política."
A chave para entender essa participação inevitavelmente passa pela eleição presidencial de 2018 e a vitória de Jair Bolsonaro. "Talvez nós nem gostamos muito do que ele pensa, entendeu? Mas ele é alguém que teve uma identificação muito grande com o povo [evangélico]. Inevitavelmente, ele começou a levantar bandeiras que eram próximas dos princípios bíblicos", analisa o pastor Cláudio Duarte, influencer dos mais seguidos no Instagram.
A defesa da "família tradicional" como um valor moral acaba sendo central para esse público. E muita coisa entra no entendimento sobre "valores familiares". Significa repudiar pautas identitárias na sociedade (ligadas aos movimentos LBGTQIA+, feminista, negro) e também combater uma suposta "ameaça" desses movimentos à liberdade religiosa no país. Em estado de tensão permanente, a guerra cultural proposta pela extrema direita, apoiando Bolsonaro, joga no colo dos partidos políticos de esquerda essa ameaça.
A antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, que nasceu em berço evangélico e foi até "evangelista mirim", hoje mergulha nesse universo para entender a ascensão do grupo e como seus fiéis se relacionam com a política institucional — em especial, as mulheres evangélicas, preocupadas com temas ligados à saúde pública, à infância, à educação e à violência doméstica. "Todas essas pautas traduzem uma ideia de família. A centralidade da pauta da família não está relacionada à ideia de pai/mãe/filhos, mas a de subsistência. Pensar na família é pensar em políticas de subsistência", observa.
Não à toa, as mulheres da igreja continuam sendo o foco principal na disputa eleitoral de 2022. Teixeira nota que é a figura feminina que ajuda na identificação de Bolsonaro com o segmento evangélico. "Ele não é evangélico e as pessoas sabem disso. Mas, na maioria das igrejas, os homens também não são evangélicos: quem garante a 'virtude' do homem é a mulher. Ser casado com uma evangélica é muito mais importante do que ser evangélico, e é isso que, de alguma maneira, a [primeira-dama] Michelle 'performa'", explica.
Entrevistada para o documentário, Marina Silva, ex-ministra do meio ambiente e evangélica da Assembleia de Deus, repudia essa guerra cultural. "É preciso ter espaço de conversas dos dois lados. Se você tem um país onde mais de 80% das pessoas professam que tem fé, como é que você vai dizer que eles estão fora da realidade nacional? Da mesma forma que os 80% não podem achar que vai impor sua fé a quem quer que seja. O problema é quando há essa instrumentalização da fé pela política e da política pela fé. Sendo ruim para os dois, acaba sendo ruim para a democracia", explica Marina.
Ficha técnica
Direção: João Ramirez
Consultoria: Juliano Spyer
Entrevistas e pesquisa: Juliano Spyer, Tiago Dias e Olívia Fraga
Montagem e finalização: Douglas Lambert
Produção: Natália Mota
Fotografia: Danillo Sperandio, Douglas Lambert, Larissa Teixeira, Liel Marin, Rafael Martins e Raquel Arriola
Fotografia adicional - Drone: Rafael Martins
Técnico de Som: Pedro Vieira
Coordenação de operações: Danillo Sperandio
Coordenação MOV: Caroline Monteiro e Juliana Carpanez
Coordenação TAB: Olívia Fraga
Gerente geral de MOV: Antoine Morel
Gerente geral de TAB: Alexandre Gimenez
Diretor de conteúdo UOL CS: Murilo Garavello